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Proc. nº 349/00
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. C... e Outros (ora recorrentes) intentaram, no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, acção ordinária contra a Sociedade de Construções J... Lda (ora recorrida), pedindo a nulidade da constituição da propriedade horizontal de certo prédio urbano, identificado nos autos, no respeitante à sua fracção 'B', correspondente à cave.
2. Após a contestação da Ré foi proferido despacho saneador sentença que julgou a acção procedente.
3. Inconformada com tal decisão a Ré apelou para a Relação de Lisboa que, por acórdão de 18 de Fevereiro de 1999, julgou o recurso improcedente.
4. Novamente inconformada a Ré recorreu de revista para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 23 de Novembro de 1999, julgou o recurso procedente e, em consequência, revogou o acórdão recorrido absolvendo a Ré dos pedidos.
5. Foi agora a vez dos autores virem aos autos para requererem a aclaração deste aresto, o que lhes foi negado por acórdão de 15 de Fevereiro de 2000.
6. Ainda inconformados os autores vieram de novo aos autos, desta vez para requererem a reforma do acórdão de 23 de Novembro de 1999, bem como para arguirem a nulidade do mesmo, o que lhes foi negado por acórdão de 28 de Março de 2000.
7. Foi então que os autores interpuseram, ao abrigo do disposto no art. 70º, nº
1, alíneas b) e f) da LTC, o presente recurso de constitucionalidade e legalidade. Pretendem os recorrentes que 'as normas constantes dos art.s 3º, parágrafo único, 6º e 8º do RGEU, tal como foram interpretadas pela decisão recorrida, no sentido de constituírem meras normas técnicas e não normas de interesse e ordem pública, sejam declaradas ilegais pelo Tribunal Constitucional, por violação do disposto nos art.s 294º, 1416º, nº 1 e 1418º, nº
2, alínea a) e 3 do Código Civil'. Requerem ainda que 'as normas constantes dos art.s 1416º, nº 1 e 1418º, nº 2, alínea a) e 3 e 1421, nº 2 alínea d) e 3 do Código Civil sejam declaradas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional, no sentido em que foram interpretadas no acórdão recorrido, isto é, de que a definição jurídico-real de um compartimento de um prédio urbano compete exclusivamente ao título executivo da propriedade horizontal, definição aquela que nada tem que ver com o destino ou uso a dar a um compartimento, o qual se funda em razões de natureza estritamente técnica ligadas à segurança do edifício, por violação do disposto nos art.s 2º (princípio constitucional da confiança) 9º, alíneas e) e g), 62º nº 1, 65º, nºs 1 e 2 alíneas a) e c) e nº 4 e 66º nºs 1 e 2 alínea b), e) e f) da Constituição.
8. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso (fls. 320 a 325). É o seguinte, na parte decisória, o seu teor:
'O recurso previsto nas alíneas b) e f) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional pressupõe, além do mais, que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de determinada norma jurídica – ou de uma sua dimensão normativa – e que, não obstante, a decisão recorrida a tenha aplicado como racio decidendi. Quanto ao sentido a dar ao pressuposto de admissibilidade do recurso que se traduz na necessidade de suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo, constitui desde há muito jurisprudência assente neste Tribunal que a inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita durante o processo quando tal se faz em tempo de o tribunal recorrido ficar a saber que tem essa questão para resolver e, consequentemente, a poder e dever decidir. Tal implica, em suma, que a questão de constitucionalidade seja suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a mesma inconstitucionalidade respeita; ou seja: em regra, antes da prolação da decisão recorrida (veja-se, entre muitos nesse sentido, os Acórdãos nºs 62/85, 90/85 e
450/87, in Acórdãos do T.C., 5º vol., p. 497 e 663 e 10º vol., pp. 573, respectivamente). Em consequência, tem este Tribunal entendido de forma reiterada que, em princípio, o pedido de aclaração ou reforma da decisão recorrida bem como a reclamação da sua nulidade não constituem já meios idóneos para suscitar a questão de inconstitucionalidade. Nesse sentido escreveu-se, por exemplo, no acórdão nº 450/87 (já citado) 'Deste modo, porque o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença e porque a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão, nem torna esta obscura ou ambígua, há-de ainda entender-se
- como este Tribunal tem entendido - que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade...'. E, especificamente sobre a possibilidade de suscitação da questão de constitucionalidade no pedido de reforma da sentença, disse este Tribunal no Acórdão nº 418/98 (Diário da República, II Série, de 20 de Julho de 1998): 'É certo que na sequência das alterações legislativas introduzidas ao Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei nº 329º-A/95, de 12 de Dezembro, se alargaram os termos da possibilidade de reforma da sentença, permitindo-se hoje inclusivamente, se verificados determinados pressupostos, a alteração da própria decisão de mérito. Só que, e é isto que o recorrente parece esquecer, a possibilidade de reforma da sentença por parte do tribunal a quo depende da verificação dos respectivos pressupostos do instituto que, como decidiu, aliás, o próprio tribunal recorrido, no caso manifestamente não se verificam. Nos termos do nº 2 do art. 669º do Código de Processo Civil só é possível a reforma da sentença, designadamente em termos de permitir a alteração da decisão de mérito, quando (a) tenha ocorrido manifesto lapso do juiz na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos; ou, (b) constem do processo documentos ou quaisquer elementos que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida e que o juiz, por lapso manifesto, não haja tomado em consideração. Ora, é manifesto que nada disto se verifica no caso que é objecto dos autos. A eventual aplicação de uma norma inconstitucional não configura (ressalvada alguma hipótese anómala e excepcional, como seja a de inexistência jurídica da norma) uma situação de manifesto lapso do juiz na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos.(...). E, não se verificando os pressupostos de que depende a possibilidade de reforma da sentença, designadamente quanto à decisão de mérito, vale a regra do nº 1 do art. 666º do Código de Processo Civil, segundo a qual, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.'
9. Somente tem este Tribunal admitido que a questão da constitucionalidade de uma norma jurídica – ou de uma sua interpretação normativa – seja suscitada depois de proferida a decisão em hipóteses, excepcionais, em que o poder jurisdicional, por força de norma processual específica, não se tenha esgotado com a prolação da decisão recorrida, ou em que o recorrente não tenha tido oportunidade processual de o fazer antes.
É esta última hipótese factual que os recorrentes entendem que se encontra retratada nos autos. Os recorrentes reconhecem que só suscitaram as questões de constitucionalidade e de ilegalidade que agora pretendem ver apreciadas já depois de proferida a decisão recorrida, concretamente no pedido de reforma da sentença e na reclamação da sua nulidade. Sustentam, porém, que não tiveram oportunidade processual de o fazer antes, porquanto, até aí, tinham sempre obtido inteiro ganho de causa, na medida em que quer a decisão da 1ª Instância quer a decisão da Relação de Lisboa lhes tinha sido inteiramente favorável. Porém, como vai ver-se, não lhes assiste razão. Ao contrário do que alegam, tiveram efectivamente os recorrentes oportunidade processual de, antes de proferida a decisão recorrida, ter suscitado as questões de constitucionalidade e de ilegalidade que agora pretendem ver apreciadas. Concretamente, poderiam tê-lo feito nas respostas que apresentaram às alegações dos recursos de apelação e de revista interpostos pela Ré. Mas, deveriam fazê-lo ? Como este Tribunal tem afirmado repetidamente recai sobre as partes o ónus de analisarem as diversas possibilidades interpretativas susceptíveis de virem a seguidas e utilizadas na decisão e utilizarem as necessárias precauções, de modo a poderem, em conformidade com a orientação processual considerada mais adequada, salvaguardar a defesa dos seus direitos (cfr., nesse sentido, entre muitos outros, o acórdão nºs 479/89, acórdãos do Tribunal Constitucional, 14º vol., p. 149). Assim, sendo previsível – e, era-o, efectivamente - que a decisão recorrida pudesse dar às normas objecto do recurso a dimensão normativa que os ora recorrentes reputam de inconstitucional e ilegal, era-lhes efectivamente exigível que tivessem, logo ali, suscitado essa mesma inconstitucionalidade e ilegalidade. Em suma: podiam (porque tiveram oportunidade processual) e deviam (porque sobre eles recai esse ónus) os ora recorrentes - se entendiam que a interpretação normativa dos preceitos em causa que vinha sendo defendida pela Ré, e que veio a ser adoptada pelo STJ, era inconstitucional e ilegal - ter colocado as questões de constitucionalidade e de ilegalidade que agora pretendem ver apreciadas antes de ter sido proferida a decisão recorrida. Não o tendo feito, não pode agora, de acordo com a jurisprudência antes expressa, que mantém inteira validade, conhecer-se do objecto do recurso interposto pelos recorrentes ao abrigo das alíneas b) e f) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, por falta de um dos seus pressupostos legais de admissibilidade'.
9. Inconformados com esta decisão os recorrentes apresentaram, ao abrigo do disposto no art. 78º-A, nº 3 da LTC, a presente reclamação para a Conferência, alegando, em síntese, que, ao contrário do decidido pelo relator, deve considerar-se tempestiva a suscitação de uma questão de constitucionalidade ou de legalidade apenas no pedido de reforma da decisão recorrida, em termos de permitir o recurso ao abrigo da alínea b) ou f) do nº 1 do artigo 70º da LTC. Dispensados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. III – Fundamentação
10. Em causa na presente reclamação está apenas a questão de saber se se verifica nos autos alguma daquelas situações em que, excepcionalmente, é de admitir que sejam suscitadas apenas depois de proferida a decisão recorrida, concretamente no seu pedido de reforma, as questões de constitucionalidade e de legalidade normativa que constituem objecto de um recurso interposto ao abrigo das alíneas b) e f) do nº 1 do art. 70º da LTC. Entendem os reclamantes que sim. Quer porque, por força de norma processual específica, o poder jurisdicional do juiz não se teria esgotado com a prolação da decisão recorrida, quer porque não teriam tido oportunidade processual de suscitar antes essas questões. Vejamos se lhes assiste razão.
11. Sustentam os reclamantes, em primeiro lugar, que a aplicação de norma inconstitucional ou ilegal configura uma situação de manifesto lapso do juiz na qualificação jurídica dos factos, caso em que, nos termos do artigo 669º, nº 2 do CPC, se não teria ainda esgotado, quanto a este ponto, o seu poder jurisdicional. A esta questão já se respondeu na decisão reclamada em termos que, por merecerem a nossa inteira concordância, apenas há agora, mais uma vez, que reafirmar. Como então se disse, a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não configura
(ressalvada alguma hipótese anómala e excepcional, como seja a de inexistência jurídica da norma) uma situação de manifesto lapso do juiz na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos.
É que, como resulta expressamente do nº 2 do artigo 669º do CPC, pressuposto da possibilidade da sua aplicação é, designadamente, que o lapso na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos seja manifesto. Tal significa que o erro de julgamento (aqui consubstanciado na aplicação da norma com o sentido alegadamente inconstitucionalidade) só pode dar lugar à reforma da sentença, com esse fundamento, quando o mesmo seja ostensivo, patente, evidente a uma primeira análise. Ora, tal não será, normalmente, o caso da aplicação de um sentido normativo inconstitucional nem é, inequivocamente, o caso da situação que se encontra retratada nos autos. Dessa forma, não se verificando os pressupostos de que depende a possibilidade de reforma da sentença quanto à decisão de mérito, vale a regra do nº 1 do art.
666º do Código de Processo Civil, segundo a qual, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
12. Sustentam ainda os reclamantes que não tiveram oportunidade processual de suscitar antes as questões de constitucionalidade e ilegalidade que agora pretendem ver apreciadas, em termos de o tribunal estar obrigado a delas conhecer. Mais uma vez, porém, sem razão. Como também já se disse na decisão reclamada, ao contrário do que alegam, tiveram efectivamente os reclamantes oportunidade processual de, antes de proferida a decisão recorrida, ter suscitado as questões de constitucionalidade e de ilegalidade que agora pretendem ver apreciadas.
É certo que os ora reclamantes, tendo obtido ganho de causa na 1ª instância e na Relação, não tinham legitimidade para recorrer. Porém, uma vez interposto recurso pela parte vencida (tendo designadamente por objecto o sentido normativo a dar às normas cuja constitucionalidade e legalidade os ora reclamantes pretendem ver apreciada) reabre-se, nesta parte, toda a discussão. Nesses termos, se os ora reclamantes entendiam que o sentido com que o recorrente pretendia que as normas em causa fossem aplicadas – e que, efectivamente, veio a ser utilizado pelo tribunal – era inconstitucional ou ilegal, tinham efectivamente, ao contrário do que alegam, o ónus de contra-alegar, precisamente para suscitar essa questão perante o tribunal recorrido, em termos de lhe permitir pronunciar-se sobre ela na hipótese de, como veio a acontecer, este pretender utilizar, como ratio decidendi, esse sentido normativo. Como então se disse na decisão reclamada, e mais uma vez aqui se reitera, recai efectivamente sobre as partes o ónus de analisarem as diversas possibilidades interpretativas susceptíveis de virem a seguidas e utilizadas na decisão e utilizarem as necessárias precauções, de modo a poderem, em conformidade com a orientação processual considerada mais adequada, salvaguardar a defesa dos seus direitos. Nesses termos, sendo previsível que a decisão recorrida pudesse dar às normas objecto do recurso a dimensão normativa que os ora recorrentes reputam de inconstitucional e ilegal, era-lhes efectivamente exigível que tivessem, logo ali, suscitado essa mesma inconstitucionalidade e ilegalidade. Como então se concluiu: podiam (porque tiveram oportunidade processual) e deviam
(porque sobre eles recai esse ónus) os ora recorrentes - se entendiam que a interpretação normativa dos preceitos em causa que vinha sendo defendida pela Ré, e que veio a ser adoptada pelo STJ, era inconstitucional e ilegal - ter colocado essa questão antes de ter sido proferida a decisão recorrida. III - Decisão Por tudo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta Lisboa, 7 de Novembro de 2000 José de Sousa e Brito Messias Bento Luís Nunes de Almeida