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Procº nº 5/92 Plenário. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. O Procurador-Geral da República veio, com base na faculdade que lhe é conferida pela alínea e) do nº 2 do artigo 281º da Constituição, requerer que este Tribunal declarasse, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artº 22º do Decreto-Lei nº 96/89, de
28 de Março.
Fundamentou o seu pedido com base nas seguintes considerações:-
- a norma em causa, ínsita naquele decreto-lei, que criou os serviços do Registo Internacional de Navios na Madeira, ao dispor que a contratação e as condições de trabalho das tripulações deverão apenas obedecer ao disposto nas convenções internacionais vigentes na ordem jurídica portuguesa sobre a matéria, tem, inequivocamente, o sentido de afastar a legislação laboral reguladora da prestação de trabalho quanto àquela área de actividade económica, uma vez que pretende que essa prestação venha a ser exclusivamente regulada pelos normativos constantes do direito internacional vigente em Portugal;
- de entre esses normativos ressalta a Convenção nº 22 da Organização Internacional do Trabalho, relativa ao contrato de trabalho marítimo, a qual foi aprovada para ratificação pelo Decreto nº 112/82, de 11 de Outubro;
- no nº 1 do artº 9º da aludida Convenção estatui-se que o contrato de trabalho por tempo indeterminado poderá dar-se por terminado com a denúncia do contrato por uma das partes num porto de carga ou descarga do navio, desde que seja observado o aviso prévio combinado para esse fim, o qual deverá ser pelo menos de 24 horas;
- por intermédio da norma cuja apreciação solicita, ficou, pois, consagrada a possibilidade de despedimento sem justa causa, situação vedada pelo artigo 53º da Constituição.
Termina o requerente o seu pedido dizendo que 'a norma em causa, versando sobre direitos liberdades e garantias, e constando de diploma emitido pelo Governo sem credencial parlamentar, é organicamente inconstitucional, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea b), da Constituição, e, reintroduzindo a possibilidade de despedimentos sem justa causa, é materialmente inconstitucional, por violação do artigo 53º da Lei Fundamental.
2. Notificado nos termos e para os efeitos do artº 53º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, o Primeiro Ministro veio apresentar «pronúncia», que rematou nos seguintes termos:-
'47. Em conclusão, temos, em suma, que:-
1ª - o diploma em apreço trata do registo e das condições de admissão ao registo, não do regime das relações de trabalho;
2ª - remete para as convenções vigentes, pelo que deixa de fora as que possam eventualmente contrariar a Constituição;
3ª - a remissão para o direito internacional convencional não é realizada quanto ao regime de cessação do contrato, designadamente por infracção disciplinar, antes se limita às condições de trabalho;
4ª - a expressão ‘condições de trabalho’ possui, na lei e na doutrina, um campo semântico ao qual é estranho o regime de cessação do contrato;
5ª - o nº 3 do art. 20º do Decreto-Lei nº 96/89 remete, expressamente, para legislação específica, conforme os princípios da ordem juslaboral portuguesa, o regime do despedimento sem justa causa.
48. Desta sorte, não é possível defender-se que o preceito em apreço está, ainda que indirectamente, a ofender o disposto no artigo 53º da Constituição. Antes cura de matéria muito diversa.
49. Porque é assim, afigura-se completamente desprovida de fundamento a alegação de inconstitucionalidade.
Nestes termos, reafirma-se a plena conformidade das normas questionadas'
3. Discutido o «memorando» a que se reporta o nº 1 do artº 63º da Lei nº 28/82, e apurada que foi a orientação do Tribunal, veio o vertente processo a ser distribuído ao relator em 12 de Outubro de 1999.
Cumpre, pois, efectuar a formação da decisão.
II
1. O Decreto-Lei nº 96/89, posteriormente alterado pelos Decretos-Leis números 393/93, de 23 de Novembro, 5/97, de 9 de Janeiro, 31/97, de 28 de Janeiro, e 331/99, de 20 de Agosto, veio criar, na dependência do Ministério da Justiça, os serviços do Registo Internacional de Navios da Madeira, integrados na Conservatória do Registo Comercial privativa da zona franca da Madeira, consagrando-se na norma sub iudicio (que manteve a anterior redacção mesmo após as alterações introduzidas pelos outros citados diplomas), como já se transcreveu, que a contratação e as condições de trabalho das tripulações deverão obedecer ao disposto nas convenções internacionais vigentes na ordem jurídica portuguesa sobre a matéria.
Como se deixou dito, segundo o requerente, tendo em conta que a determinação constante daquela norma aponta no sentido de às relações jurídico-laborais respeitantes aos tripulantes dos navios ser aplicável exclusivamente o disposto no ordenamento jurídico internacional convencional vigente em Portugal, assim se afastando a regulação de trabalho emanada tão só pelo poder normativo interno, e por isso que, de entre aquele ordenamento, se conta a Convenção nº 22, Relativa ao Contrato de Trabalho dos Marítimos, de
1926, adoptada na 9ª sessão da Conferência Geral Internacional do Trabalho e aprovada, para ratificação, pelo Decreto nº 112/82, Convenção essa onde se inclui a prescrição vertida no nº 1 do seu artº 9º, será de concluir que a disposição em apreço veio, afinal, a consagrar a admissão de despedimentos sem justa causa, desta sorte violando o preceito do artigo 53º da Constituição.
Ora, se é certo que o pedido em causa incide, de forma literal, sobre o artº 22º do Decreto-Lei nº 96/89, menos certo não é que, atendendo à fundamentação que o estriba, a descortinada violação da Lei Fundamental é assacada, e tão só, à dimensão normativa que remete para a aplicação do nº 1 do artº 9º da Convenção nº 22 e na parte em que permite que a entidade patronal dê por terminado o contrato de trabalho por tempo indeterminado num porto de carga ou descarga, independentemente de justa causa.
E, porque uma tal matéria é configurável como se integrando na matéria de direitos, liberdades e garantias, daí a asserção do requerente no sentido de que a norma em questão, editada pelo Governo e sem que este estivesse parlamentarmente credenciado, enfermasse de inconstitucionalidade orgânica.
Consequentemente, deverá o mencionado pedido ser interpretado (e, sequentemente, assim definido o respectivo objecto) por forma a consubstanciar uma solicitação, dirigida a este Tribunal, de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral daquele artº 22º na medida em que conduz, por força da aplicação do nº 1 do artº 9º da citada Convenção, à possibilidade de denúncia, por parte da entidade patronal, do contrato de trabalho por tempo indeterminado dos marítimos [considerados estes como qualquer pessoa empregada ou contratada para bordo, seja a que título for, que figure no rol da tripulação, à excepção dos comandantes, dos pilotos, dos alunos dos navios-escola e dos aprendizes, quando ligados por um contrato especial de aprendizagem - cfr. alínea b) do artº 2º da citada Convenção], independentemente de justa causa justificativa dessa denúncia.
De resto, foi nessa dimensão normativa que o Primeiro Ministro veio a entender o pedido dirigido à norma do artº 22º do Decreto-Lei nº 96/89, como se alcança da «pronúncia» que levou a efeito.
2. Limitado desta forma o objecto do pedido, impõe-se saber se poderá este Tribunal tomar conhecimento do pedido.
É que, pela Resolução da Assembleia da República nº 54/94, de 14 de Abril, ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 68/94, de 27 de Agosto, foi aprovada a Convenção nº 158 - Convenção sobre a cessação da relação do trabalho por iniciativa do empregador -, adoptada em 22 de Junho de 1982 na
68ª sessão da Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho, vindo-se a consagrar no seu artº 4º, e após se prescrever no artº 3º que o termo
«despedimento» significa a cessação da relação de trabalho por iniciativa do empregador, que um trabalhador não deverá ser despedido sem que exista um motivo válido de despedimento relacionado com a aptidão ou com o comportamento do trabalhador, ou baseado nas necessidades da empresa, estabelecimento ou serviço.
Encontra-se, desta arte, o nosso País vinculado a essa Convenção nº
158, decorrido que foi o prazo de doze meses desde o registo da respectiva ratificação junto do Director-Geral da Repartição Internacional do Trabalho
(cfr. artº 16º, nº 3).
2.1. Estatui-se no nº 1 do artº 2º de tal Convenção que a mesma aplica-se a todos os ramos de actividade económica e a todos os trabalhadores assalariados, sendo que se permite (cfr. números 2, 4 e 5) que sejam excluídos do âmbito de algumas das suas disposições determinadas categorias de trabalhadores assalariados. Todavia, Portugal não veio a lançar mão dessa possibilidade, pelo que, à luz do direito internacional pactício consagrado na Convenção nº 158, poderá concluir-se que, quanto ao nosso País, e relativamente a todas as actividades económicas geradoras de relações laborais - não se excluindo, pois, aquela a que se aplica a Convenção nº 22 -, cobrará aplicação a regra ínsita naquele nº 1 do artº 2º (cfr. o 1º Relatório do Governo Português relativo à execução da Convenção nº 158, apresentado em 1977, de onde se extrai que 'nenhuma categoria de trabalhadores foi excluída do âmbito de aplicação de toda ou parte da convenção').
Daí decorre que a estatuição do nº 1 do artº 9º da Convenção nº 22, ao reger especificamente sobre a possibilidade de denúncia ad nutum, por parte da entidade patronal, do contrato de trabalho por tempo indeterminado dos marítimos, deve ser perspectivada como encontrando-se agora postergada pela Convenção nº 158 tocantemente aos países seus subscritores que não excepcionaram do âmbito de aplicação do seu artº 2º, nº 1, aquela espécie de trabalhadores assalariados (cfr. o primeiro Estudo Geral sobre a Convenção nº 158, levado a efeito pela Comissão de Peritos sobre a aplicação de Convenções e Recomendações da OIT, números 58, 65, 67 e 68), de entre esses se encontrando Portugal.
Equivale isto a dizer que a norma sub specie, na parte em que, por apelo às determinações constantes das convenções internacionais vigentes da ordem jurídica portuguesa sobre a matéria, remete para regime do ordenamento jurídico internacional convencional a que Portugal se encontra vinculado, no que tange à matéria conexionada com a cessação, por iniciativa do empregador, dos contratos de trabalho por tempo indeterminado incidentes sobre os marítimos assalariados, se há-de considerar, desde que se firmou a vinculação de Portugal
à Convenção nº 158, como remetendo para o nº 1 do seu artº 2º.
Em face do comando vertido em tal disposição, fácil é concluir que, cotejando--o com a garantia constitucionalmente assegurada aos trabalhadores subordinados e com assento no artigo 53º da Lei Fundamental, se não surpreende qualquer estipulação contrária a ela.
2.2. Alcançada esta conclusão, impõe-se dar resposta à questão equacionada no início do ponto 2. que, recorde-se, consiste em saber se se deve tomar conhecimento do pedido.
Na verdade, sempre se poderia argumentar que haveria cabimento quanto ao conhecimento do pedido, por isso que, durante um determinado lapso de tempo, justamente o compreendido entre a data da entrada em vigor do diploma onde se insere a norma sub iudicio e a data da vinculação do Estado Português à Convenção nº 158, as relações jurídico-laborais dos marítimos se vieram a regular pelo disposto no artº 9º, nº 1, da Convenção nº 22.
Simplesmente, o que relevará é saber se, no momento - tendo em atenção a «substituição» operada no ordenamento jurídico de que acima se deu conta, e sendo certo que se não pode conhecer do pedido quando reportado à norma do artº 22º do Decreto-Lei nº 96/89 em conjugação com as disposições da Convenção nº 158 (uma vez que a tal obstaria o denominado «princípio do pedido» que se extrai do nº 5 do artº 51 da Lei nº 28/82) - existirá interesse relevante quanto ao mencionado conhecimento.
Ora, no que concerne a este particular, anota-se, em primeiro passo, que a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral que porventura viesse a ser proferida (e incidente sobre a norma em crise e tão somente enquanto por sua via determinasse a aplicação do nº 1 do artº 9º da Convenção nº 22), nenhum efeito desencadearia sobre os despedimentos que eventualmente tivessem tido lugar à luz dessa disposição e que, ou não foram impugnados judicialmente ou, sendo-o, foi mantida a decisão de despedimento por sentença já transitada (cfr. nº 3 do artigo 282º da Constituição).
Num outro passo, não se deve passar em claro que, mesmo a hipotisarem-se situações de um ou outro caso (e não se tem notícia da existência de acentuada conflitualidade nesse domínio) de denúncia unilateral por parte da entidade patronal do contrato de trabalho de marítimos com base na conjugação do artº 22º do Decreto-Lei nº 96/89 com o nº 1 do artº 9º da Convenção nº 22 e que ainda estivesse a ser alvo de impugnação judicial, sempre se haveria de reconhecer que essas situações se não apresentariam desprovidas do meio de tutela consistente na submissão à análise por parte deste órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa, precisamente porque sempre os interessados poderiam lançar mão do recurso a que aludem os artigos 280º da Constituição e 70º da Lei nº 28/82 para, assim, impedirem a aplicação de uma norma que contrariaria a Lei Fundamental.
Significa isso, no contexto que se veio de expor, que, muito embora se não possa, de pleno, qualificar que a situação que se depara in casu seja a correspondente a uma pura e simples de revogação da norma sobre a qual foi formulado o pedido de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, e que, dados os seus contornos, tem levado o Tribunal a decidir pela falta de interesse prático relevante quanto ao conhecimento do pedido (cfr., por todos e por mais recente, o Acórdão nº 639/98, publicado na 2ª Série do Diário da República de 29 de Dezembro de 1998 e demais arestos aí citados), o que é certo é que a vertente situação se perfila em termos tais que inteiramente justificam que à mesma se confira idêntico tratamento ao que este Tribunal tem dado quanto àquela.
III
Termos em que o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do pedido formulado. Lisboa, 26 de Outubro de 1999 Bravo Serra Maria Fernanda Palma Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito Artur Maurício Messias Bento Guilherme da Fonseca Vítor Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Paulo Mota Pinto Alberto Tavares da Costa José Manuel Cardoso da Costa