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Processo nº 1142/98
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O Ministério Público veio '- ao abrigo do disposto nos arts. 280º, nº 1, al. a) da Constituição da República Portuguesa (CRP); e 70º, nº 1, al. a), 71º, nº
1, 72º, nº 1, al. a) e nº 3 da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de
15/11, alterada pelas Leis nºs 143/85, de 26/11, 85/89, de 07/09, e 88/95, de
01/09) - interpor recurso para o Tribunal Constitucional da sentença (...), por na mesma se ter recusado a aplicação, por inconstitucionalidade, dos Despachos Normativos proferidos pelo Secretário de Estado da Segurança Social e com os nºs
31/83 (DR, I nº 22, de 27/01/83),168/94 (DR, I, nº 277, de 29/11/84) e 1/86 (DR, I, nº 2, de 03/01/86), por violação dos arts. 106º, nº.2 e 168º, nº 1, al. i) da CRP (correspondentes aos arts. 103º, nº 2 e 165º, nº 1, al. i) na versão de
1997)'. E é certo que nessa sentença, do Tribunal Tributário da 1ª Instância de Leiria, de 12 de Outubro de 1998, julgando-se 'procedente a oposição' e, em consequência, ordenando-se 'a extinção da execução instaurada contra a aqui oponente' (a ora recorrida A...., Ldª, sociedade comercial com sede na Nazaré), o Mmº Juiz a quo, depois de demarcar o tratamento da questão de fundo - 'saber se os Despachos Normativos em causa padecem ou não de inconstitucionalidade, o que previamente exige que se averigue saber se as contribuições patronais para a segurança social devem ou não ser consideradas como impostos' - deu-lhe a seguinte e resumida resposta:
'Tendo nós acima considerado as contribuições em causa como impostos, há que concluir, como se conclui, no sentido de que as normas (os mencionados Despachos Normativos) com base nas quais se pretende a cobrança coerciva padecem, face ao que vem de dizer-se, de inconstitucionalidade orgânico-formal'.
2. Nas suas alegações, concluiu assim o Ministério Público:
1º As contribuições para a segurança social que têm como sujeito passivo as entidades patronais estão sujeitas ao princípio da legalidade tributária e da reserva de lei.
2º Os despachos normativos a que se reporta o presente recurso, ao estabelecerem uma espécie de ' benefício mínimo presumido' para as prestações de alimentação e alojamento, facultados em espécie pelas entidades patronais aos seus trabalhadores, para efeitos de cálculo das referidas contribuições para a previdência, exorbitam claramente do quadro normativo precedente, já que nenhum dos diplomas que regulamentavam tais contribuições previam o estabelecimento pela Administração de tal 'presunção'.
3º Inovando, deste modo, substancialmente em matéria relevante para – reflexamente
– fixar os valores sobre que irá incidir o tributo em causa, invadem matéria inserida no âmbito da 'Constituição fiscal'.
4º Tais despachos são ainda formalmente inconstitucionais, por violação do nº 5 do artigo 115º da Constituição da República Portuguesa (na redacção então em vigor), já que traduzem exercício de uma tarefa de interpretação e integração autêntica da lei, vedada constitucionalmente à Administração.
5º Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.
3. A recorrida A..., Ldª, não apresentou alegações.
4. Tudo visto, cumpre decidir. Sobre a mesma matéria, e relativamente aos mesmos Despachos Normativos, em processo em tudo idêntico aos presentes autos, com o nº 1143/98, vindo também do Tribunal Tributário de 1ª Instância de Leiria e com as mesmas partes, foi já apresentado hoje e assinado um acórdão com o nº 620/99, com o julgamento de inconstitucionalidade das normas contidas nos Despachos Normativos nºs. 31/83, de 27 de Janeiro, 168/84, de 29 de Novembro e 1/83, de 3 de Janeiro, que estabelece valores mínimos presumidos das prestações relativas à alimentação dos trabalhadores, por violação do disposto no artigo 168º, nº 1, alínea i) (em articulação com o artigo 106º, nº 2) da Constituição. Transcreve-se desse acórdão a fundamentação a que se arrima:
'II Fundamentação
4.Os despachos impugnados têm a seguinte redacção: Despacho 1/86
1 - Para efeitos de contribuição para a segurança social e subsequente cálculo dos benefícios, devem ser atribuídos à alimentação e ao alojamento os valores mensais a seguir indicados, sempre que em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho não sejam fixados quantitativos superiores: Alimentação - 3300$; Alojamento - 2200$; Alojamento e alimentação – 4500$.
Despacho 168/84
1 - Para efeitos de contribuição para a segurança social e subsequente cálculo dos benefícios, devem ser atribuídos à alimentação e ao alojamento, quando integram a remuneração do trabalho, os valores mensais a seguir indicados, sempre que em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho não sejam fixados quantitativos superiores: a) Alimentação - 5100$; b) Alojamento - 3500$; c) Alojamento e alimentação - 7000$.
Despacho 31/93
1 - Para efeitos de contribuição para a Segurança Social e subsequente cálculo dos benefícios, devem ser atribuídos à alimentação e ao alojamento, quando integram a remuneração do trabalho, os valores mensais a seguir indicados, sempre que em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho não sejam fixados quantitativos superiores: a) Alimentação - 6120$; b) Alojamento - 4200$; c) Alojamento e alimentação - 8400$. O Tribunal a quo, concluindo que as contribuições para a segurança social têm natureza tributária, considerou tais normas inconstitucionais, uma vez que criam impostos, com violação do princípio da legalidade tributária, consagrado nos artigos 106º e 168º, nº 1, alínea i), da Constituição. O recorrente, por seu turno, sustentou igualmente a inconstitucionalidade das normas impugnadas, por violação da reserva de lei [artigos 106º, nº 2, e 168º, nº 1, alínea i), da Constituição, na versão em vigor à data da emissão dos despachos], invocando, por outro lado, a violação do disposto nos artigo 115º, nº 5, da Constituição, na versão então vigente.
5.A decisão da questão de constitucionalidade normativa em apreciação no presente recurso pressupõe a sujeição do regime das contribuições para a segurança social às garantias consagradas pela Constituição em matéria fiscal, nomeadamente à reserva de Lei. O Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 183/96 (D.R., II Série, de 23 de Maio de 1996), considerou que 'as contribuições para a segurança social que têm como sujeito passivo a entidade patronal (...), quer sejam havidas como verdadeiros impostos, quer sejam consideradas como uma figura contributiva de outra natureza, (...) sempre deverão estar sujeitos aos mesmos requisitos a que aqueles se encontram obrigados', uma vez que 'as prestações pecuniárias em que estas contribuições se traduzem' têm 'carácter definitivo e unilateral', só podendo 'ser restituídas quando indevidamente pagas, não admitindo reembolso e não implicando nenhuma contrapartida por parte das entidades delas credoras'.
É esta a linha de entendimento que se seguirá no presente processo.
6. Assim, importa averiguar se a matéria regulada em concreto nos despachos normativos impugnados está abrangida pela reserva de lei (ou seja, se tais despachos 'criam' algum imposto ou determinam a 'incidência', a 'taxa', os
'benefícios fiscais' ou as 'garantias dos contribuintes'). Nos termos do disposto no Decreto nº 45 266, de 23 de Setembro de 1963, nomeadamente nos artigos 112º e 113º (em conjugação com o artigo 5º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio), as entidades patronais concorriam para as caixas de previdência com as percentagens legalmente estabelecidas sobre as remunerações pagas e recebidas, considerando-se como 'remunerações' 'a remuneração-base, que compreende a prestação pecuniária e prestações em géneros, alimentação ou habitação' [artigo 113º, alínea a)]. Posteriormente, o Decreto Regulamentar nº 12/83, de 12 de Fevereiro, veio também incluir na noção de remuneração as referidas prestações. Os despachos normativos impugnados vieram, por seu turno, fixar um valor mínimo das prestações relativas à alimentação e alojamento prestados em espécie, para efeito de contribuições para a segurança social. De acordo com tais diplomas, independentemente dos valores das prestações para alimentação e alojamento acordados nos respectivos contratos de trabalho e nas convenções colectivas, as prestações para a segurança social incidentes sobre uma parte da remuneração teriam de ser sempre determinadas, no mínimo (ou seja, no caso de os valores acordados serem inferiores), de acordo com os montantes fixados nos despachos. Assim, é claro que as normas em apreciação não delimitam nem definem o âmbito da incidência das contribuições patronais para a segurança social. Com efeito, a incidência de tais contribuições sobre os valores das prestações relativas à alimentação e alojamento resulta, como se demonstrou, de outros preceitos legais
(das disposições que incluem na noção de remuneração as prestações em causa), que não integram o objecto do presente recurso de constitucionalidade. Todavia, consagrando as normas questionadas um rendimento ou benefício presumido mínimo, para efeito do cálculo das contribuições devidas à previdência, que se sobrepõe ao conteúdo concreto e casuístico dos instrumentos de regulamentação colectiva, será constitucionalmente admissível que tais presunções constem de normas de origem regulamentar?
7. O Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 348/97 (D.R., II Série, de 25 de Julho de 1997), considerou que 'da Constituição (...) não se pode retirar a conclusão de ser vedada entre nós a tributação dos rendimentos presumidos com a utilização de presunções na determinação da base tributável'. Porém, entende-se que tais presunções hão-de ser estabelecidas por lei (como acontecia, aliás, na situação apreciada pelo Tribunal). A fixação da matéria colectável constitui um momento central da determinação do montante do imposto, pois influencia decisivamente o apuramento do respectivo quantum (interferindo, consequentemente, nas garantias do contribuinte). Nessa medida, consubstancia um elemento estruturante da obrigação tributária, integrando, desse modo, o núcleo fundamental do conjunto de matérias cobertas pelas normas constitucionais de âmbito fiscal. Por outro lado, cabe sublinhar que as normas em apreciação, de fonte regulamentar, não constituem mero desenvolvimento de um regime legal prévio
(nomeadamente, do constante dos diplomas referidos supra). Com efeito, a fixação do valor mínimo das prestações para a segurança social não se confunde com a inclusão das mesmas no conceito de remuneração, uma vez que a qualificação de determinado benefício como remuneração corresponde a uma tarefa qualificativa prévia, ao passo que o estabelecimento do valor exacto da prestação é já um juízo posterior de determinação quantitativa da matéria colectável. Deste modo, as normas impugnadas apresentam uma feição inovatória em face do regime que inclui as prestações para a segurança social na noção de remuneração, pois se referem aos critérios quantitativos que fixarão o montante sobre o qual incidirá a tributação. Assim, a criação, de modo inovatório, de critérios gerais e abstractos que permitam a fixação do montante sobre o qual incidirá a taxa do imposto está abrangida pela reserva de lei (nesse sentido cfr. Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, I, 1974, p. 253, onde se afirma que tal matéria há-de ser criada por lei).
8. Conclui-se, consequentemente que as normas regulamentares impugnadas, por regularem inovatoriamente matéria atinente às garantias dos contribuintes, são inconstitucionais, por violação do disposto no artigo 168º, nº 1, alínea i) (em articulação com o artigo 106º, nº 2), da Constituição.
9.Alcançada esta conclusão, torna-se inútil apreciar a alegada violação do artigo 115º, nº 5, da Constituição (correspondente ao actual artigo 112º, nº
6)'. Não havendo razão para divergir de tal entendimento, há apenas que extrair a mesma consequência do juízo de inconstitucionalidade das normas em questão, repetindo aqui a decisão constante do citado acórdão.
5. Termos em que, DECIDINDO: a) julgam-se inconstitucionais as normas contidas nos Despachos Normativos nºs.
31/83, de 27 de Janeiro, 168/84, de 29 de Novembro e 1/83, de 3 de Janeiro, que estabelece valores mínimos presumidos das prestações relativas à alimentação dos trabalhadores, por violação do disposto no artigo 168º, nº 1, alínea i) (em articulação com o artigo 106º, nº 2) da Constituição. b) e, em consequência, nega-se provimento ao recurso Lisboa, 10 de Novembro de 1999 Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Bravo Serra Luís Nunes de Almeida