Imprimir acórdão
Processo n.º 397/94
1ª Secção Relator: Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- O Tribunal de Contas, por acórdão, de 25 de Fevereiro de 1993, com o n.º 70/93, 2ª Secção, relativo ao processo n.º 19/92-Audit-2ª Secção, o Tribunal de Contas apreciou, em subsecção, o processo referente à segunda fase da auditoria ao projecto de investimento/PIDDAC, denominado 'Conjunto Monumental de Belém' (situação de execução do projecto até 31/12/1991), que assumiu a forma processual de um processo de inquérito (na modalidade especial de auditoria), na sequência da auditoria realizada à primeira fase do mesmo projecto de investimento e que foi objecto de apreciação pelo Tribunal de Contas, através do acórdão n.º 61/91, 2ª Secção, de 11/04/91 (publicado no Diário da República, II Série, n.º 134, de 14 de Junho de 1991). No referido aresto, em consequência das conclusões apontadas na parte V, a fls.
179 e segs., determinou-se, no ponto 31.3:
'31.3.1- A prossecução do presente inquérito, agora com os objectivos adequados
às verificações desta segunda fase, e que são os seguintes:
1. - A continuação do apuramento, no período considerado viável, do custo total do projecto, nas suas diversas componentes -- dado ser um projecto PIDDAC
-- e, em especial, no do investimento público.
2. - A indagação, conforme programa aprovado por despacho do Conselheiro Relator, das irregularidades indiciadas em algumas das empreitadas acima referidas, com vista ao apuramento de eventuais responsabilidades.
3. - A averiguação da situação relativa à continuação das obras e ao início da gestão operacional deste empreendimento público'.
E, acrescentou-se, no ponto 31.4:
'Para isso, e ainda ao abrigo, por enquanto, do dever legal de colaboração, os auditores solicitarão os elementos e as prestações de facto necessárias à sociedade unipessoal de capitais públicos (do Estado) Centro Cultural de Belém-SGII, SA e à Fundação das Descobertas, ficando claro que ambas estão obrigadas a prestar os elementos imprescindíveis ao apuramento da programação e execução deste investimento público e da gestão do bem público resultante da obra em curso'.
2.- Deste acórdão vieram a ser interpostos para o Plenário da Secção, dois recursos, em 11 de Março e 2 de Abril de 1993, o primeiro, pelo 'Centro Cultural de Belém - Sociedade de Gestão e Investimento Imobiliário, SA - CCB-SGII,SA', e, o outro, pelo Ministério Público. Ambos os recursos foram admitidos, tendo os recorrentes apresentado as alegações que constam de fls. 220 a 313 e 194 a 209, respectivamente.
3.- Através do acórdão n.º 147/94, de 13 de Julho de 1994, o Tribunal de Contas, em plenário da 2ª Secção, decidiu «não conhecer dos recursos interpostos do acórdão n.º 70/93-2ª Secção, de 25 de Fevereiro, pela 'Centro Cultural de Belém - Sociedade de Gestão Imobiliária, SA' e pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal». Para tanto, fundamentou-se o acórdão nas seguintes conclusões:
'a) O Acórdão n.º 70/93-2ª. Secção, de 25 de Fevereiro não constitui uma sentença proferida no exercício de poderes jurisdicionais do Tribunal de Contas, seja em processos ordinários de julgamento de contas, em processos especiais de multa, de anulação de acórdão ou de impossibilidade de julgamento, nem nele se descortina um conteúdo material idêntico aos das decisões proferidas pelo Tribunal no âmbito daqueles processos, que permita a sua qualificação como decisão jurisdicional do Tribunal de Contas, passível de recurso, nos mesmos termos em que o são as decisões jurisdicionais do Tribunal proferidas naqueles processos jurisdicionais típicos deste órgão jurisdicional; b) O Acórdão n.º. 70/93-2ª. Secção não estabelece qualquer relação processual directa e indirectamente com qualquer agente de quaisquer factos que sejam alguma vez qualificados como infracções financeiras, cognoscíveis e julgáveis pelo Tribunal de Contas, que sejam fonte geradora de responsabilidades financeiras, reintegratórias ou sancionatórias efectiváveis também pelo Tribunal de Contas, nem nele se exercem quaisquer poderes injuntivos que se traduzam na condenação em reposição ou em multa, ou na respectiva relevação, assente numa prévia avaliação do grau de culpa dos seus autores, quer a título de dolo ou de negligência e com consequente afectação da esfera jurídica individual e patrimonial de quem quer que seja, nem nele se descortina um conteúdo materialmente idêntico que permita qualificá-lo como uma decisão jurisdicional do Tribunal de Contas de carácter injuntivo, através de condenação ou reposição ou multa, ou através da respectiva relevação, e como tal passível de recurso nos mesmos termos em que o são as decisões com aquele conteúdo proferidas pelo Tribunal de Contas nos processos ordinários de julgamento de contas ou no processo especial de multa; c) O Acórdão n.º 70/93-2ª. Secção constituiu em 1990 e 1991 um incidente autónomo funcionalmente dirigido à elaboração dos Pareceres do Tribunal de Contas sobre as Contas Gerais do Estado relativas aos anos económicos de 1990 e
1991, realizado com fundamento no disposto no artigo 10º alínea a), b), c), d), f) e g) e art.º n.º 16º n.º 2 alínea a) da Lei n.º 86/89, integrando-se no exercício de poderes do Tribunal de Contas, de natureza extra-jurisdicional, revestindo, em função do acto final a que se destinava, a natureza de acto opinativo, intercalar, instrumental e subsidiário do Parecer da Conta Geral do Estado; d) O Acórdão n.º 70.93-2ª. Secção não configura uma decisão jurisdicional, que nos termos da lei de processo do Tribunal de Contas em vigor, seja passível de recurso, nem o seu conteúdo é idêntico ao das decisões jurisdicionais do Tribunal e Contas, a que a lei de processo em vigor admita a possibilidade de interposição de recurso».
4.- Notificados desta decisão, veio, então, o Ministério Público interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da al. a) do n.º1 do artigo
70º, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, do acórdão n.º 70/93-2ª Secção, pretendendo a apreciação da «inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 65/89, de
1 de Março», que terá sido desaplicado no referido acórdão, com fundamento na desconformidade com o artigo 216º n.º1 da Constituição da República Portuguesa
(cfr. requerimento de fls. 548). Por sua vez, o 'Centro Cultural de Belém - Sociedade de Gestão e Investimento Imobiliário, S.A.', não se conformando com o acórdão n.º 147/94, do Plenário da
2ª Secção, de 13 de Julho de 1994, interpôs também recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da al. b), do n.º1, do artigo 70º da Lei deste Tribunal « ... por o Tribunal 'a quo' ter aplicado ao caso sub-judice normas ou princípios gerais de direito que o levaram a rejeitar o recurso aduzido pela ora Recorrente por o mesmo (invocou-se no aresto aqui recorrido) incidir sobre uma decisão não jurisdicional do Tribunal de Contas, fundando-se o presente recurso na violação dos artigos 20º n.º1, 110º, 205º n.º2, 207º e 216 da Constituição da República Portuguesa» (cfr. requerimento de fls. 550). Ambos os recursos foram admitidos pelo Tribunal 'a quo' (cfr. despacho de fls.
552).
5.- No Tribunal Constitucional, por despacho do relator, foram os recorrentes convidados, ao abrigo do disposto nos artigos 75º-A, n.º5 e 76º, n.º2 da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, a completarem os seus requerimentos de interposição de recurso, sendo, o Ministério Público para «identificar a norma ou normas do Decreto-Lei n.º 65/89, de 1 de Março, cuja apreciação pelo Tribunal pretende», e, o 'Centro Cultural de Belém - Sociedade de Gestão e Investimento Imobiliário, S.A.' para «indicar a norma (ou normas) cuja inconstitucionalidade pretende que o Tribunal aprecie» (cfr. despachos de fls. 556 e 564). Respondendo ao convite formulado, veio o Ministério Público apresentar o requerimento que consta processado a fls. 558 a 561, pedindo a apreciação das « normas que - apesar da omissão de expressa pronúncia - terão sido desaplicadas, com fundamento no desrespeito pelas competências constitucionalmente cometidas ao Tribunal de Contas no artigo 216º n.º1 da Lei Fundamental - serão as que constam: a) Dos seguintes preceitos do Decreto-Lei n.º 65/89:
'- artigo 1º. n.ºs. 1 e 2 (no segmento em que se determina que o CCB-SGII assume a forma de sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos, regendo-se pela legislação comercial aplicável e, em parte, pelo estatuído no Decreto-Lei n.º 291/85, com a redacção emergente dos Decretos-Lei n.ºs. 211-A/86 e 237/87) em conjugação com o artigo 2º. n.ºs. 1 e 4 do Decreto-Lei n.º 65/89
(na parte em que se refere que o capital social se encontra integralmente realizado pelo Estado, que deverá dotar a sociedade dos meios financeiros necessários à plena satisfação dos encargos inerentes à construção do CCB).
- artigos 2º e 3º dos Estatutos anexos ao Decreto-Lei n.º 65/89 (na parte em que consideram objecto principal da sociedade a construção do empreendimento do CCB, limitando-lhe a duração ao tempo necessário ao cumprimento daquele seu objecto principal) em conjugação com a natureza jurídico-privada e comercial do ente instituído decorrente do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 65/89.
- artigo 3º do Decreto-Lei n.º 65/89 e artigos 6º. conjugado com o artigo 9º, 10º, 13º, n.º 3 e 15 dos Estatutos anexos, na parte em que determinam a estrutura orgânica da pessoa colectiva em colisão com a natureza unipessoal da sociedade que tem o Estado único e exclusivo accionista, decorrente do já citado artigo 2º, n.ºs. 1 e 3, do Decreto-Lei n.º 65/89.
b) Enquanto interpretadas e aplicadas em conexão com a norma constante dos artigos 1º e 17º da Lei n.º 86/89, de 8 de Setembro - Lei da Reforma do Tribunal de Contas - na parte em que define taxativamente os sujeitos passivos da acção fiscalizadora deste Tribunal, dela excluindo as entidades dotadas de um estatuto de direito privado, como é o CCB, face aos preceitos legais atrás invocados '.
Também o 'Centro Cultural de Belém - Sociedade de Gestão e Investimento Imobiliário, S.A.' veio completar o seu requerimento de interposição de recurso, o que fez nos seguintes termos:
'1.- A desconformidade constitucional que se pretende ver fiscalizada por esse Alto Tribunal respeita nomeadamente - melhor, em primeira mão - às normas e aos princípios gerais aplicados no Acórdão recorrido (pelo pleno da 2ª Secção do Tribunal de Contas) e com base nos quais se decidiu aí rejeitar o recurso que se interpusera, perante ele, do Acórdão n.º 70/93 da sua 2ª Secção, por se tratar alegadamente de decisão insusceptível de recurso. Essas normas ou princípio cuja inconstitucionalidade se requer, seja apreciada em primeiro lugar, no presente recurso, são, aquelas (ou aquele) segundo as quais só são susceptíveis de recurso as decisões do Tribunal de Contas proferidas no exercício de funções ou poderes tipicamente jurisdicionais, ou seja, as decisões que: a) 'estabelecem qualquer relação processual directa ou indirectamente com qualquer agente de quaisquer factos... que sejam fonte geradora de responsabilidades financeiras, reintegratórias ou sancionatórias' b) ou, então, 'em que se exercem poderes inspectivos que se traduzam na condenação em reposição ou multa', c) ou ainda aquelas em que 'se descortina um conteúdo materialmente idêntico... (com) as proferidas nos processos ordinários de julgamento de contas ou no processo especial de multa'.
2.- Pretende ver-se também apreciada a inconstitucionalidade do entendimento ou da interpretação das normas ou princípios com base nos quais o tribunal a quo considerou a possibilidade de fiscalização da actividade da ora Recorrente ser inserida na competência do Tribunal de Contas para a elaboração do Parecer sobre a Conta Geral do Estado, para controlo das sociedades subvencionadas ou financiadas por dinheiros públicos e para fiscalização da actividade financeira dos chamados gestores de facto, normas ou princípios que são: a) alíneas a) a g) do art.º 10º da Lei n.º 86/89; b) nos. 1, 2, 4 e 5 do art.º 16º da mesma Lei; c) alínea a) do n.º 1 do art.º 26º desse diploma; d) n.ºs. 1 e 2 do seu art.º 31º; e) o princípio segundo o qual são admitidos inquéritos do Tribunal de Contas sobre aspectos da actividade de entidades públicas ou privadas 'que para as averiguar ou sancionar fosse meio imprescindível' (a fls. 72 do Acórdão recorrido); f) n.º 7 do art.º 113º do Regimento do Conselho Superior da Administração Financeira do Estado (Decreto n.º 1831, de 1915), bem como do art.º 16º do Decreto com força de Lei 18 962 (de 25.X.1939) e no art.º 6º, n.º 3 do Decreto com força de Lei n.º 22 257 (de 15.II.1933) a fls. 95 do Acórdão recorrido. g) da fiscalização da actividade do CCB ao abrigo da teoria dos 'gestores de facto'.
3.- A Recorrente cinge a isto a arguição de inconstitucionalidade, porque não pode naturalmente pôr aqui em causa - que o Tribunal Constitucional conhece muito bem as regras de delimitação do objecto dos litígios e das correspondentes restrições cognoscitivas e decisórias da sua jurisdição - as inconstitucionalidades de que padece o Acórdão n.º 70/93 da 2ª Secção do Tribunal de Contas, sem que previamente seja apreciada a inconstitucionalidade das normas e princípios ao abrigo das quais foi proferido o Acórdão agora recorrido do plenário da 2ª Secção desse Tribunal». (sublinhados nossos).
6.- Ambos os recorridos alegaram. O Ministério Público neste Tribunal concluiu do seguinte modo as suas alegações:
1. '- Os inquéritos e auditorias, previstas em diferentes disposições da Lei de Reforma do Tribunal de Contas (Lei n.º 86/89, de 8 de Setembro), designadamente no n.º 5 do artigo 16º, são meios processuais instrumentais da realização da jurisdição e competências legalmente atribuídas àquele Tribunal, surgindo, deste modo, necessariamente coligados à realização de alguma das competências que a referida Lei lhe comete.
2. - Não podem ser sujeitos passivos de tais procedimentos, destinados, em sede de fiscalização sucessiva, a avaliar a regularidade da gestão financeira e a sancionar os responsáveis por eventuais irregularidades cometidas, entidades dotadas por lei de um estatuto de direito privado, ainda que se trate de sociedades unipessoais de capitais exclusivamente públicos, destinadas exclusivamente à realização de um investimento público financiado pelo Orçamento Geral do Estado, já que tais entidades estão subtraídas à jurisdição e competências legais do Tribunal de Contas.
3. - Tal restrição - que conduz a que o Tribunal de Contas não possa sindicar a gestão de dinheiros públicos postos à disposição de entidades com um estatuto de direito privado e apurar e sancionar a responsabilidade financeira dos respectivos representantes legais - não viola o preceituado no artigo 216º da Constituição da República Portuguesa.'
Por sua vez, a recorrente 'Centro Cultural de Belém - Sociedade de Gestão e Investimento Imobiliário, S.A.', na respectiva motivação, formulou as seguintes conclusões:
I. 'A decisão de não conhecer dos recurso interpostos do Acórdão n.º 70/93 da subsecção, que fez vencimento no Pleno da 2ª Secção do Tribunal de Contas, assentou na premissa de que esse Acórdão 'não configurava uma decisão judicial que...seja passível de recurso'
(alínea c) do Acórdão n.º 147/94).
II. Traduziu-se, assim, na denegação da garantia judicial efectiva, consagrada no art.º 20º, n.º 1 da CRP, 'para defesa dos direitos e interesses legítimos' dos cidadãos.
III. Tal garantia não se restringe às ofensas causadas por decisões jurisdicionais (maxime, por sentenças), antes se estende às decisões jurídicas (ou anti-jurídicas) de qualquer Poder ou Função do Estado, desde que lesivas, por si sós, de direitos ou de interesses legítimos.
IV. Não é, por o Acórdão n.º 70/93 ser (ou não ser) uma decisão judicial de uma subsecção do Tribunal de Contas, que deve ser reconhecida (ou denegada) a pretensão que alguém interessado, é claro, manifeste em ver a sua conformidade legal ou constitucional ser judicialmente confrontada.
V. Na verdade - mesmo que se não trate de um acto de natureza jurisdicional - traduz indubitavelmente um acto ou decisão jurídica proferida por um órgão de um Poder público, no exercício de poderes de autoridade, com a qual se produziram efeitos lesivos da esfera jurídica da Recorrente.
VI. Demonstram-no exuberantemente as
'conclusões e decisões', que dele se transcreveram nos n.ºs. 55 a 62, bem como os factos alegados nos n.ºs. 92 a 96 destas alegações, caindo o referido Acórdão, assim, directamente, no âmbito da previsão do art.º 20º, n.º 1 da Constituição.
VII. Mais não fosse, porque - dado o pressuposto, que se elegeu e se demonstrou, de que o CCB, SGII, AS, pela sua natureza jurídica e estatuto legal, não é efectivamente uma daquelas entidades sobre que, nos termos da Constituição e da lei, recaem os poderes de fiscalização (auditoria, inquérito, inspecção, ou o que se lhe queira chamar) e de apreciação ou avaliação jurídico-financeira do Tribunal de Contas - porque, dizia-se, a invocação e exercício de poderes de fiscalização (inspecção ou auditoria), como aqueles que o Tribunal de Contas invocou e exerceu sobre a Recorrente, constitui, por si só, uma constrição dos seus direitos estatutários.
VIII. Além dos demais direitos da Recorrente - como o do seu norma, dignidade, reputação e integridade moral - que foram afectados por tal decisão (como se arguiu nestas alegações).
IX. Lesão que se estendeu, inclusive, à esfera de interesses legítimos da recorrente, na medida em que o Acórdão n.º
70/93 foi publicado - contra o que nele expressamente se determinava - antes do respectivo trânsito em julgado, estando ainda a correr os recurso que se haviam interpostos para o tribunal aqui recorrido.
X. Nem é o facto de o Acórdão n.º 70/93 constituir - se é que constitui, como se invocou na alínea c) das conclusões do Acórdão aqui recorrido - 'um incidente autónomo funcionalmente dirigido à elaboração dos Pareceres do Tribunal de Constas sobre as Contas Gerais do Estado' ou se configurar, como um acto 'opinativo, intercalar, instrumental e subsidiário do (desse) Parecer', que prejudicará a proposição da sua efectividade e lesividade jurídicas. As decisões preparatórias, intercalares, instrumentais ou acessórias de procedimentos ou decisões jurídicas principais - por terem essa natureza ou carácter instrumental, (juridicamente) votado à preparação de outro acto - não deixam de poder ser directamente lesivas de interesses e posições jurídicas (procedimentais ou substantivas) de terceiros, sendo dado ou princípio adquirido, hoje, no Direito Público, esse da destacabilidade (contenciosa) dos actos preparatórios e instrumentais dos procedimentos e decisões jurídico-públicas, revelado, por exemplo, no art.º 9º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril (ETAF).
XI. Aliás, o facto de o Tribunal a quo - ao pretender justificar a publicação do Acórdão n.º 70/93 (e do Acórdão n.º 61/91) no Diário da República - considerar que este processo constitui um 'incidente autónomo' do Parecer sobre a Conta Geral dos Estados já revela bem a sua destacabilidade procedimental, substantiva e impugnatória.
XII. Que os efeitos jurídicos constrangedores da esfera de direitos e interesses da Recorrente, por ele(s) directamente produzidos, caracterizam definitivamente.
XIII. Fica arguido, assim, que a decisão do Plenário da 2ª Secção do Tribunal de Contas, ao recusar os recursos interpostos do Acórdão n.º 70/93, da sua subsecção, por não se tratar de uma decisão jurisdicional, fez uma interpretação inconstitucional da norma da alínea a) do n.º 1 do art.º 26º da Lei n.º 86/89 e do princípio geral de direito da irrecorribilidade dos actos meramente preparatórios instrutórios ou instrumentais, como violação do art.º 20º n.º 1 da Constituição, ou seja da garantia da tutela judicial de direitos e interesses legítimos ofendidos (por acto de autoridade).
XIV. Há mais normas (e princípios) constitucionais postos em causa pelo enquadramento normativo dado à decisão recorrida.
XV. Na verdade, o juízo sobre a irrecorribilidade do Acórdão n.º 70/93 assentou - para além da sua natureza não jurisdicional - também no facto de o CCB, SA, ser uma daquelas entidades cujas despesas e gestão financeira podem ser objecto de auditoria ou fiscalização pelo Tribunal de Contas, para efeitos de elaboração do Parecer sobre a Conta Geral do Estado.
XVI. Fazendo assim uma interpretação inconstitucional do art.º 10º e do n.º 2 do art.º 16º da Lei n.º 86/89 (por referência ao art.º 17º da mesma lei), com violação do art.º 216º da Constituição.
XVII. Questão que pode naturalmente ser perspectivada pela vertente da desaplicação inconstitucional do Decreto-Lei n.º
65/89 (que criou e enquadrou estatutariamente o CCB, SA), face ao mesmo art.º
216º da Constituição.
XVIII. Arguição, cuja fundamentação a Recorrente remete para as alegações do recurso do Exmo. Magistrado do Ministério Público.
XIX. Por outro lado, dever constitucional de coadjuvação com os tribunais - mesmo que fosse constitucionalmente susceptível de extensão a particulares, como se fez no art.º 31º, n.º 1 da Lei n.º 86/89 - não comporta os deveres e sujeições que o Tribunal de Contas, no Acórdão n.º
70/93, e agora no Acórdão n.º 147/94, fez impender sobre a Recorrente.
XX. O sentido constitucional da coadjuvação com os tribunais não abrange manifestamente a sujeição às auditorias e inquéritos que sejam, afinal, realizados pelo próprio Tribunal coadjuvado e não pela entidade coadjuvante.
XXI. Ou seja, também a norma invocada e aplicada nesta sede, pelo Acórdão recorrido - a do citado n.º 1 do art.º 31º da Lei n.º
86/89 - viola a Constituição (art.º 205º, n.º 3).'
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
II
1.- Do objecto dos recursos: São, pois, dois os recursos de constitucionalidade interpostos para este Tribunal:
· O primeiro recurso, interposto pelo Ministério Público, ao abrigo da al. a) do n.º1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, do acórdão n.º
70/93, 2ª Secção, do Tribunal de Contas, de 25/02/93, tendo por fundamento a
'eventual' desaplicação dos preceitos do Decreto-Lei n.º 65/89, com a dimensão e interpretação imputada no requerimento de fls. 558 a 561; e
· O segundo, apresentado pelo 'Centro Cultural de Belém - Sociedade de Gestão e Investimento Imobiliário, S.A.', ao abrigo da al. b), do n.º1, do artigo 70º, da Lei deste Tribunal, do acórdão n.º 147/94, de 13 de Julho de
1994, do plenário da 2ª Secção, tendo por objecto, em primeiro lugar, a apreciação da inconstitucionalidade das «normas ou princípio ... segundo as quais só são susceptíveis de recurso as decisões do Tribunal de Contas proferidas no exercício de funções ou poderes tipicamente jurisdicionais ...», e, em segundo lugar, «a inconstitucionalidade do entendimento ou da interpretação das normas ou princípios com base nos quais o tribunal a quo considerou a possibilidade de fiscalização da actividade da ora recorrente ser inserida na competência do Tribunal de Contas para a elaboração do Parecer sobre a Conta Geral do Estado, para controlo das sociedades subvencionadas ou financiadas por dinheiros públicos e para fiscalização da actividade financeira dos chamados gestores de facto, normas ou princípios que são ...» os indicados sob as alíneas a) a g) do requerimento de fls. 565 a 567 (cfr. supra referido em I.5.). Sucede, porém, que não se verificam os pressupostos legais para que se possa conhecer dos recursos acima enunciados, conforme se passa a explicitar.
2.- Do não conhecimento do recurso interposto pelo Ministério Público:
2.1.- O aresto recorrido (o acórdão n.º 70/93-2ª Secção, de 25/02/93), que apreciou o processo referente à segunda fase da auditoria ao projecto de investimento/PIDDAC, denominado 'Conjunto Monumental de Belém' (situação de execução do projecto até 31/12/1991, na sequência da auditoria realizada à primeira fase do mesmo projecto de investimento e que foi objecto de apreciação pelo Tribunal de Contas, através do acórdão n.º 61/91, 2ª Secção, de 11/04/91, publicado no Diário da República, II Série, n.º 134, de 14 de Junho de 1991), ordenou «a prossecução do presente inquérito, agora com os objectivos adequados
às verificações desta segunda fase ...», enunciados sob os n.ºs 31.3.1 a 31.3.4 do mesmo aresto, e determinou, no ponto 31.4, que: «Para isso, e ainda ao abrigo, por enquanto, do dever legal de colaboração, os auditores solicitarão os elementos e as prestações de facto necessárias à sociedade unipessoal de capitais públicos (do Estado) Centro Cultural de Belém-SGII, SA e à Fundação das Descobertas, ficando claro que ambas estão obrigadas a prestar os elementos imprescindíveis ao apuramento da programação e execução deste investimento público e da gestão do bem público resultante da obra em curso». Porém, o Tribunal de Contas, em plenário da 2ª secção, através do acórdão n.º
147/94, de 13 de Julho de 1994, decidiu não conhecer dos recursos interpostos daquele acórdão, pelo Ministério Público e pelo 'Centro Cultural de Belém - Sociedade de Gestão e Investimento Imobiliário, S.A.'., sob o entendimento de que o acórdão recorrido « não configura uma decisão jurisdicional, que nos termos da lei de processo do Tribunal de Contas em vigor, seja passível de recurso, nem o seu conteúdo é idêntico ao das decisões jurisdicionais do Tribunal e Contas, a que a lei de processo em vigor admita a possibilidade de interposição de recurso». Como se afirma no acórdão n.º 147/94, nas conclusões a que já se fez referência, o acórdão n.º 70/93-2ª Secção, «... não constitui uma sentença proferida no exercício de poderes jurisdicionais do Tribunal de Contas, seja em processos ordinários de julgamento de contas, em processos especiais de multa, de anulação de acórdão ou de impossibilidade de julgamento, nem nele se descortina um conteúdo material idêntico aos das decisões proferidas pelo Tribunal no âmbito daqueles processos, que permita a sua qualificação como decisão jurisdicional do Tribunal de Contas, passível de recurso, nos mesmos termos em que o são as decisões jurisdicionais do Tribunal proferidas naqueles processos jurisdicionais típicos deste órgão jurisdicional». Este entendimento, assim professado, leva-nos, necessariamente, à abordagem de uma questão preliminar, qual seja a de averiguar se ao Tribunal Constitucional assiste competência para sindicar o aresto impugnado, considerado pelo Tribunal de Contas como decisão não jurisdicional. A questão assume particular relevância tendo em conta que este Tribunal já se pronunciou sobre a matéria em causa, concluindo em sentido negativo, através dos acórdãos n.ºs 211/86, 238/86 e 266/86, de 18/06/86, 16/07/86 e 29/07/86
(publicados no Diário da República, II Série, n.ºs 257, 262 e 277, de 07/11/86,
13/11/86 e 2/12/86, respectivamente), de cuja linha de argumentação se dará conta. Todavia, a partir do acórdão nº 214/90, publicado no Diário da República, II Série, de 17 de Setembro de 1990, o Tribunal Constitucional passou a considerar que, independentemente da natureza do visto, poderia apreciar as decisões do Tribunal de Contas nessa matéria.
2.2.- Nos termos do artigo 207º da Constituição, na redacção dada pela Revisão de 1982, aplicável ao caso, «nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados» (actual artigo 204º). De outro lado, o artigo 280º, n.º1, al. a) do texto constitucional acrescenta que cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade. Como se realça nos arestos supra mencionados, é discutível qual o alcance último destas prescrições, qual o âmbito material da sua aplicação, pois, não é seguro se o poder-dever de desaplicação de normas havidas por inconstitucionais apenas exista naqueles casos em que os tribunais exercem funções jurisdicionais ou se, para além destes casos, ainda subsista quando as funções exercidas não possam assim ser qualificadas. No entendimento de J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 1999, pág. 922): «Tribunais, no sentido dos artigos 204º e 280º, n.º1, devem considerar-se todos os órgãos jurisdicionais aos quais é atribuída, como função principal, a actividade jurisdicional, exercida por um juiz, unicamente submetido à Constituição e à lei. Por esta definição se verifica que há dois problemas prévios quanto à qualificação das autoridades judiciais: (i) natureza judicial do órgão; (ii) natureza judicial da actividade que ele desenvolve (cfr. Ac. TC 230/86, DR, I, 12-9-86). Relativamente ao segundo problema - natureza jurisdicional -, tende a considerar-se que para haver feito submetido a julgamento não é necessária a existência de litígio ou controvérsia jurídica entre partes (processos de jurisdição contenciosa), bastando a existência de um caso ou interesse juridicamente tutelado a resolver pelo juiz (processos de jurisdição voluntária), como, por exemplo, providências de alimentos, providências em relação aos cônjuges, etc.'. A função jurisdicional, tal como é descrita no artigo 205º, n.º2 (actual artigo
202º, n.º2) da Constituição, abarca três áreas especiais: - a defesa dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos (apontando directamente para a justiça administrativa); - a repressão das infracções da legalidade democrática
(visando, em particular, a justiça criminal); e - a resolução dos conflitos de interesses públicos e privados (contemplando, no essencial, a justiça cível. Por outro lado, a Constituição, no artigo 208º, a que corresponde o actual artigo 205º), trata as «decisões judiciais», reportando-se, sucessivamente, á sua fundamentação, obrigatoriedade, prevalência e modo de execução, o que nos leva a concluir que os atributos constitucionalmente concedidos a este preceito o aproximam e conexionam com a própria função jurisdicional, ou seja, as
«decisões judiciais», no discurso constitucional, hão-de em princípio, inserir-se no processamento de uma actividade jurisdicional. Aliás este entendimento é sufragado por Gomes Canotilho na obra supra citada, pág. 876, ao afirmar, com referência aos acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 211/86, 238/86 e 266/86, relativos ao Tribunal de Contas, já aqui mencionados: «Outro problema reside no facto de saber se de qualquer decisão de um tribunal - pelo facto precisamente de o ser - pode haver recurso para o TC. Por outras palavras: serão susceptíveis de recurso todas as decisões dos tribunais? Se a decisão do tribunal for não jurisdicional ou se estiver em causa um acto judicial não autónomo (ex: voto de vencido de um juiz, membro de tribunal colectivo) (...) deverá afastar-se a possibilidade de recurso»
(sublinhado nosso). Não sendo pacífica a resposta, poderá, ainda, suscitar-se a questão de saber se não poderão ser abrangidas pelas normas dos artigos 207º e 280º da Constituição, aquelas situações não enquadráveis no âmbito das funções jurisdicionais, mas que apresentam com esta fortes analogias, concretamente, aqueles casos em que uma entidade imparcial, com estatuto de juiz, tenha de decidir um certo caso concreto que lhe foi apresentado para apreciação através da aplicação de normas jurídicas, devendo a decisão ser acatada obrigatoriamente pelas partes ou entidades a que diga respeito.
2.3.- A decisão em causa nos autos foi proferida pelo Tribunal de Contas, órgão de soberania integrado no elenco das diversas categorias de tribunais (cfr. artigos 113º e 211º - actualmente, artigos 110º e 209º, da Constituição), cuja competência estava delimitada no artigo 216º do texto constitucional e, actualmente, prevista no artigo 214º da Lei Fundamental. A integração pela lei ordinária dos poderes do Tribunal de Contas era efectuada,
à data, pela Lei n.º 86/89, de 8 de Setembro (Reforma do Tribunal de Contas), que definia a competência e funcionamento deste Tribunal nos artigos 8º a 32º, entretanto revogada pela Lei n.º 98/97, de 26 de Setembro (Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas), que procedeu a nova reforma do Tribunal. Apesar desta alteração legislativa mantém-se em vigor a Lei n.º 14/96, de 20 de Abril, que havia alargado o exercício do controlo financeiro do Tribunal de Contas, ao sujeitar à fiscalização sucessiva as empresas públicas e as sociedades de capitais públicos e de economia mista controladas, as empresas concessionárias de serviços públicos e as fundações de direito privado que recebam anualmente e com carácter de regularidade fundos provenientes do Orçamento do Estado.
2.4.- Porém, o Tribunal de Contas, além das funções jurisdicionais, outras exerce que não têm aquela natureza, (cfr. Sousa Franco, Direito Financeiro e Finanças Públicas, Vol. I, pág. 285 e segs.; Afonso Queiró, Lições de Direito Administrativo, Vol. I, pág., 1976, pág. 100; Trindade Pereira, O Tribunal de Contas, pág. 79 e segs.; Freitas do Amaral, Direito Administrativo e Ciência da Administração, 1978, pág. 392 e segs.; Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. revista, pág. 818; e Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, T. I, pág. 266 e segs.). A este respeito, defendem Gomes Canotilho e Vital Moreira (obra supra cit. pág.
818) que 'o Tribunal de Contas não tem apenas funções jurisdicionais (fiscalizar a legalidade das despesas, julgar as contas); possui também funções de outra natureza, nomeadamente 'dar parecer sobre a Conta Geral do Estado' e outras contas públicas de grande relevância económica e orçamental, como as contas das regiões autónomas e da segurança social'. Na mesma linha, opina Marcelo Rebelo de Sousa (Organização Judicial, Responsabilidade dos Juizes e Tribunal Constitucional, pág. 19) que o Tribunal de Contas 'exerce funções não jurisdicionais, antes de controlo administrativo – económico-financeiro, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 216º e ao abrigo da alínea c) do mesmo artigo da Constituição da República Portuguesa'. E como exemplos de funções desta natureza o mesmo autor acrescenta: 'além da fiscalização prévia ao cabimento orçamental pela Lei n.º 86/89, de 8 de Setembro, o Tribunal de Contas julga das condições económicas-financeiras de contratos de Administração Pública, em sede de fiscalização sucessiva; pode promover inquéritos e auditorias à gestão financeira da Administração Pública; aprecia no parecer sobre a Conta Geral do Estado e as contas das regiões autónomas, aspectos administrativos'. Por sua vez, Diogo Freitas do Amaral (Curso de Direito Administrativo, vol. I,
2ª edição, 1994, pág. 291) qualifica a função de 'dar parecer sobre a Conta Geral do Estado' como constituindo 'uma função consultiva, de natureza técnica e política' contrapondo-a ao julgamento de contas que segundo este autor 'é uma função jurisdicional'.
Por último, Sousa Franco (O Tribunal de Contas, prefácio ao Livro de José Tavares e Lídio Magalhães, pág. 38) integra a competência de
'dar Parecer sobre a Conta Geral do Estado, na fiscalização sucessiva constituído pelos 'actos de mera apreciação' por contraposição às restantes funções de fiscalização sucessiva, de julgamento de contas e de efectivação de responsabilidades financeiras. Segundo este autor 'o exemplo mais acabado e tradicional do acto de mera apreciação é constituído pelo parecer sobre a Conta Geral do Estado'.
E, acrescenta: 'a competência de simples apreciação desenvolve-se também através de um outro tipo de operações processuais informais e actos do Tribunal, que a lei designa por operações de verificação das contas, por amostragem ou por recurso a outros métodos selectivos, incluindo auditorias
(art.º 16º, n.º 4), ou por inquéritos e auditorias, conducentes a relatórios conclusivos (art.º 16º, n.º 5, da Lei n.º 86/89, de 8 de Setembro)'.
Desta competência de simples apreciação se distingue, segundo este autor, o julgamento de contas que 'constitui o núcleo de actividade indiscutivelmente jurisdicional do Tribunal de Contas' (obra supra cit., pág.
42) importando por isso 'evitar qualquer confusão entre o processo de julgamento de contas e as outras formas de fiscalização sucessiva. Ali, encontramo-nos perante um acto tipicamente funcional, um processo organizado para aquela produção, princípios de relacionamento entre as partes em litígio, potencial, e o Tribunal, ao qual caberá resolver nos termos de direito que são típicos de um processo funcional. Nas outras formas de fiscalização sucessiva encontramo-nos perante meros procedimentos, sem qualquer litígio jurídico, sem qualquer decisão jurisdicional'.
Segundo o mesmo autor estes actos de mera apreciação
'estabelecem ou definem factos, formulam juízos e são independentes de consulta ou da intenção de esclarecerem uma entidade principal destinatária da consulta ou do conselho.
Não se trata, em rigor, de sentenças de mera apreciação, pois o estabelecimento dos factos não pretende ser definitivo; trata-se de actos de natureza extra jurisdicional'. (pág. 38, nota 29). Ora, foi precisamente por considerar que o acórdão n.º 70/93 não era uma decisão jurisdicional, que o Tribunal de Contas, em plenário da 2ª secção, através do acórdão n.º 147/94, de 13 de Julho, não tomou conhecimento dos recursos dele interpostos. Vejamos:
Como já se disse, o acórdão n.º 70/93, 2ª Secção, apreciou o processo referente à segunda fase da auditoria ao projecto de investimento/PIDDAC, denominado 'Conjunto Monumental de Belém' (situação de execução do projecto até 31/12/1991), que assumiu a forma processual de um processo de inquérito (na modalidade especial de auditoria), na sequência da auditoria realizada à primeira fase do mesmo projecto de investimento e que foi objecto de apreciação pelo Tribunal de Contas, através do acórdão n.º 61/91, 2ª Secção, de 11/04/91 (publicado no Diário da República, II Série, n.º 134, de 14 de Junho de 1991).
A primeira fase da auditoria, que foi objecto de apreciação pelo Tribunal de Contas no acórdão 61/91, abrangeu a execução financeira relativa aos anos económicos de 1989 e 1990, tendo as respectivas conclusões sido posteriormente vertidas nos 'Pareceres do Tribunal de Contas sobre a Conta Geral do Estado relativos aos anos económicos de 1989 e 1990'
(publicados no Diário da República, na IIª série, de 17 de Julho de 1992, pág.
6.608; e no suplemento à IIª série, de 2 de Dezembro de 1992, pág. 11.422, respectivamente).
Quanto à segunda fase do projecto, a respectiva auditoria ficou concluída em 25/06/92 (Processo n.º 19/92-Audit), tendo sido objecto de apreciação pelo Tribunal de Contas, no âmbito do acórdão recorrido
(acórdão n.º 70/93).
À semelhança do que havia sucedido com as conclusões da auditoria relativa à 1ª fase do projecto, as conclusões referentes à auditoria da segunda fase, na parte aplicável à execução orçamental de 1991, vieram a ser incluídas no Parecer do Tribunal de Contas sobre a Conta Geral do Estado relativo ao ano económico de
1991 (publicado no Diário da República, suplemento à IIª série, de 30/09/93, pág. 10.216) , tendo o Tribunal utilizado aqui, na sua fiscalização, a mesma metodologia de apreciação relativamente às auditorias efectuadas aos anteriores programas/projectos/PIDDAC.
Ou seja, como se afirma no acórdão do Tribunal de Contas n.º 147/94, de 13 de Julho, tirado em plenário da 2ª secção, que não tomou conhecimento dos recursos interpostos do acórdão n.º 70/93, a inclusão das verificações, observações e das conclusões das auditorias efectuadas ao programa/projecto PIDDAC, denominado 'Conjunto Monumental de Belém', em
1990/1991 (1ª fase) e 1992/1993 (2ª fase), e que foram objecto de apreciação prévia pelo Tribunal de Contas, em subsecção, da 2ª secção, através do acórdão n.º 61/91, de 11 de Abril, e do acórdão n.º 70/93, de 25 de Fevereiro, respectivamente e vieram a ser incluídas nos Pareceres do Tribunal sobre a Conta Geral do Estado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1º, n.º1, alínea a), e no artigo 10º, alínea d), ambos da Lei 86/89, pressupõe a prévia realização de inquéritos e auditorias com fundamento no artigo 16º n.º2 da mesma Lei 86/89, tendo em vista funcionalmente a emissão do Parecer do Tribunal de Contas sobre a Conta Geral do Estado.
Assim, como se concluiu no supra citado acórdão n.º
147/94:
'O Acórdão n.º 70/93-2ª. Secção constituiu em 1990 e 1991 um incidente autónomo funcionalmente dirigido à elaboração dos Pareceres do Tribunal de Contas sobre as Contas Gerais do Estado relativas aos anos económicos de 1990 e 1991, realizado com fundamento no disposto no artigo 10º alínea a), b), c), d), f) e g) e art.º n.º 16º n.º 2 alínea a) da Lei n.º 86/89, integrando-se no exercício de poderes do Tribunal de Contas, de natureza extra-jurisdicional, revestindo, em função do acto final a que se destinava, a natureza de acto opinativo, intercalar, instrumental e subsidiário do Parecer da Conta Geral do Estado'.
Por outro lado, acrescenta aquele aresto:
'O Acórdão nº. 70/93-2ª. Secção não estabelece qualquer relação processual directa e indirectamente com qualquer agente de quaisquer factos que sejam alguma vez qualificados como infracções financeiras, cognoscíveis e julgáveis pelo Tribunal de Contas, que sejam fonte geradora de responsabilidades financeiras, reintegratórias ou sancionatórias efectiváveis também pelo Tribunal de Contas, nem nele se exercem quaisquer poderes injuntivos que se traduzam na condenação em reposição ou em multa, ou na respectiva relevação, assente numa prévia avaliação do grau de culpa dos seus autores, quer a título de dolo ou de negligência e com consequente afectação da esfera jurídica individual e patrimonial de quem quer que seja, nem nele se descortina um conteúdo materialmente idêntico que permita qualificá-lo como uma decisão jurisdicional do Tribunal de Contas de carácter injuntivo, através de condenação ou reposição ou multa, ou através da respectiva relevação, e como tal passível de recurso nos mesmos termos em que o são as decisões com aquele conteúdo proferidas pelo Tribunal de Contas nos processos ordinários de julgamento de contas ou no processo especial de multa'.
Em resumo, podemos afirmar que a decisão recorrida, pelo que acima ficou expresso, não foi proferida em nenhum dos processos jurisdicionais típicos do Tribunal de Contas, não concluiu pela aplicação de uma sanção típica daqueles processos e não tem, nesse sentido, carácter injuntivo. A aceitar-se a qualificação que o Tribunal de Contas faz das suas próprias decisões e a lógica dos acórdãos recorridos, tal decisão nem sequer pode ser
'equiparada' a «decisão jurisdicional» para efeitos de fiscalização concreta da constitucionalidade, na dimensão interpretativa mais ampla acima referida, desde logo porque a decisão não é obrigatória para entidades envolvidas, antes, apela ao 'dever legal de colaboração', com vista ao acatamento do entendimento que ali se defende. Nesta lógica, não tendo o acórdão n.º 70/93-2ª Secção as características próprias da actividade jurisdicional, pese embora a natureza judicial do órgão que nela intervém, a sua actividade não poderia considerar-se adequada ao funcionamento dos mecanismos da justiça constitucional consagrados na nossa Lei Fundamental, pelo que logo por aí não haveria de conhecer-se do recurso.
Seja como for, subsistem outras razões que sempre obstam ao seu conhecimento. Na verdade, o recurso interposto pelo Ministério Público, ao abrigo da al. a) da lei deste Tribunal teve como causa a alegada desaplicação pela decisão recorrida das normas do Decreto-Lei n.º 65/89, de 1 de Março, que criou e aprovou os estatutos da empresa 'Centro Cultural de Belém - Sociedade de Gestão e Investimento Imobiliário, S.A.'. Na resposta ao convite do relator para indicar a norma ou normas cuja inconstitucionalidade pretendia que o Tribunal apreciasse, o Ministério Público, além de apontar as normas e/ou segmento que terão sido implicitamente desaplicadas, conforme se referiu em I.5., alinhou as razões deste seu entendimento. Adiantou, então, o recorrente, que (cfr. requerimento de fls. 558 a 561):
'1. Na perspectiva do recorrente, a decisão recorrida terá procedido a uma recusa implícita e global de aplicação do regime jurídico emergente do Decreto-Lei n.º 65/89, de 1 de Março e dos Estatutos nele aprovados e a ele anexos (cfr. o alegado a fls. 198/199 e 203/204), encarado em conexão com a previsão taxativa dos sujeitos passivos da acção fiscalizadora do Tribunal de Contas, enunciada pelos artigos 1º e 17º, n.ºs. 1 e 2, da Lei n.º 86/89, de 8 de Setembro.
2. Dito por outras palavras - e procurando clarificar o objecto do presente recurso de constitucionalidade - o Tribunal de Contas, no acórdão recorrido, terá recusado aplicar - mais do que normas ou preceitos jurídicos atomisticamente considerados - o bloco normativo constituído pelas normas do referido Decreto-Lei n.º 65/89 que atribuem natureza jurídico-comercial à pessoa colectiva por ele instituída, em conexão com a definição taxativa das entidades sujeitas à prestação de contas, constantes dos artigos 1º e 17º da referida Lei da Reforma do Tribunal de Contas. Na verdade, para decidir como decidiu no acórdão recorrido, o Tribunal de Contas: o ou se recusou a aplicar as normas do Decreto-Lei n.º 65/89 que atribuem natureza jurídico-privada e comercial do CCB; o ou se recusou a aplicar a norma que taxativamente define as entidades sujeitas à jurisdição do Tribunal de Contas e à prestação de contas, delas excluindo irremediavelmente as entidades dotadas por lei de um estatuto de direito privado, como é o caso do CCB.
3. Nesta óptica, as normas que - apesar da omissão de expressa pronúncia - terão sido desaplicadas ...»
Os termos em que se encontra redigido este requerimento, com o tempo verbal no condicional, logo deixam transparecer a incerteza do requerente quanto à eventual desaplicação das normas do diploma em causa, situação que se torna inequívoca quando, no ponto 2 do dito requerimento, se afirma que o acórdão, para decidir como decidiu, ou recusou aplicar as normas do Decreto-Lei n.º
65/89, ou recusou aplicar as normas que taxativamente definem as entidades sujeitas à jurisdição do Tribunal de Contas (artigo 1º e 17º da lei da Reforma do Tribunal de Contas).
2.5.- A via de recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento na recusa de aplicação de uma norma jurídica, só se abre se o tribunal a quo tiver rejeitado, com fundamento na sua inconstitucionalidade, a aplicação ao caso concreto do conteúdo ou do regime constante de uma determinada norma jurídica
(cfr. acórdão n.º 350/92, de 10/11/92, publicado no Diário da República, II Série, S-63, de 16/03/93). Aos casos de recusa expressa de aplicação equivalem-se os casos de simples recusa implícita da norma, com fundamento em inconstitucionalidade (cfr., entre outros, acórdãos n.ºs 399/89 e 16/96, de 18/05/89 e 16/01/96, publicados no Diário da República, II Série, de 14/09/89 e 15/05/96, respectivamente). Ora, é certo que as normas que o recorrente diz terem sido desaplicadas não se mostram estranhas aos fundamentos do acórdão recorrido. Mas, não tendo sido expressamente desaplicadas, a verdade é que da lógica da decisão recorrida também não decorre uma eventual desaplicação implícita com fundamento em inconstitucionalidade. De resto, nem o recorrente equacionou e apontou na decisão recorrida os fundamentos que permitam apurar dessa eventual desaplicação implícita. Consequentemente não deve tomar-se conhecimento do recurso.
3.- Do não conhecimento do recurso interposto pelo 'Centro Cultural de Belém - Sociedade de Gestão e Investimento Imobiliário, S.A.' do acórdão 147/94, de 13 de Julho de 1994:
3.1.- Constitui jurisprudência reiterada, impressiva e uniforme do Tribunal Constitucional que os recursos de constitucionalidade interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º1 do artigo 70º da sua Lei Orgânica, como é o caso dos presentes autos, só são admissíveis se congregarem necessariamente alguns pressupostos, um dos quais consiste na suscitação da questão de constitucionalidade pelo recorrente durante o processo e o que subentende a aplicação da norma impugnada como ratio decidendi, pela decisão recorrida. Deste logo, o recurso de constitucionalidade não visa a apreciação de constitucionalidade de uma decisão judicial qua tale, reportando-se o sistema de fiscalização a normas jurídicas, como é pacífico: não se discute a constitucionalidade da decisão, uma vez que só interessa para o julgamento da causa o juízo que na decisão se contenha sobre a constitucionalidade da norma. Assim, competindo aos recorrentes o ónus de suscitação da questão concreta de constitucionalidade, deverão estes cumpri-lo, referenciando-a normativamente, pondo desse modo em causa, por alegada violação de preceito constitucional, o critério jurídico utilizado na decisão ao aplicar a norma jurídica questionada. E, nesta medida, quando, nomeadamente, se discuta uma dimensão interpretativa, como é o caso, os recorrentes, além de suscitarem atempadamente a questão, deverão fazê-lo de forma clara e perceptível, em termos de o Tribunal recorrido saber que tem essa questão para resolver e não subsistam dúvidas quanto ao sentido da mesma - até porque, frequentemente, não se revela tarefa fácil traçar com nitidez a linha de demarcação entre a interpretação discutida e a decisão qua tale, cuja reapreciação não pode, nesta sede, ser reaberta.
3.2.- O recurso do 'Centro Cultural de Belém - Sociedade de Gestão e Investimento Imobiliário, S.A.' foi interposto ao abrigo da al. b) do n.º1 da Lei n.º 28/82, e respeita, no dizer do requerente, 'em primeira mão - às normas e aos princípios gerais aplicados no Acórdão recorrido (pelo pleno da 2ª Secção do Tribunal de Contas) e com base nos quais se decidiu aí rejeitar o recurso que se interpusera, perante ele, do Acórdão n.º 70/93 da sua 2ª Secção, por se tratar alegadamente de decisão insusceptível de recurso. Essas normas ou princípio cuja inconstitucionalidade se requer seja apreciada em primeiro lugar, no presente recurso, são, aquelas (ou aquele) segundo as quais só são susceptíveis de recurso as decisões do Tribunal de Contas proferidas no exercício de funções ou poderes tipicamente jurisdicionais..' Ora, a recorrente, nesta parte, apesar do convite efectuado, não indica quais as normas aplicadas pela decisão recorrida que serviram de fundamento ao não conhecimento do recurso, sendo certo que ao Tribunal Constitucional não compete suprir a eventual falta de indicação das normas que a recorrente considera de inconstitucionais e que pretende submeter ao julgamento deste Tribunal.
3.3.- Quanto ao segundo ponto do requerimento a que vimos aludindo, refere a requerente que 'Pretende ver-se também apreciada a inconstitucionalidade do entendimento ou da interpretação das normas ou princípios com base nos quais o tribunal a quo considerou a possibilidade de fiscalização da actividade da ora Recorrente ser inserida na competência do Tribunal de Contas para a elaboração do Parecer sobre a Conta Geral do Estado, para controlo das sociedades subvencionadas ou financiadas por dinheiros públicos e para fiscalização da actividade financeira dos chamados gestores de facto, normas ou princípios que são: ...' Porém, ainda que se entenda que as normas invocadas o foram na perspectiva de que serviram de fundamento ao aresto recorrido para não conhecer do recurso - e só nesta perspectiva podiam ser aqui chamadas - a decisão recorrida não fez aplicação dessas normas, já que não se pronunciou sobre a questão da fiscalização da actividade da recorrente mas unicamente sobre a recorribilidade do anterior acórdão do mesmo Tribunal.
4.- Em conclusão, por falta de verificação dos pressupostos, não pode tomar-se conhecimento dos recursos.
III
Nestes termos, decide-se não tomar conhecimento dos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo 'Centro Cultural de Belém - Sociedade de Gestão e Investimento Imobiliário, S.A.'. Sem custas, por não serem devidas. Lisboa, 9 de Novembro de 1999 Alberto Tavares da Costa Vítor Nunes de Almeida Paulo Mota Pinto Artur Maurício Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa