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Processo nº 487/00
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, proferiu o Relator a seguinte DECISÃO SUMÁRIA:
'1. A. B., com os sinais identificadores dos autos, veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ‘ao abrigo das alíneas a), c) e b) do nº 1 do Artº 70º, e no prazo previsto pelo Artº 75º, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro e pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro’, dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção), de 8 de Fevereiro e de 31 de Maio de 2000, o primeiro ‘negando a revista e confirmando o Acórdão recorrido’ (o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que havia confirmado as decisões de primeira instância) e o segundo a indeferir um pedido de arguição de nulidades, ‘ao abrigo do disposto no artº 732º do Cód. Proc. Civil’. No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade invoca o recorrente que pretende ‘ver apreciada a inconstitucionalidade das normas dos Artºs 56º, nº 1 e 348º, nº 2 do Código Civil Português cuja aplicação a decisão recorrida recusou aos presentes autos, isto é, in casu, recusou a aplicação da lei espanhola – o recorrente é de nacionalidade espanhola – à relação de filiação que aqui judicialmente se pretende estabelecer, violando além das citadas disposições legais o princípio do reconhecimento e aplicação das leis estrangeiras’ e pretende ‘ainda ver apreciada a inconstitucionalidade das normas do regulamento elaborado pelo Conselho Superior de Medicina Legal a que aludem os artºs 36º e 43º do Decreto Lei nº 387-C/87 de 29 de Dezembro, ao abrigo do qual foram realizados os exames hematológicos constantes dos autos, que ao assumir «... um valor inicial de probabilidade de paternidade de 50%» no exame de investigação de paternidade (cfr. fls. 107 dos autos) e ao não ter em consideração a nacionalidade dos investigados estrangeiros, como é o caso do recorrente, os prejudica duplamente, tais normas e procedimento violam o artigo
13º da Constituição que consagra o princípio constitucional da igualdade’ (e neste último ponto o recorrente reedita um anterior requerimento, feito ‘ao abrigo da al. b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro’, que não chegou a ser apreciado no Supremo Tribunal a quo).
2. Tendo em conta os fundamentos do presente recurso e a identificação do seu objecto, adianta-se desde já que dele não se pode tomar conhecimento, por faltarem os pressupostos processuais específicos que a lei exige no artigo 70º, da Lei nº 28/82, correspondendo ao artigo 280º, nºs 1 e 2, da Constituição. Desde logo, em primeiro lugar, pode afirmar-se não ter sentido a invocação da alínea c), do nº 1, do artigo 70º, por se não revelar nos acórdãos recorridos nenhuma decisão negativa, ou seja, desaplicação de norma constante de acto legislativo ‘com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado’, nem tal lei é identificada. Em segundo lugar, e quanto ao fundamento da alínea a), do mesmo nº 1, do artigo
70º, a respeito das ‘normas dos Artºs 56º, nº 1 e 348º, nº 2 do Código Civil Português cuja aplicação a decisão recorrida recusou nos presentes autos’, se com isso o recorrente pretende significar que se ‘recusou a aplicação da lei espanhola – o recorrente é de nacionalidade espanhola – à relação de filiação que aqui judicialmente se pretende estabelecer’, tal aconteceu ou teria acontecido – o que se aceita por comodidade de raciocínio – à margem de qualquer discussão jurídico-constitucional. A tal propósito, e sem identificar aquelas normas do Código Civil, os acórdãos recorridos limitam-se a dizer que a ‘questão da aplicabilidade ou inaplicabilidade da lei espanhola no caso sub judice’ foi tratada no acórdão do tribunal da relação e que ‘o Supremo plasmou nos termos do artº 713º nº 5 do C.P.C.’, o que significa que o Supremo remeteu para os fundamentos da decisão da segunda instância. Ora, nesta decisão a questão é tratada no plano do direito infraconstitucional e da sua aplicação, e quanto a saber se ‘a sentença recorrida violou o artº 56º, nº 1 e 348º nº 2 do C. Civil e o princípio do conhecimento e aplicação das leis estrangeiras’, não se descortinando nenhum discurso de desaplicação daquelas normas, com fundamento na sua inconstitucionalidade, nomeadamente à luz do
‘principio do reconhecimento e aplicação das leis estrangeiras’, que o recorrente invoca e suposto que é um princípio que se retira da Lei Fundamental. Ou seja: da remissão dos acórdãos recorridos para o acórdão do tribunal de relação não se colhe uma desaplicação normativa, fundada na violação de normas ou princípios constitucionais, tudo girando à volta da censura quanto à aplicação do direito infraconstitucional. Por último, resta o fundamento da alínea b), relativamente à
‘inconstitucionalidade das normas do regulamento elaborado pelo Conselho Superior de Medicina Legal a que aludem os artºs 36º e 43º do Decreto Lei nº
387-C/87 de 29 de Dezembro’, mas aí falha o pressuposto da arguição pelo recorrente da questão de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal de Justiça – e só podem relevar as alegações apresentadas perante o Supremo e não o requerimento de arguição de nulidades -, em termos processualmente adequados, de modo a obrigar o tribunal a quo a conhecer de tal questão (artigo 72º, nº 2, da Lei nº 28/82, na redacção do artigo 1º, da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro).
É que não se descobre na dita peça processual a suscitação de questão de inconstitucionalidade nos termos exigidos no citado artigo 72º, nº 2, reduzindo-se apenas a alegação do recorrente, no plano de vício processual
(‘nulidade prevista (...)’), à afirmação de um ‘procedimento que viola o princípio da igualdade previsto no Artº 13º da Constituição da República Portuguesa e o disposto no DL 387-C/87, de 29 de Dezembro (Artºs 36º e 43º)’, como consta da conclusão 9º (e no texto o recorrente limita-se também a invocar prejuízo para os investigados, ‘beneficiando os A.A. investigantes’, o que
‘viola claramente o Princípio da igualdade previsto no Artº 13º da Constituição da República Portuguesa’. Ora, isto não é nenhuma arguição de inconstitucionalidade normativa, antes é uma censura àquele ‘procedimento’, que beneficia as mães dos investigantes. E foi neste plano de censura que no acórdão de 8 de Fevereiro de 2000 se respondeu ao recorrente nestes termos:
‘Não se aceita a asserção de que os exames hematológicos efectuados assentam em pressupostos que ferem o princípio constitucional de igualdade, já que não é desferida qualquer critica cientifica devidamente autorizada e fundamentada ao critério utilizado, na parte visada, pela competente entidade que o aplicou na realização desses exames. Não se demonstra, em suma, que na efectivação de tais perícias, se não tenha utilizado método cientifico devidamente estruturado a este nível e, antes, se tenha partido de dados arbitrários, irracionais casuisticamente seleccionados’. Com o que também se não verifica aqui o referido pressuposto processual. Por tudo isto, não se pode tomar conhecimento do presente recurso.
3. Termos em que, DECIDINDO, não tomo conhecimento do recurso e condeno o recorrente nas custas, com a taxa de justiça fixada em sete unidades de conta.' B. Dela veio o recorrente apresentar 'reclamação para a conferência, o que faz nos termos do disposto no Artº 78º-A, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional', pedindo que seja 'admitido o recurso' e invocando, em síntese, o seguinte:
- 'Na perspectiva do recorrente, faz, portanto, sentindo a invocação da alínea c) do nº 1 do Artº 70º, da Lei 28/82, uma vez que os Artº 56º, nº 1 e 348º, nº 2 do Código Civil foram expressamente desaplicados por fundamento na sua ilegalidade por alegadamente colidirem com o disposto no Artº 68º da Constituição da República Portuguesa' ('Isto é, a desaplicação das normas constantes do acto normativo – as referidas disposições do Código Civil Português – com fundamento na sua ilegalidade por violação da lei com valor reforçado, ou seja, a própria Constituição, isto é, o seu Artº 68º expressamente invocado na decisão recorrida' – é outra afirmação do recorrente). o '(...) está preenchido o fundamento da alínea a) do nº 1 do Artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, porquanto a desaplicação das normas dos Artºs
56º e 348º, nº 2 do Código Civil resulta expressamente da invocação na decisão recorrida do Artº 68º da Constituição da República Portuguesa, com o qual, segundo o Acórdão recorrido, colidem, afastando assim, a sua aplicação', não sendo, portanto, verdadeiramente a questão 'tratada no plano do direito infraconstitucional e da sua aplicação'. o 'Com efeito, o recorrente expôs a situação nas suas alegações para o Supremo Tribunal de Justiça e nas conclusões arguiu expressamente tal inconstitucionalidade, tendo ainda posteriormente suscitado a questão a titulo de arguição de nulidades', relativamente às normas do questionado regulamento elaborado pelo Conselho Superior de Medicina Legal, sendo 'evidente que a arguição de inconstitucionalidade nos autos consubstancia sempre uma censura, daí que, designadamente quando o recorrente, nas suas alegações de recurso, conclui que: «viola claramente o princípio da igualdade previsto no Artº 13º da Constituição da República Portuguesa», está claramente a arguir uma inconstitucionalidade normativa' ('No que concerne à inconsideração da nacionalidade do recorrente – questão que a decisão reclamada omite – o ora reclamante só perante o acórdão recorrido se viu na possibilidade de arguir a inconstitucionalidade em causa, pois arguira tal questão como nulidade e não representara a possibilidade de tal entendimento não ser sufragado pelo Supremo Tribunal de Justiça, tendo-o feito logo no primeiro momento que se lhe impunha fazê-lo, ou seja, no requerimento de interposição do recurso' – adianta ainda o recorrente). C. Na sua resposta o Ministério Público veio dizer que a 'presente reclamação é manifestamente improcedente', na base das seguintes considerações:
'2 – Na verdade, o reclamante interpôs recurso de fiscalização concreta, fundando-se nas alíneas c), a) e b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
3 – No que se refere ao primeiro daqueles recursos, a própria reclamação deduzida confirma a falta de pressupostos de admissibilidade de recurso tipificado naquela alínea c), ao mostrar que o reclamante confunde manifestamente os conceitos de inconstitucionalidade e de violação de lei com valor reforçado, pretendendo que esta poderia ser, afinal, pura e simplesmente, a própria Constituição.
4 – No que se refere ao recurso tipificado na alínea a), é evidente que a decisão recorrida não desaplicou, com fundamento em inconstitucionalidade, qualquer norma do Código Civil – limitando-se a resolver uma questão, estritamente situada no âmbito da competência internacional dos tribunais portugueses e da aplicação das normas de direito internacional privado, interpretando e aplicando tais normas – conjugadas com o artigo 22º do Código Civil – enquanto consagra a reserva de ordem pública internacional – e com o artigo 133º do Código Civil Espanhol – enquanto admite procedimentos oficiosos de investigação da paternidade – em consonância e conformidade com o disposto no artigo 68º da Constituição da República Portuguesa.
5 – Ora, tal situação é perfeitamente diferente da que consiste na formulação de um verdadeiro juízo de inconstitucionalidade, não traduzindo qualquer recusa de aplicação normativa, susceptível de fundar o recurso previsto naquela alínea a).
6 – Finalmente – e no que se reporta ao recurso fundado na alínea b) – é evidente que o reclamante não tem na devida conta os pressupostos de tal recurso, nos termos exigidos pelo nº 2 do artigo 72º da Lei do Tribunal Constitucional, já que a argumentação expendida nas conclusões da alegação que apresentou no recurso de revista não traduz suscitação processualmente adequada de uma questão de inconstitucionalidade de normas'.
D. Tudo visto, cumpre decidir. Pouco mais há a adiantar ao que expõe o Ministério Público na sua resposta, pelo que a DECISÃO SUMÁRIA não sai minimamente beliscada na reclamação. Com efeito, e como se realça nessa resposta, o recorrente não alcança o fundamento da alínea c), do nº 1, do artigo 70º, da Lei nº 28/82, pretendendo aí incluir também o fundamento por ilegalidade, 'por violação da Constituição da República Portuguesa, ou seja, o citado Artº 68º da C.R.P.', mas o certo é que não pode confundir-se a Constituição com lei de valor reforçado, no sentido técnico com que esta expressão é utilizada naquela alínea c). Por outro lado, e quanto ao fundamento da alínea a) do mesmo nº 1, é evidente, como diz o Ministério Público, que a questão resolvida nas instâncias se situou estritamente 'no âmbito da competência internacional dos tribunais portugueses e da aplicação das normas de direito internacional privado', não envolvendo a formulação de nenhum juízo de inconstitucionalidade, nem ele se pode colher da simples invocação nas instâncias do artigo 68º da Constituição, norma que se limita a consagrar direitos fundamentais para os pais e para as mães, a propósito da conclusão a que aí se chegou de que, 'estando em causa o interesse específico do Estado Português' é 'sempre de aplicar as normas do Estado Português' ou de que 'é a lei portuguesa que se deve aplicar'. Por último, não destroi minimamente o recorrente a consideração a que se chegou na DECISÃO SUMÁRIA sobre a oportunidade da suscitação de uma questão de inconstitucionalidade e o modo como ela deve ser feita, com respeito às normas questionadas do regulamento referenciado (e não basta, como parece fazer crer o recorrente, invocar a violação do princípio da igualdade, para se ver aí uma suscitação de inconstitucionalidade normativa, quando verdadeiramente a censura
é dirigida ao procedimento seguido nos exames hematológicos). E. Termos em que, DECIDINDO, indefere-se a reclamação e não se toma conhecimento do recurso, condenando-se o recorrente nas custas, com a taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta. Lisboa, 22 de Novembro de 2000 Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Luís Nunes de Almeida