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Proc. nº 293/2000
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
I Relatório
1. PM instaurou, junto do Tribunal do Trabalho do Porto, acção de impugnação de despedimento, em processo ordinário, contra TR, Lda.. A autora pediu a declaração da ilicitude do despedimento e a condenação da ré no pagamento das remunerações desde a data do despedimento até à data da sentença e no pagamento da remuneração referente ao mês de Julho de 1995. A autora pediu ainda a condenação da ré na sua reintegração no posto de trabalho ou, em alternativa, no pagamento de uma indemnização.
O Tribunal do Trabalho do Porto, por decisão de 14 de Novembro de
1998, julgou a acção parcialmente procedente, condenando a ré no pagamento do montante de 616.880$00. Quanto à restante parte do pedido, a ré foi absolvida.
2. PM interpôs recurso da decisão de 14 de Novembro de 1998 para o Tribunal da Relação do Porto. Nas respectivas alegações, impugnou a falta de fundamentação da fixação da matéria de facto constante da decisão recorrida, afirmando o seguinte: A matéria de facto (...) carece absolutamente de fundamento(...).
É certo que não houve reclamação nos termos do artigo 67º do Código de Processo de Trabalho. Mas a exigência de fundamentação das decisões judiciais foi reforçada na Revisão de 1997, deixando apenas de ser exigida nos casos e nos termos previstos na lei para ser sempre exigida (cfr. Artigo 205º da Constituição) Deste modo essa norma do Código de Processo do Trabalho não podia ser aplicada, pelo que a decisão recorrida enferma ainda da nulidade da alínea b) do nº 1 do artigo 668º CPC.
Nas conclusões, a recorrente sustentou a inconstitucionalidade da decisão recorrida, afirmando que a 'sentença recorrida violou os artigos 53º, 18º e 205º da Constituição'. O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 11 de Outubro de 1999, negou provimento ao recurso, remetendo, nos termos do artigo 713º, nºs 5 e 6, do Código de Processo Civil, para a fundamentação da decisão recorrida.
PM arguiu a nulidade do acórdão de 11 de Outubro de 1999. No respectivo requerimento, a recorrente afirmou que a decisão de mérito 'carece absolutamente de fundamentação de facto e de direito, interpretando o nº 2 do artigo 713º do Código de Processo Civil de forma inconciliável com as normas dos artigos 205º, nº 1, e 20º da Constituição'.
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 20 de Março de 2000, indeferiu a arguição de nulidade, confirmando, consequentemente, o acórdão impugnado.
3. PM interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição das normas contidas nos artigos 67º, nºs 1 e 2, do Código de Processo do Trabalho e
713º, nºs 2 e 5, do Código de Processo Civil.
A Relatora proferiu decisão sumária, nos termos do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, no sentido de não tomar conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade, no que respeita às normas do artigo 67º, nºs
1 e 2, do Código de Processo do Trabalho, em virtude de não ter sido suscitado de modo adequado durante o processo a respectiva questão de constitucionalidade normativa, e no sentido de não julgar inconstitucional a norma do artigo 713º, nº 5, do Código de Processo Civil, de acordo com a jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional (Acórdãos nºs 151/99 e 123/2000).
4. A recorrente vem agora reclamar para a Conferência, com fundamento no artigo 78º-A, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, invocando, em síntese, que 'a questão de inconstitucionalidade das normas dos nºs 1 e 2 do artigo 67º do Código de Processo do Trabalho por violação da norma do artigo
215º da Constituição foi suscitada de forma bastante no ponto 4 das suas alegações de apelação' e que o artigo 713º, nº 5, do Código de Processo Civil,
'não é conciliável com as garantias constitucionais dos artigos 20º e 205º da Constituição (...) quando o objecto do recurso abarca as questões não conhecidas pelo Juiz a quo, cuja pronúncia pela Relação não poderia logicamente redundar em qualquer repetição do antes decidido, como acontece na apelação sub judice'.
5. Cumpre decidir.
II Fundamentação
6. A reclamante, no requerimento de fls 165 e ss, afirma que suscitou a inconstitucionalidade das normas do artigo 67º do Código de Processo do Trabalho nas alegações de recurso de apelação, sustenta que cumpriu o artigo
75º-A da Lei do Tribunal Constitucional (reconhecendo, porém, a 'pouca argumentação' por si apresentada) e invoca o artigo 236º do Código Civil
(relativo ao sentido normal da declaração negocial).
Em primeiro lugar sublinhar-se-á que na Decisão Sumária sob reclamação decidiu-se não tomar conhecimento do objecto do recurso relativamente ao artigo 67º do Código de Processo do Trabalho, em virtude de a respectiva questão de constitucionalidade normativa não ter sido suscitada de modo adequado durante o processo [cf. artigos 70º, nº 1, alínea b), e 72º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional]. Não esteve, pois, em causa a averiguação do cumprimento dos requisitos do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional. Por outro lado, também não se afigura pertinente invocar o artigo 236º do Código Civil. Com efeito, não está em causa a interpretação de uma qualquer declaração integradora de um negócio jurídico, mas sim a definição de uma questão de constitucionalidade perante o Tribunal, a configuração de um pedido e de uma pretensão processual que infirme a natural presunção de constitucionalidade das leis aplicáveis pelos tribunais.
No que se refere ao requisito do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, consistente na suscitação da questão de constitucionalidade normativa durante o processo de modo adequado, como se referiu na Decisão Sumária impugnada, o Tribunal Constitucional tem vindo a entender que uma questão de constitucionalidade normativa só se pode considerar suscitada de modo processualmente adequado quando é identificada a norma inconstitucional, quando é indicado o princípio ou norma constitucional violado e quando se apresenta uma fundamentação, ainda que sucinta, da inconstitucionalidade arguida.
Impende, pois, sobre o recorrente, o ónus de identificar, com rigor, a dimensão normativa impugnada e de indicar a contradição entre essa dimensão normativa e o preceito ou princípio constitucional violado.
Nos presentes autos, a reclamante afirmou que o artigo 205º da Constituição exige sempre a motivação das decisões judiciais e que o artigo 67º do Código de Processo do Trabalho (preceito que contém as regras processuais relativas à impugnação da falta ou insuficiência de especificação dos fundamentos nas decisões sobre a matéria de facto) não pode ser aplicado, sendo, consequentemente, a sentença nula. Nunca identificou uma qualquer dimensão normativa do preceito mencionado e nunca estabeleceu qualquer conexão entre esse preceito e o artigo 205º da Constituição. Nas conclusões das alegações do recurso de apelação, a reclamante limitou-se a afirmar que a decisão recorrida é inconstitucional.
A reclamante não delineou, pois, perante o tribunal a quo qualquer questão de constitucionalidade normativa. Desse modo, o Tribunal da Relação do Porto não se pronunciou (pois não tinha de se pronunciar) sobre a questão que a reclamante pretende agora submeter à apreciação do Tribunal Constitucional.
Não se verifica, portanto, o pressuposto processual do recurso interposto. Na verdade, as afirmações da reclamante na presente reclamação traduzem apenas a manifestação de um entendimento diferente do acolhido na decisão impugnada que, por não se encontrar fundamentado e por contrariar a jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional (e a própria lei), não pode proceder. Nessa medida, tais afirmações em nada abalam os fundamentos da Decisão Sumária impugnada.
Assim, a reclamação improcede nesta parte.
7. A reclamante afirma, por outro lado, que a aplicação do artigo
713º, nº 5, do Código de Processo Civil, é inconstitucional quando 'o objecto do recurso abarca as questões não conhecidas pelo Juiz a quo, cuja pronúncia pela Relação nunca poderia logicamente redundar em qualquer repetição do antes decidido, como acontece na apelação sub judice'.
Notar-se-á, numa primeira análise, que a suscitação de tal questão só surge pela primeira vez no presente processo na reclamação da Decisão Sumária. Ora, de acordo com a lei (artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional) e com a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre o momento processualmente adequado para suscitar a questão de constitucionalidade normativa (entre muitos outros, cf. o Acórdão n.º 155/95, referido na Decisão Sumária reclamada), a colocação da questão nesta fase processual afigura-se claramente intempestiva.
Porém, e de modo decisivo, sublinhar-se-á que os elementos constantes do processo demonstram que o recurso de apelação, no que respeita à questão de fundo, não abarcou qualquer questão verdadeiramente nova que implicasse uma apreciação substancialmente diversa da realizada pela primeira instância.
Na verdade, compulsando os autos, e como já se mencionou, verifica-se que a sentença do Tribunal do Trabalho do Porto, em face da matéria provada, considerou haver justa causa de despedimento, concluindo pela licitude do despedimento da ora reclamante.
Por seu turno, a reclamante, nas alegações do recurso de apelação, interpretando os factos provados, sustentou a existência de um ambiente laboral hostil, ao qual 'o juiz a quo foi completamente indiferente'. A reclamante discordou então da leitura que o juiz fez dos factos, concluindo pela inexistência de justa causa de despedimento e invocou ainda a falta de fundamentação dos factos provados, assim como a inclusão de matéria não articulada no conjunto de factos em apreciação.
Por último, o Tribunal da Relação do Porto, no acórdão de 11 de Outubro de 1999, no qual foi apreciado o recurso de apelação, decidiu a questão da 'falta de fundamentação dos factos dados como provados'; decidiu a questão
'da matéria de facto dita como não articulada e provada', e, quanto ao 'mérito propriamente dito', fez então aplicação do artigo 713º do Código de Processo Civil, remetendo para a decisão recorrida.
Dos elementos a que se acaba de fazer referência, resulta que a reclamante, no que respeita à questão de fundo, apreciando e interpretando os factos provados, apenas sustentou uma diferente subsunção normativa dos mesmos. Ao contrário do que sustenta, não definiu um novo objecto que implicasse a apreciação de questões ainda não ponderadas durante o processo nem suscitou tão-pouco a inconstitucionalidade normativa das normas definidoras de justa causa na dimensão com que foram aplicadas. Com efeito, a reclamante, com base nos factos assentes desde logo na primeira instância, somente apresentou uma leitura da situação que, na sua perspectiva, fundamentaria uma subsunção diversa da acolhida na decisão que considerou lícito o despedimento. O Tribunal da Relação do Porto, em face, naturalmente, dos mesmos factos, considerou que o incumprimento dos deveres laborais por parte da ora reclamante legitimou o despedimento, como, aliás, já o havia entendido o Tribunal do Trabalho do Porto. Nessa medida, remeteu para a fundamentação da decisão recorrida, onde se mencionam os fundamentos de tal decisão (importância da ordem dada e não cumprida, respectivo prejuízo para a empresa, comportamento desautorizante 'da legítima autoridade da entidade patronal').
Verifica-se, pois, que a ora reclamante, no recurso de apelação, não definiu um novo objecto. Apenas sustentou uma interpretação dos factos, procurando, em face de tal interpretação, retirar consequências jurídicas diversas das contidas na decisão do Tribunal do Trabalho do Porto. Na verdade, a pretendida interpretação do despedimento à luz da boa fé, sem a invocação de novos factos, só consubstanciará um problema de enquadramento normativo, aliás muito impreciso, dos factos já invocados e fixados pela primeira instância, e é suficientemente respondida (no plano da linguagem jurídica) com os fundamentos da decisão que, ponderando a gravidade do comportamento da reclamante, concluiu pela licitude do despedimento. Assim, a dimensão normativa do artigo 713º do Código de Processo Civil que a reclamante identifica pela primeira vez na presente reclamação (aquela que permitiria a remissão para os fundamentos da decisão recorrida quando o recurso abrange um objecto novo) não foi aplicada no acórdão do Tribunal da Relação do Porto. Desse modo, a Decisão Sumária impugnada procedeu à apreciação da conformidade à Constituição da dimensão normativa efectivamente aplicada pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto.
Improcede, portanto, também nesta parte a presente reclamação.
III Decisão
8. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando, consequentemente, a Decisão Sumária reclamada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs. Lisboa, 13 de Dezembro de 2000 Maria Fernanda Palma Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa