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Processo nº 96/98
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Em Dezembro de 1988, S.... instaurou no Tribunal da Comarca de Leiria uma acção sumária contra R... e D..., LIMITADA, na qual pediu que fossem declaradas
'constituídas por usucapião sobre o prédio propriedade da 2ª Ré e a favor do prédio urbano da A. servidões de vistas, ar e luz através da janela existente no respectivo alçado do lado poente e servidão de estilicídio do beirado desse lado sobre o dito prédio da 2ª Ré (...); que as rés fossem condenadas a 'reconhecerem a existência das acima mencionadas servidões' e a desfazerem determinadas obras que descreve, bem como a indemnizá-la dos prejuízos que invoca. Para o efeito, alegou, essencialmente, ser proprietária de um prédio que identifica, situado em Leiria, contíguo a um outro de que é proprietária a 2ª ré e se encontra parcialmente arrendado à 1ª ré que, autorizada pela respectiva senhoria, procedeu à realização de determinadas obras que prejudicaram as servidões referidas, como se descreve na petição inicial. Só contestou R..., sustentando que a acção deveria ser julgada improcedente
'logo no despacho saneador'. Neste despacho, porém, R... foi declarada parte ilegítima e, como tal, absolvida da instância 'quanto ao pedido de reconhecimento da existência das servidões reivindicadas', nos termos conjugados do disposto nos artigos 1311º e 1315º do Código Civil. Sendo arrendatária e, portanto, possuidora em nome alheio, entendeu o tribunal que não era 'parte legítima para discutir o pedido de reconhecimento da existência do direito reivindicado, por não ser titular do interesse directo de contradizer' (despacho de fls. 60). Distinguiu, para o efeito de determinar quem tinha legitimidade passiva na acção, os termos em que o artigo 1311º citado permite demandar o possuidor em nome próprio e o mero detentor, relacionando a escolha do autor com o carácter definitivo (só possível com a demanda do possuidor em nome próprio) ou provisório (único efeito quando seja réu o simples detentor) da providência pretendida. Tendo a autora proposto a acção contra ambos, entendeu o Tribunal estar assim demonstrado o objectivo de
'obter uma decisão que definitivamente ponha termo ao conflito subjacente à lide'. Assim, a 1ª Ré é parte ilegítima. Quanto à ré D..., LIMITADA foi condenada 'no pedido formulado pela autora', por não ter contestado. O processo prosseguiu no que toca aos outros pedidos contra a 1ª Ré, que interpôs recurso 'de apelação – na parte em que esse despacho decide do pedido
–, e de agravo, na parte restante' (fls. 93). Não foi admitida a apelação, por ilegitimidade (despacho de fls. 100). Da não admissão deste recurso reclamou a recorrente para o Tribunal da Relação de Coimbra, invocando, além do mais, que, por a ter absolvido da instância quanto ao pedido de reconhecimento das servidões e haver condenado no pedido a senhoria, havia considerado como provados factos que irremediavelmente a prejudicavam sem lhe conceder a oportunidade de os contraditar:
'14ª – (...) o douto despacho sobre reclamação viola (...), por erro de interpretação e de aplicação, o disposto no artº 680º do C.P.C.
15ª – Bem como viola (...), por omissão, o disposto no artigo 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, pelo que padece de inconstitucionalidade material.
16ª – Sendo certo que também o douto despacho saneador-sentença padece de tal inconstitucionalidade, e bem assim de violação do disposto nos artºs 1.311º, nº
2, do C.C. e 3º e 517º do C.P.C.'. O Tribunal da Relação de Coimbra deferiu a reclamação, reconhecendo à recorrente legitimidade para a interposição do recurso de apelação nos termos do disposto no nº 2 do artigo 680º do Código de Processo Civil (fls. 167).
2. Nas alegações de recurso, de fls. 181, a recorrente R..., entre o mais, veio sustentar, nas conclusões, que
'17ª - Daí que, nas suas últimas consequências, o douto despacho saneador sentença traduz-se numa verdadeira condenação, ao menos parcial, da ora recorrente!
18ª - Assim , não pode ter sido intenção do legislador defraudar, deste modo, o princípio do contraditório, instituto basilar do direito de defesa.
'19ª - Pelo que o disposto no nº 1 do artº 1.311º do C.C. tem de ser aqui interpretado e aplicado com grande cuidado e cautela.
20ª - Com efeito, dessa norma, deve, deve, salvo o devido respeito, entender-se que, demandado o proprietário e o inquilino, este pode opor ao autor os mesmos meios de defesa e com a mesma potencialidade que são permitidos àquele.
21ª - Deve, pois, entender-se que não se pode absolver o inquilino da instância, no despacho saneador, quando tal tenha por consequência levar à especificação matéria por este impugnada e que lhe seja prejudicial, nomeadamente para efeitos da sua condenação a pagar uma indemnização à autora.
22ª - Ou seja, tal matéria deve ser sempre levada, na íntegra, ao questionário.
23ª - Sob pena de se estar a fazer uma interpretação contrária à Constituição, por violação dos princípios acima citados, o que desde já se invoca especificadamente e parta todos os efeitos legais.' O Tribunal da Relação de Coimbra, porém, negou provimento aos recursos interpostos, não se pronunciando sobre qualquer eventual inconstitucionalidade e confirmando o despacho saneador recorrido. Para o que agora interessa, o Tribunal da Relação de Coimbra considerou correcta a decisão de absolvição da instância da recorrente 'quanto aos pedidos contra ela formulados na parte em que se peticionava a sua condenação no reconhecimento da existência das servidões de vistas e estilicídio (...). Não estando o direito de fazer as citadas obras na sua esfera jurídica, é evidente que carece de legitimidade para o defender. É que ao contrário do que pode pensar-se, não é o arrendado que é apontado como tendo servidão de vistas ou estilicídio, caso em que a Ré como arrendatária teria legitimidade para defender esses direitos; a situação dos presentes autos é pois a inversa e a declaração de existência das mencionadas servidões em nada prejudica a inquilina'.
3. Não se conformando, R... recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo 'ver declarada a inconstitucionalidade da norma do artº 1.311º do Código Civil, com a interpretação com que foi aplicada no douto acórdão de fls..., ora recorrido, que confirmou o não menos douto despacho saneador/sentença de fls...', por violação dos 'princípios constitucionais do contraditório, da justiça, consagrados nomeadamente nos artºs. 2º, 3º, 20º, 202º e 204º, todos da Constituição da República Portuguesa;' Convidada, pelo despacho de fls. 227, vº, a esclarecer qual a interpretação do artigo 1311º do Código Civil que acusa de inconstitucional, a recorrente, restringindo a sua impugnação ao nº 1 respectivo veio responder que 'a interpretação com que foi aplicado o citado preceito, que leva a recorrente a considerar o mesmo materialmente inconstitucional, é pois a seguinte: se o proprietário exigir judicialmente o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence, contra o dono de prédio confinante e o respectivo inquilino, em simultâneo, caso o primeiro reconheça esse direito e o segundo não, deverá este ser julgado parte ilegítima e, portanto, suportar as consequências jurídicas de tal reconhecimento, nomeadamente as decorrentes de alegadas ofensas ao referido direito, indemnizações, etc.'. Notificada para o efeito, a recorrente apresentou as suas alegações, concluindo pela inconstitucionalidade' da norma do nº 1 do artº 1311º do Código Civil, com a interpretação que lhe foi dada pelo douto despacho saneador-sentença e pelo não igualmente douto aresto da Relação de Coimbra, é materialmente inconstitucional, por violação do disposto, entre outros, nos artigos 2º, 3º,
2º, 202º e 204º da Constituição da República Portuguesa, e bem assim dos sobreditos princípios (...)'. Os princípios referidos são o do contraditório e o da justiça, como explica nas mesmas alegações. A recorrente considera-os infringidos, em resumo, porque sustenta que da condenação no pedido da primeira ré e da sua própria absolvição da instância resultou que 'estão a impor-se a esta [a ela, recorrente] factos integrantes dos pretensos direitos da ora recorrida (que, por força daquela condenação, foram levados à especificação, os quais a recorrente impugnou, impedindo-se esta, portanto, de ver apreciada tal impugnação', com todas as consequências daí decorrentes.
'Da sobredita interpretação do nº 1 do artº 1311º do C.C. resulta, pois, que são dados como provadas factos, sem se conceder à recorrente, rectius negando-se-lhe, o exercício do seu direito do contraditório', afirma na conclusão 10ª. A recorrida contra-alegou.
4. Corridos os vistos, cumpre decidir. E a verdade é que o Tribunal Constitucional não pode conhecer do presente recurso, porque, como só foi possível depreender com segurança das suas alegações, a norma impugnada não foi interpretada com o sentido que a recorrente acusa de ser inconstitucional. Desde logo, não é da aplicação do disposto no nº 1 do artigo 1311º do Código Civil que se poderia retirar a conclusão de que os 'factos integrantes dos pretensos direitos da ora recorrida' deveriam ser levados à especificação, 'sem se conceder à recorrente, rectius negando-se-lhe, o exercício do seu direito do contraditório'. Tal consequência, que o Tribunal Constitucional não pode discutir, decorreria antes do disposto no nº 3 do artigo 784º (cominação aplicável em processo sumário, em caso de litisconsórcio, ao réu não contestante, e continuação da acção quanto ao que contestou) e no artigo 511º, relativo à selecção entre os factos a levar ao questionário ou à especificação, ambos na versão aplicável do Código de Processo Civil. Note-se, aliás, que o Tribunal da Relação de Coimbra salientou que considerava transitada em julgado a condenação da ré não contestante, uma vez que não fora impugnada por via de recurso. Da leitura atenta do acórdão recorrido resulta que o Tribunal da Relação de Coimbra apenas utilizou o regime previsto na norma impugnada para o efeito de confirmar a decisão de absolvição da instância, dela não tendo retirado nenhum efeito relativamente aos factos que a recorrente considera terem sido indevidamente especificados, impedindo-a de os contraditar. Ora o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas interposto ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, tem como pressuposto que a norma impugnada tenha efectivamente sido aplicada na decisão recorrida, como resulta expressamente da referida al. b) e o Tribunal tem repetidamente afirmado.
Nestes termos, decide-se não conhecer do presente recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs. Lisboa, 20 de Outubro de 1999- Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida