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Procºnº 52/99. ACÓRDÃO Nº 662/99
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Pela DECISÃO nº 3.607/96, tomada pelo Tribunal de Contas na sessão diária de visto ocorrida em 18 de Julho de 1996, foi recusado o
«visto» ao despacho de nomeação do Licº A. como assistente hospitalar de cardiologia do quadro de pessoal do Hospital Distrital de Tomar.
Fundamentou-se do seguinte modo a decisão de recusa:-
'1. A nomeação foi precedida de concurso público interno, geral, cujo aviso de abertura foi publicado no Diário da República, II Série, de 7 de Julho de 1995.
2. O referido interessado é Major médico do quadro permanente do Serviço de Saúde do Exército Português, na situação de reserva.
3. Pelo que, como tem sido entendimento pacífico deste Tribunal, não possui vínculo à função pública, que o habilite a ser opositor aos concursos internos. Vide, entre outros, acórdãos proferidos nos Autos de Reclamação nºs 121/94 e
111/95.
4. Foram violados, para além de outras disposições legais, o artigo 6º, nºs 2 a
4, do Decreto-Lei nº 498/88, de 30 de Dezembro e nº 2, alínea a), do Regulamento dos Concursos da Carreira Médica Hospitalar (Portaria nº 833/91, de 14 de Agosto).
5. As disposições referidas no número anterior tem carácter imperativo e daí a recusa'.
Notificado dessa DECISÃO, veio o interessado, Licº A., ao abrigo do nº
3 do artº 2º da Lei nº 8/82, de 26 de Maio, apresentar «requerimento de defesa», solicitando à Ministra da Saúde que fosse pedida a reapreciação daquela mesma DECISÃO, fazendo juntar a esse «requerimento» dois «pareceres».
Aquela Ministra, efectivamente, veio peticionar a reapreciação do acto de recusa de «visto», tendo o Tribunal de Contas, por acórdão lavrado pelo plenário em 4 de Março de 1997, mantido a recusa do visto.
Desse aresto pretendeu a Ministra da Saúde recorrer para o Tribunal Constitucional mas este, por intermédio do seu Acórdão nº 609/97, tirado no Processo nº 220/97 em 15 de Outubro de 1997, não tomou conhecimento da intentada impugnação.
2. Entretanto, por intermédio de requerimento entrado no Tribunal de Contas em 16 de Junho de 1997, aquela Ministra, alegando ter havido, no domínio da mesma legislação, entendimentos diferentes quanto à mesma questão fundamental de direito, interpôs do citado acórdão de 4 de Março de 1997 recurso extraordinário, “nos termos do art.º 6.º, 7.º e 8.º da Lei nº 8/82, de 25-11”, dizendo, inter alia, nesse requerimento:-
“................................................................................................................................................................
9. Conforme tivemos oportunidade de sustentar em sede de reapreciação de visto, também aqui se secunda o Parecer do Dr. Bacelar Gouveia e as suas conclusões, parecer que para todos os efeitos se dá aqui por reproduzido, com especial realce para as inconstitucionalidades suscitadas e imputadas ao Acórdão recorrido, designadamente, por violação dos art.º 47.º e 50.º da C.R.P.
10. Para melhor explicitação, transcrevem-se as conclusões do referido parecer:-
«De tudo quanto ficou exposto, podemos retirar as seguintes conclusões:
1ª) A exclusão do Dr. R. do rol dos candidatos admissíveis ao concurso, com fundamento na sua condição militar, ainda que na reserva, porque não pertence ao conceito de funcionário civil, sendo certo que os funcionários militares não estariam abrangidos pelo art. 6º, nº 3, al. a) do Decreto-Lei nº 498/88 (não se aplicando este à Administração Pública Militar, mas só à Administração Pública Civil), não pode se considerada admissível, uma vez que se baseia numa interpretação de tal preceito que:-
..........................................................................................................................................................................................................................................................................................................................
- mesmo que os elementos interpretativos disponíveis não pudessem levar a essa conclusão, a interpretação de tal preceito em conformidade com a Constituição - critério que hodiernamente se tem revelado decisivo - determina sempre a não aplicação de qualquer distinção desse jaez, quer pelo facto de a distinção ente a Administração Pública Central Civil e Militar só relevar em termos meramente organizatórios e de competência governamental, quer pelo facto de o regime do funcionalismo público ser construído sem essa separação, quer ainda pelo facto de essa limitação na admissão a concursos públicos não constar das restrições que constitucionalmente se prevêem no estatuto dos direitos fundamentais dos militares;
- tal distinção entre funcionários públicos civis e militares, a prevalecer, deveria ainda considerar-se como materialmente violadora da Constituição Portuguesa, quando esta proibe a introdução de um tratamento jurídico negativamente discriminatório, ora por via do princípio geral da igualdade, ora por via do direito fundamental específico a aceder à função pública, com igualdade e liberdade, por concurso;
..........................................................................................................................................................................................................................................................................................................................
14. Registe-se, ainda, conforme nota II ao art.º 270.º da C.R.P., de J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, que apenas estão abrangidos por este artigo os militares que se encontram em serviço efectivo, excluindo assim os que se encontram de reserva.
15. Aliás, na nota I, dos autores citados ao mesmo artigo, entende-se que as restrições à condição militar dos destinatários deste preceito, reforça o entendimento de não ser legalmente viável considerar outras restrições para além das aqui taxativamente consagradas.
16. Também aqui se refere que a localização desta norma no título referente à Administração Pública, e não no referente à Defesa Nacional, «(...) significa que estes (os militares e agentes militarizados) estão incluídos na função pública em sentido amplo (...)».
................................................................................................................................................................................................”
Por acórdão nº 3/98, de 16 de Dezembro de 1998, o plenário geral do Tribunal de Contas julgou improcedente o recurso, fixando, como jurisprudência obrigatória, que “O conceito de funcionário constante da alínea a) do nº 3 do artº 6º do Decreto-Lei nº 498/88, de 30 de Dezembro não abrange os militares dos quadros permanentes das Forças Armadas, no activo ou na reserva, pelo que estes não poderão ser admitidos como opositores a concursos internos gerais para provimento de lugares dos quadros da Administração Pública Civil do Estado”.
Do assim, decidido recorreu a Ministra da Saúde, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, para o Tribunal Constitucional, visando a apreciação da interpretação e aplicação “da norma do artigo 6.º, nº 3, al. a) do Decreto-Lei nº 498/88, de 30 de Dezembro, com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida ... ao não considerar que a previsão daquela norma abrange os funcionários militares”.
Determinada a feitura de alegações, concluiu a recorrente a por si produzida com as seguintes «conclusões»:-
“1) A Ministra da Saúde interpôs, no Tribunal de Contas, ao abrigo dos art.º 6º,
7.º e 8.º da Lei 8/82, de 25 de Novembro, recurso extraordinário de fixação de jusrisprudência do acórdão aprovado em 4 de Março de 1997 pelo plenário da 1ª Secção, lavrado nos autos de reclamação nº 174/96 (que reapreciaram o processo de visto nº 48290/96) por oposição com as decisões proferidas nos processos de visto nº 62457/95, 5222/94 (decisão n.º 687/94) e 93963/93 (decisão n.º
1625/94).
2) O Acórdão então recorrido confirmou a recusa de visto, decidida no processo de visto nº 48290/96, à nomeação do major médico na reserva A., como assistente hospitalar de cardiologia do quadro de pessoal do Hospital Distrital de Tomar, na sequência de processo de concurso de ingresso na carreira médica hospitalar, com o fundamento de que o mesmo, enquanto elemento das Forças Armadas, não possuía vínculo à função pública, pelo que não podia ter sido admitido como opositor ao concurso interno de ingresso para o referido provimento.
3) Com efeito, a Ministra da Saúde interpôs no Tribunal de Contas um recurso extraordinário do acórdão do Plenário deste Tribunal de 4/3/97, cujo resultado foi, no entanto, o de confirmar a decisão do acórdão recorrido, fixando-se paralelamente a seguinte jurisprudência obrigatória por meio de ‘assento’:
‘O conceito de funcionário constante da al. a) do nº 3 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 498/88 de 30 de Dezembro não abrange os militares dos quadros permanentes das Forças Armadas, no activo ou na reserva, pelo que estes não poderão ser admitidos como opositores a concursos internos gerais para provimento de lugares dos quadros da Administração Pública civil do Estado.’
4) Vem o presente recurso interposto do Acórdão nº 3/98-16.DEZ-PG do Tribunal de Contas, por se reputar inconstitucional a interpretação e alcance que foram atribuídos ao disposto no artigo 6º, nº 3, al. a), do Decreto-Lei nº 498/88, de
30 de Dezembro, por aquele Venerando Tribunal, a qual, não considerando que a previsão da norma abrange os funcionários militares, deve ser rejeitada por ofender, a vários títulos, a Constituição e, consequentemente, não se aplicando ao caso sub iucide.
5) A referida interpretação, defendida pelo Tribunal de Contas, viola claramente o artigo 269º da Constituição, que consagra o princípio da unidade da categoria de funcionário público, não autorizando o estabelecimento de uma divisão estanque entre funcionários públicos civis e militares.
6) Na verdade, para além do argumento de natureza meramente formal, que nos permitiria afirmar que, não fazendo a lei qualquer distinção literal no preceito quanto ao tipo de serviço ou função administrativa desempenhada pelos funcionários, não deve o intérprete proceder à separação, é ainda possível desenvolver outras argumentações que nos habilitam a afirmar que a expressão
‘todos os funcionários’, presente no artigo 6º, nº 3, al. a), do Decreto-Lei nº
498/88, de 30 de Dezembro, engloba tanto o funcionário público civil quanto o funcionário público militar.
7) Assim, consagrando a Constituição os princípios informadores do funcionalismo público - em especial, no artigo 269º - parece poder retirar-se das orientações fixadas pela lei fundamental nesta matéria que nunca se opera uma distinção entre funcionários civis e funcionários militares. O próprio artigo 269º é disso exemplo, sendo as suas normas igualmente válidas para ambas estas categorias.
8) Assim sendo, a grande especialização que caracteriza a instituição militar não deve obstar à mobilidade dos funcionários públicos militares relativamente a outras carreiras que se inserem igualmente no seio da Administração.
9) E a possibilidade de trocarem a carreira das armas por outras tarefas, através nomeadamente da participação em concursos para preenchimento de vagas na Administração civil, enquanto exercício pelo funcionário público do seu direito de acesso ou promoção interna, é mesmo expressão de um dos princípios fundamentais constitucionalmente consagrados - o princípio da dignidade da pessoa humana.
10) O único lugar em que a Constituição parece considerar especificamente o estatuto dos funcionários públicos militares é, de facto, o artigo 270º, em que
é dito que estes não podem exercer certos direitos fundamentais em virtude da especificidade da actividade que exercem.
11) No entanto, nem mesmo nesta norma é possível encontrar uma restrição relacionada com a admissão a concursos internos na Administração Pública. Na realidade, o preceito do artigo 270º enuncia taxativamente os direitos fundamentais dos militares que podem ser objecto de limitações, mas, no entender dos autores do mesmo parecer, ‘não estabelece aí uma cláusula geral de restrição de direitos’ e nem atribui aos funcionários públicos militares ‘um estatuto de menoridade face aos demais funcionários públicos, quando se trate tão simplesmente de qualificar o vínculo que os liga à Administração Pública’.
12) Se, porém, se defender um entendimento contrário e se afirmar que a expressão ‘todos os funcionários’ do referido artigo 6º não abrange os militares das forças armadas, é ainda assim de concluir que uma tal diferenciação é violadora da Constituição, por ir contra, desde logo, o preceito do seu artigo
13º.
13) Com efeito, no ordenamento jurídico-constitucional português dificilmente se pode conceber que a candidatura de um funcionário público possa ser excluída de um concurso interno geral a uma vaga na Administração civil com base, não em condições de mérito, mas apenas pelo facto de este ser militar.
14) Entender o contrário seria obrigar à discriminação dos militares relativamente a outros funcionários públicos e atentaria contra o artigo 13º da Constituição, o qual, contendo um elenco exemplificativo dos factores que impedem uma discriminação negativa, torna possível pensar em outras circunstâncias igualmente inadmissíveis.
15) A aceitação de uma discriminação para os militares nos concursos internos gerais, além de não ser materialmente fundada, penaliza fortemente quem na Administração Pública fez a escolha da carreira das armas. E tal viola inequivocamente o princípio da igualdade, reconhecido constitucionalmente no artigo 13º do nosso texto constitucional.
16) Por força da aplicação do princípio da igualdade, que acaba por funcionar como um princípio inerente à própria ideia do sistema jurídico, dificilmente se compreenderia que um funcionário público fosse excluído do âmbito subjectivo dos candidatos a um concurso - para o qual reuniria todas as condições de mérito - só pelo facto de ser funcionário militar.
17) Uma interpretação restrita do artigo 6º, nº3, al. a), do Decreto-Lei nº
498/88 que exclua do seu âmbito subjectivo de aplicação os militares é ainda violadora do artigo 47º, nº 2, da Constituição, directamente aplicável por força do nº 1 do artigo 18º da Lei Fundamental.
18) Consagra este artigo o importante direito de acesso à função pública em condições de igualdade, respeitante a todo e qualquer concurso, reforçando assim de uma forma positiva o princípio de defesa da liberdade de escolha de profissão, que se encontra previsto no nº 1 do artigo 47º.
19) Ora, o funcionário público, só pelo facto de o ser, não perde os seus direitos fundamentais - e, entre estes, figura o artigo 47º, nº 1.
20) Não é, pois, admissível que um militar do quadro permanente que se candidate a um concurso interno geral para uma vaga na Administração civil, e que preencha os requisitos legais exigidos pelo mesmo em termos de habilitações e capacidade para o desempenho das tarefas, seja posto de parte apenas por ter pertencido ou pertencer à Administração Pública militar.
21) A consagração constitucional desta liberdade não se limita, porém, à escolha em si mesmo considerada; abrange o ingresso na profissão e o seu próprio exercício, verificados que são os requisitos pessoais legalmente exigidos - habilitações, capacidade - e reforça-se ou consolida-se através do direito de acesso à função pública em condições de igualdade.
22) Ninguém pode, pois, ser proibido de aceder à função pública ou a um particular lugar da função pública em condições de igualdade, o que implica, como é bom de ver, a impossibilidade de se proibir quem quer que seja de se candidatar a um determinado lugar para que foi aberto concurso, desde que preencha os requisitos legais indispensáveis e não se encontre numa situação objectivamente diferenciada.
23) A exclusão dos concurso internos da Administração Pública Civil de funcionários públicos militares, só pelo facto de serem militares, representa, inegavelmente, uma outra violação deste direito de acesso à função pública, aqui na vertente de acesso interno por razões de desigualdade de tratamento”.
À alegação, juntou a recorrente dois pareceres jurídicos.
Cumpre decidir.
II
1. Reza assim o artº 6º, nº 3, alínea a), 6º do Decreto-Lei nº 498/88, de 30 de Dezembro, o qual veio a estabelecer o novo regime dos princípios gerais a que deve obedecer o regime de recrutamento e selecção de pessoal para os quadros da Administração Pública (cfr. artº 1º) e tem, como
âmbito de aplicação, os serviços ou organismos daquela Administração e os institutos públicos que revistam a natureza de serviços personalizados ou de fundos públicos (cfr. artº 2º, nº 1): -
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3 - O concurso considera-se: a) Interno geral, quando aberto a todos os funcionários, independentemente do serviço ou organismo a que pertençam;
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Por outro lado, e de acordo com o estatuído no nº 2 do artº 3º desse mesmo diploma, os regimes de recrutamento e selecção de pessoal da, entre outras, carreira médica, obedecerá a processo de concurso próprio.
A decisão sub iudicio, como se viu, confirmou o acórdão de 4 de Maio de 1997 que, por sua vez, decidiu manter a DECISÃO nº 3.607/96, que recusou o «visto» ao despacho de nomeação do ora recorrente com fundamento em que este não possuía vínculo à função pública, e isso porque, conforme jurisprudência que obrigatoriamente firmou, no conceito de funcionário constante da transcrita alínea a) do nº 3 do artº 6º do Decreto-Lei nº 498/88 se não integravam os militares dos quadros permanentes das Forças Armadas, no activo ou na reserva e, consequentemente, não podiam ser opositores a concursos internos gerais para provimento de lugares na Administração Pública civil.
É, pois, a norma ínsita naquele preceito, enquanto entendida no sentido de não são abrangidos no conceito de «funcionários»
(independentemente do serviço ou organismo a que pertençam), os militares dos quadros permanentes das Forças Armadas, no activo ou na reserva, que constitui objecto do vertente recurso.
1.1. Deverá, desde logo, advertir-se que, no equacionamento da questão sobre a qual este Tribunal se tem de debruçar, não deverá o mesmo atender a eventuais questões relacionadas com o saber se, atento o que se estabelece no regime das carreiras médicas (cfr. Decreto-Lei nº 73/80, de 6 de Março) e no Regulamento dos Concursos de Provimento dos Lugares de Assistente da Carreira Médica Hospitalar dos quadros e mapas dos estabelecimentos do Ministério da Saúde (cfr. Portaria nº 833/de 14 de Agosto), a admissão ao concurso interno para preenchimento de lugares de assistente de tal carreira está condicionada, por entre outros requisitos, a que os concorrentes detenham vínculo à função pública consubstanciado em, anteriormente, serem já titulares de um desses lugares de vínculo ao Ministério da Saúde, e isto, por outro lado, a fim de se saber se o recorrente cumpriria um tal requisito.
É que, como bem se compreenderá, esta questão redundaria, ao fim e ao resto, em aquilatar se, no caso, o ora impugnante reunia aquele requisito, com tal específica configuração, quanto ao concurso a que se apresentou o que, como é óbvio, se situa fora dos poderes de cognição deste
órgão de administração de justiça, sendo que não foi com base nesse especial entendimento que a decisão do Alto Tribunal a quo se fundou.
De outra banda, também não relevará, para efeitos do que está cometido a este Tribunal, saber se - ponderado o disposto no nº 2 do artº 3º do Decreto-Lei nº 498/88 e no artº 15º do Decreto-Lei nº 73/90 -, a normação a ter em conta seria, ao menos primordialmente e sem embargo da obediência aos princípios gerais constantes do Capítulo II daquele primeiro diploma, a que se contém, designadamente, na alínea a) do nº 2 da falada Portaria nº 833/91
(afora, claro está, o problema acima indicado), sendo certo, no entanto, que a DECISÃO nº 3.607/96 não deixou de fazer referência a tal Portaria.
2. Isto posto, analisemos a questão de constitucionalidade sub specie, isto é, saber se é, ou não, compatível com a Lei Fundamental uma interpretação da alínea a) do nº 3 do artº 6º do Decreto-Lei nº 498/88 de acordo com a qual no conceito de «funcionário», para efeito de concurso interno geral para provimento de lugares na Administração Pública civil [e, in casu, um concurso de ingresso - por isso que o em causa se reportava ao provimento de uma vaga de assistente hospitalar de um determinado Hospital, categoria que é de perspectivar como a primeira da carreira médica hospitalar - cfr. artigos 4º,
14º, nº 1, alínea a), 22º, nº 1, alínea a), e 26º, alínea a), todos do Decreto-Lei nº 73/90], não se integram os militares dos quadros permanentes das Forças Armadas no activo ou na reserva.
Efectua-se aqui um pequeno parêntesis para referir que, a partir da edição do Decreto-Lei nº 519/77, de 17 de Dezembro (posteriormente alterado pelo Decreto-Lei nº 332/86, de 2 de Outubro), o legislador intentou equiparar a carreira dos médicos das Forças Armadas às carreiras médicas nacionais (cfr. exórdios desses dois diplomas e, com mais precisão, as categorias - denominadas «graus» - estabelecidas no artº 4º do primeiro indicado decreto-lei, na redacção do segundo).
Comentando o âmbito normativo do Título IX da Lei Fundamental, justamente denominado Administração Pública, Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 921) defendem que abrangendo ele, desde logo, a Administração estadual ou central do Estado, aí se inserem “todos os seus domínios, tanto da civil, como da militar”.
Considera-se adequada uma tal consideração que, para além do mais que se poderia dizer, não pode deixa de ter em conta que no próprio artigo
270º da Constituição (como, aliás, é notado pelos citados comentadores no indicado local), ainda inserido no Título IX e não no Título X - Defesa Nacional
- e após, no artigo 269º, se desenharem as grandes linhas ou princípios informadores constitucionais a que deve obedecer o regime da função pública, se vem fazer alusão a determinadas restrições ao exercício de direitos por parte de funcionários e agentes administrativos subordinados a regimes especiais, nos quais se incluem indubitavelmente os militares. Em face de uma tal sistematização, poder-se-á concluir que estes, perspectivados como, passe a liberdade de expressão, «funcionários públicos militares», não deixam de se integrar na mais ampla expressão de «funcionalismo público» (cfr. também, no mesmo sentido, Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 2ª edição, 222).
2.1. Mas, se isto é assim, identicamente se concluirá que, apartadas que sejam as situações em que a Constituição prevê expressamente a possibilidade de restrições (tenha-se em linha de conta o nº 2 do artigo 18º do Diploma Básico), os militares, em princípio, hão-de desfrutar dos direitos, liberdades e garantias de que também desfrutam os demais funcionários da Administração estadual, quer, obviamente, enquanto cidadãos, quer atendendo à sua inserção profissional.
Ora, no prisma do desfrute enquanto cidadãos, não se duvida que um dos seus direitos fundamentais é o de acesso à função pública em condições de igualdade e liberdade (nº 2 do artigo 47º da Constituição), onde se deverá incluir, utilizando as palavras dos referidos comentadores (obra citada,
265) o “poder candidatar-se aos lugares postos a concurso, desde que preenchidos os requisitos necessários”.
Porque, porém, se poderia obtemperar que o direito fundamental de carácter pessoal consagrado no nº 2 do artigo 47º seria mais dificilmente convocável para situações como a em apreço, nas quais estava em causa alguém que já tinha acedido à função pública na sua primeira componente, sendo que se não postava um direito a ser promovido na carreira a que pertencia, visto estar em questão o preenchimento de um lugar de ingresso de determinada carreira, e porque, como é reconhecido, aquele direito não apresenta significado diferente do princípio geral condensado no artigo 13º da Constituição, iluminando concretamente esse direito, não se deverá deixar de focar a atenção em tal princípio.
2.2. É já muito vasta a jurisprudência deste Tribunal quanto ao sentido que deflui desse princípio, podendo, neste particular, citarem-se, como exemplo e por entre muitos, os Acórdãos números 186/90, 187/90 e 188/90
(publicados na 2ª Série do Diário da República de 12 de Setembro de 1990).
Assim, e a propósito, pode ler-se, em dados passos, no último desses arestos:-
“........................................................................................................................................................................................................................................................................................
Na sua dimensão material ou substancial, o princípio constitucional da igualdade vincula em primeira linha o legislador ordinário (...). Todavia, este princípio não impede o órgão legislativo de definir as circunstâncias e os factores tidos como relevantes e justificadores de uma desigualdade de regime jurídico num caso concreto, dentro da sua liberdade de conformação legislativa.
Por outras palavras, o princípio constitucional da igualdade não pode ser entendido de forma absoluta, em termos tais que impeça o legislador de estabelecer uma disciplina diferente quando diversas forem as situações que as disposições normativas visam regular.
O princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de distinções, Proíbe- -lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável (vernünfliger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (Wilkürverbot).
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Também este Tribunal Constitucional vem perfilhando a interpretação do princípio da igualdade como proibição do arbítrio. Afirma-se, como efeito, no Acórdão nº 39/88 (Diário da República, 1ª série, de 3 de Março de 1988): «O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes, Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no nº 2 do artigo 13º». E, no Acórdão nº 157/88 (Diário da República, 1ª série, de 26 de Julho de 1988), escreve-se: «Retomando aqui, uma vez mais, o entendimento que este Tribunal vem perfilhando (na esteira, de resto, da Comissão Constitucional e da doutrina) acerca do sentido e alcance do princípio da igualdade, na sua função 'negativa' de princípio de 'controle'..., tudo estará em saber se, ao estabelecer a desigualdade de tratamento em causa, o legislador respeitou os limites à sua liberdade conformadora ou constitutiva
('discricionariedade' legislativa), que se traduzem na ideia geral de proibição de arbítrio. Ou seja: tudo estará em saber se essa desigualdade se revela como
'discriminatória' e arbitrária, por desprovida de fundamento racional (ou fundamento material bastante), atenta a natureza e a especificidade da situação e dos efeitos tidos em vista (e logo o objectivo do legislador) e, bem assim, o conjunto dos valores e fins constitucionais (isto é, a desigualdade não há-de buscar-se num 'motivo' constitucionalmente impróprio)»........................................
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Esclareça-se que a «teoria da proibição do arbítrio» não é um critério definidor do conteúdo do princípio da igualdade, antes expressa e limita a competência de controlo judicial. Trata-se de um critério de controlabilidade judicial do princípio da igualdade que não põe em causa a liberdade de conformação do legislador ou a discricionariedade legislativa. A proibição do arbítrio constitui um critério essencialmente negativo, com base no qual são censurados apenas os casos de flagrante e intolerável desigualdade. A interpretação do princípio da igualdade como proibição do arbítrio significa uma autolimitação do poder do juiz, o qual não controla se o legislador, num caso concreto, encontrou a solução mais adequada ao fim, mais razoável ou mais justa.
.............................................................................................................................................
...........................................................................................................................................”
2.2.1. Se, de harmonia com a decisão impugnada, tendo em atenção a fundamentação que a ela conduziu, qualquer funcionário da Administração Pública civil - pertencente, pois, à Administração estadual -, nomeadamente tendo em conta o preceito contido na alínea a) do nº 3 do artº 6º do Decreto-Lei nº 498/88 e estando em causa um concurso interno geral para provimento, pode, em princípio, candidatar-se como opositor a esse concurso, desde que reuna as condições habilitacionais necessárias, e se, como vimos, inexistem razões que levem a considerar que os militares não fazem parte da dita Administração estadual, a questão que se põe, ao se ponderar se haverá ou não ferimento do princípio da igualdade quando se não permite a candidatura dos militares no activo ou na reserva, é a de saber se uma tal diferenciação é arbitrária, ou seja, se não tem um fundamento razoável.
Não se nega que entre a «função pública civil» e a «função pública militar» existem acentuadas diferenciações exigidas pela especificidade funcional e estatutária. Ponto, todavia, é o de saber se essas diferenciações justificam, de um prisma de razoabilidade e, logo, de não arbitrariedade, que se vede aos «funcionários militares» no activo ou na reserva e que desfrutem as necessárias condições de capacidade e habilitação, a candidatura aos concursos internos gerais para provimento de lugares de ingresso na Administração Pública civil abertos à generalidade dos «funcionários públicos civis», só pela simples razão de se tratarem de «funcionários militares».
Na impostação deste problema não relevarão considerações ligadas a uma hipotética argumentação segundo a qual, quanto ao provimento de lugares da carreira médico-militar, porventura não podem ter acesso generalizado os demais «funcionários públicos civis». É que, independentemente de razões ligadas a uma especificidade dessa carreira, a que não são alheias, muito pelo contrário, as próprias funções das Forças Armadas e a respectiva organização estatutária (razões essas que poderiam, desde logo, apontar para que aquele não acesso generalizado se baseasse em motivos razoáveis e fundados), ainda que se concluísse não colherem essas razões, sendo, consequentemente, infundado o aludido não acesso generalizado, então, a diferenciação que se surpreenderia, suposto que ofensiva do princípio constitucional da igualdade, seria, eventualmente, assacável à normação que tal diferenciação consagrava, não podendo servir de argumento para rebater a não enfermidade constitucional do normativo de que curamos.
3. Mas já relevarão outros tópicos.
Na verdade, mister é, em primeiro lugar, que os «funcionários militares» (no activo ou na reserva) que, enquanto tais, não têm nas suas mãos uma livre potestas de abandono da carreira militar, possam desfrutar de autorização superior para a sua posterior integração nos lugares dos quadros da Administração Civil do Estado.
E disse-se no activo ou na reserva, por isso que, justamente, este últimos se não podem considerar desligados do serviço efectivo, ao qual, em qualquer momento, podem ser chamados.
Em segundo, tendo em conta que, para efeitos de análise da questão à luz de uma eventual violação do princípio da igualdade, se torna necessário efectuar a confrontação com a situação dos funcionários da Administração Pública Civil do Estado, há que ter em consideração que, tratando-se de «funcionários militares» na reserva, impor-se--á que se efectue uma aproximação com os casos em que estes últimos, em situação de aposentação
(já que os mesmos não detêm a situação de reserva) e se permitidos exercer outras funções públicas, não podem livremente auferir a um tempo da pensão de reforma e do abono remuneratório que compita a essas funções (cfr. artº 79º do Estatuto da Aposentação aprovado pelo Decreto-Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro). Ora, dessa aproximação há-de também resultar que, se a norma em apreço vier agora a ser julgada inconstitucional, o será numa dimensão tal que ressalve essa aproximação.
4. Pois bem.
Se, como já se referiu, os «funcionários militares» devem ser perspectivados como integrados na Administração pública estadual e, por isso, no vasto conceito de «funcionários públicos», para efeitos de tratamento geral dispensado pela Lei Fundamental; se, de outra banda, a estes últimos deve ser reconhecido toda uma corte de direitos, quer tendo em atenção a sua qualidade de cidadãos, quer tendo em conta a sua inserção profissional; se, ainda por outra, concernentemente aos «funcionários públicos» em geral, mesmo que pertencentes a corpos especiais ou a certas carreiras, a norma sub specie não veda a sua candidatura aos concursos internos gerais de ingresso como o em causa
(respeitados que sejam os condicionalismos de habilitação e capacidade), concursos esses que, por entre o mais, visam concretizar, como se pode ler no lê parecer subscrito pelos Professores Doutores Diogo Freitas do Amaral e Maria da Glória Ferreira Pinto Dias Garcia, a “mobilidade dos funcionários com vista a acrescentar eficiência à Administração Pública, transferência de experiências e de conhecimentos dentro dela”; se, relativamente aos militares, se divisa no texto constitucional tão somente a previsão, por lei, de restrições ao livre exercício de direitos de expressão, reunião, manifestação, associação e petição colectiva e à capacidade eleitoral passiva; se, por último, se não vislumbra a existência de ponderosas razões de interesse público que vivamente aconselhem que os militares não possam, por motivos ligados à especificidade das missões que lhes estão confiadas e à sua própria condição, ser opositores aos concursos internos de acesso abertos no âmbito da Administração Pública civil,
então, somos levados a concluir que a diferenciação que se surpreende na norma em causa não apresenta um fundamento razoável e suficiente justificativo do desfavor com que trata os militares no activo ou na reserva comparativamente aos demais «funcionários civis» da Administração estadual, a que a diversidade dos regimes da Administração Pública civil e da Administração Pública militar, com as inerentes diversidades estatutárias, só por si, não consegue dar valia, atentas as dimensões que estruturam o princípio da igualdade constitucionalmente consagrado e ponderados que sejam os tópicos acima aflorados.
III
Em face do que se deixa dito, este Tribunal decide:-
a) Julgar inconstitucional, por violação do 13º, em conjugação com o nº 2 do artigo 47º, a norma constante da alínea a) do nº 3 do artº 6º do Decreto-Lei nº 498/88, de 30 de Dezembro, quando interpretada no sentido de o conceito de funcionário nela utilizada não abranger os militares dos quadros permanentes das Forças Armadas, no activo ou na reserva, para efeitos de admissão como opositores a concursos internos gerais para provimento de lugares dos quadros da Administração Pública Civil do Estado, desde que para tanto os militares estejam dotados da necessária autorização superior e não venham, no caso de posterior desempenho de funções nesses lugares por parte dos militares na reserva, a auferir de modo diverso do estipulado para os funcionários da Administração Pública Civil do Estado em situação semelhante;
b) Em consequência, conceder provimento ao recurso, sequentemente devendo reformar-se a decisão impugnada no que à questão de inconstitucionalidade ora decidida concerne.
Lisboa, 7 de Dezembro de 1999 Bravo Serra Maria Fernanda Palma Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Luís Nunes de Almeida