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Proc. nº 633/99
1ª Secção Relator: Cons. Vítor Nunes de Almeida
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL: I - RELATÓRIO
1. - D..., arguido em processo que corre termos pelo 3º Juízo Criminal do Tribunal de Comarca de Guimarães, vem recorrer para o Tribunal Constitucional do despacho do Desembargador Presidente do Tribunal da Relação do Porto que lhe indeferiu a reclamação apresentada por não admissão de recurso do despacho do juiz de instrução que indeferiu a 'reclamação' suscitada nos termos do artigo
291º do CPP que 'decidiu não inquirir as testemunhas arroladas no requerimento de abertura de instrução'. Com efeito, sobre o requerimento de abertura da instrução, em que o arguido pedira que fossem tomadas declarações a 18 testemunhas que identificava, foi lançado o seguinte despacho:
'Declaro aberta a instrução. Considerando os elementos probatórios recolhidos nos autos bem como o teor do requerimento de abertura da instrução, afigura-se-nos desnecessária e dilatória a requerida inquirição de testemunhas, que por tal razão se indefere, ao abrigo do disposto no art. 291 nº 1, parte final. Debate instrutório no dia 11 MAIO pelas 10 horas.' Tendo sido mantido na íntegra este despacho, apesar de ter sido entretanto objecto de reclamação, dele interpôs recurso o arguido para o Tribunal da Relação, que não foi admitido. Inconformado, o agora recorrente reclamou para o Presidente do Tribunal da Relação onde foi proferida a decisão agora em apreciação e que, na parte relevante, tem o seguinte teor:
'Não obstante o douto articulado da reclamação, dúvidas não temos à luz do direito constituído que o despacho em crise não merece censura. Na verdade, atento o disposto no artº 291, nº 1 do CPP a Mmª juiz 'a quo' entendeu não ser de ordenar, atenta a fase processual mais diligências de prova requeridas pelo reclamante. Ainda que a Mmª Juiza se não tivesse pronunciado sobre a arguida inconstitucionalidade do artº 291, nº 1 CPP entendemos que o mesmo não enferma de qualquer vício de inconstitucionalidade. Na verdade, o regime consagrado no nº 1 do artº 291º do CPP não viola as garantias de defesa – artº 32º nº 1 da Constituição e especificamente o direito de recurso ou a um duplo grau de jurisdição. Aliás, compreende-se como se sustenta no douto despacho de fls. 30 'o legislador para evitar manobras dilatórias e obstar a expedientes que prolongassem excessivamente a fase instrutória entendeu por bem decidir expressamente a irrecorribilidade do despacho que indefere actos requeridos que não interessem à instrução'. Recorda-se que na instrução 'o juiz só deve ordenar as diligências de prova que interesse realizar...'. Em suma, compreende-se ser admissível que o legislador determine a irrecorribilidade de outros actos judiciais desde que não atinja o contúdo essencial das garantias de defesa – o que é o caso(ver Ac. do Tribunal Constitucional nº 31/87 e 177/88, Vol. 9, pag. 467-469 e Vol. 12, pag. 596 e segs.) respectivamente para cujo fundamento se remete e que respondem em parte,
à argumentação deduzida pelo recorrente. Nesta conformidade, a nosso ver o disposto no artº 291º nº 1 do CPP não é inconstitucional. Assim sendo, INDEFIRO a presente reclamação.'
2. - No requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, o requerente pede a apreciação da inconstitucionalidade do artigo 291º, nº 1 do Código de Processo Penal, por violação do disposto nos artigos 20º e 32º e a contrario dos artigos 209º, nº 1, alínea a) e 210º, nº 1, da Constituição. Nas alegações que apresentou neste Tribunal, acrescentou, precisando e definindo o objecto do recurso, que este tem em vista o preceito interpretado no sentido da irrecorribilidade do despacho que decidiu 'não inquirir as testemunhas arroladas no requerimento de abertura da instrução' ou, noutro passo, 'quando se entenda – na esteira da decisão impugnada - que o legislador ao determinar a irrecorribilidade deste acto judicial em concreto não está a atingir o conteúdo essencial das garantias de defesa'. Rematou com as devidas conclusões que se transcrevem:
I. A faculdade concedida pela lei através da instrução de colocar em crise a acusação deduzida, apenas poderá ser conseguida através do oferecimento de novos elementos de prova, ou seja, através da ponderação de provas da inexistência de dolo, da inocência do Arguido ou da não participação nos factos que lhe são imputados.
II. Considerar, de 'forma simplista' que o legislador determina a irrecorribilidade do despacho que decide 'não inquirir as testemunhas arroladas no requerimento de abertura de instrução' é, em concreto, atingir o conteúdo essencial das garantias de defesa consagradas no artº 32º, nº 1, da CRP.
III. Não pode a instrução ficar reduzida de forma a que, através do princípio da 'investigação autónoma', se atinja, desde logo, o conteúdo essencial das garantias de defesa do Arguido mas, igualmente, a própria consagração legal do direito de os arguidos requererem a abertura de instrução por forma a efectuar-se a comprovação da acusação em ordem
à submissão ou não da causa do julgamento.
IV. A 'investigação autónoma' conferida ao Juiz de instrução está balizada pelos princípios constitucionais das 'garantias de defesa' do nº 1 do artº 32º da CRP, devendo a selecção de actos de instrução nortear-se sempre pelas próprias finalidades da instrução.
V. Em bom rigor, talvez não possa falar-se aqui de 'discricionariedade', pois, tal como no âmbito da administração pública, o poder discricionário não constitui, verdadeiramente, uma excepção ao princípio da legalidade: o poder discricionário de que a Administração goza para, em casos concretos, escolher, dentre as várias possíveis, as medidas que considere mais adequadas à satisfação da necessidade pública (...) não significa
(...) que no exercício desses poderes a Administração não esteja submetida à lei e que essa submissão não se traduza na regra de conformidade; pois que (...) o poder discricionário, por um lado, só existe quando conferido por lei e, por outro, não pode o órgão administrativo, ao exercê-lo, optar por qualquer comportamento não proibido.
VI. Ao invés, a sua actuação só será legal se o comportamento escolhido, o acto praticado, for aquele que a lei o autoriza a praticar: e a lei é, em última instância, a Constituição da República Portuguesa, mormente as garantias de defesa consagradas no nº 1 do artº32º.
VII. E estas garantias de defesa consagradas no nº 1 do artº 32º englobam todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação.
VIII. Dada a radical desigualdade material de partida entre a acusação ( normalmente apoiada no poder institucional do estado) e a defesa, só a compensação desta, mediante específicas garantias, pode atenuar essa desigualdade de armas.
IX. Um dos pressupostos da garantia de defesa do processo criminal é, precisamente, o direito dos arguidos requererem a abertura de instrução, configurada esta pelo conjunto de actos que a terem lugar e dominados pela mesma ideia comum que caracteriza esta fase do processo penal: a comprovação da acusação em ordem à submissão ou não da causa a julgamento.
X. E, se com um acto decisório configurado como gozando de 'total discricionariedade' e dependente apenas da livre resolução do tribunal, sem possibilidade de ser sindicado em sede de recurso, se negar os actos de instrução requeridos pelo arguido, estaremos a deixar o caminho aberto para o livre arbítrio e, de forma directa e sem quaisquer rodeios, frustrar um dos direitos consagrados aos arguidos no âmbito do processo penal: o de efectuarem a comprovação da acusação em ordem à submissão ou não da causa a julgamento.
XI. O permitir-se, na instrução, que o arguido esgrima a sua defesa, apresente a versão dos factos que lhe são imputados e os possa refutar, carreando para os autos elementos de prova que ilidam aquela recolhida em fase de inquérito, é a consignação cabal das garantias de defesa consagradas no nº 1 do artº 32º, da CRP.
XII. Levar o princípio da investigação autónoma do juiz do caso submetido a instrução ao extremo da livre discricionariedade sobre os actos de instrução a praticar é, em concreto, atingir o conteúdo essencial das garantias de defesa consagradas no artº 32º, nº
1, da CRP.
XIII. Essa discricionariedade só deverá ocorrer
– e, por certo, mais não quis o legislador, - nos casos em que, de forma fundamentada, seja manifesto que os actos de instrução requeridos assumam, manifestamente, um carácter dilatório e sejam de todo inúteis.
XIV. A preterição dos actos de instrução requeridos e a configuração, tout court, da irrecorribilidade do despacho que sobre essa decisão incidiu redunda num grave atentado aos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagradas ao Arguido, mormente numa denegação da garantia da via judiciária, assegurada no nº 2 do artº 20º e nº 1 do artº 32º da constituição da República Portuguesa.' Respondendo, o Ministério Público terminou as contra-alegações apresentando as seguintes conclusões:
1. O princípio constitucional das garantias de defesa do arguido não implica a plena recorribilidade de todos os actos praticados pelo juiz ao longo do processo penal, apenas se devendo considerar consagrada tal garantia quanto
às decisões condenatórias e às respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição de liberdade ou outros direitos fundamentais.
2. Não pode considerar-se como arbitrário ou totalmente discricionário o juízo prudencial realizado pelo juiz que preside à instrução acerca da necessidade de realizar diligências probatórias requeridas pelo arguido em tal fase do processo penal, adequando-as à função típica de tal fase processual – que visa um mero juízo indiciário sobre a responsabilidade imputada ao arguido pela acusação – e às exigências de celeridade e eficácia do processo penal.
3. O regime de irrecorribilidade, consagrado no nº 1 do artigo 291º do Código de Processo Penal relativamente a tal juízo prudencial do juiz de instrução, está em consonância com a irrecorribilidade, estabelecida no nº 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal, relativamente à decisão final do juiz nessa fase do processo, que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação pública, já que não faria sentido apreciar a final recursos atinentes a uma fase do processo penal cuja típica funcionalidade implica que preceda necessariamente à do julgamento.
4. As garantias de defesa do arguido nesta fase de instrução são asseguradas, em termos constitucionalmente bastantes, pela necessidade de o juiz fundamentar o despacho de rejeição de tais diligências e pela possibilidade de reclamação de tal despacho, facultando ao arguido a reiteração e concreta demonstração da essencialidade das diligências que originariamente tratou de requerer.
5. Termos em que deverá improceder o presente recurso, em conformidade com o juízo de constitucionalidade da norma que dele é objecto.' Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II – FUNDAMENTOS:
3. - Dispõe-se no artigo 291º, nº 1 do Código de Processo Penal o seguinte:
'1. Os actos de instrução efectuam-se pela ordem que o juiz reputar mais conveniente para o apuramento da verdade. O juiz indefere, por despacho irrecorrível, os actos requeridos que não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo e pratica ou ordena oficiosamente aqueles que considerar úteis, sem prejuízo da possibilidade de reclamação' Vem a norma inserida no regime da fase de instrução do processo, em contexto que
é necessário ter presente para efeito de apuramento do respectivo alcance. A instrução não constitui uma fase de obrigatória verificação, antes é colocada na disponibilidade do arguido ou do assistente, com vista à 'comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento', conforme se prescreve no nº 1 do artigo
286º. É essa a sua vocação e, como se refere em intervenções da juíza de instrução nos autos e depois na decisão recorrida, não constitui julgamento prévio da causa. Ao requerer a instrução, poderá o arguido indicar os actos que pretende sejam levados a cabo, os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e os factos que através de uns e outros se espera provar, como resulta do nº 2 do artigo 287º, que mais acrescenta não poderem ser indicadas mais de 20 testemunhas. O momento culminante desta fase, ao qual se pré-ordenam as diligências a fazer, é o debate instrutório - cuja realização foi determinada no caso concreto - pois que com ele se visa 'permitir uma discussão perante o juiz, por forma oral e contraditória, sobre se, do decurso do inquérito e da instrução, resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento' (artigo 299º,nº 1). Com certeza que o arguido poderá em resultado desse debate obter satisfação da sua possível pretensão de não ser submetido a julgamento, mas do debate, quando dele não resulta a dispensa de julgamento, não pode derivar decisão condenatória nem o despacho de pronúncia tem efeito condenatório.
4. - Não se nega que os actos de instrução, requeridos pelo arguido, constituam uma garantia de defesa do mesmo, pois poderão condicionar a própria realização do julgamento. Acusado o agente do crime, a instrução surge como meio colocado ao seu dispor para infirmar a acusação que sobre ele impende, e assim, para, pelo menos em alguma medida que lhe venha a ser favorável, contribuir de forma imediata para o sentido do despacho de pronúncia ou, mais relevantemente para ele, de não pronúncia, que a final haverá de ser proferido pelo juiz. Mas mesmo neste plano, «a Constituição não estabelece qualquer direito dos cidadãos a não serem submetidos a julgamento, sem que previamente tenha havido uma completa e exaustiva verificação de existência das razões que indiciem a sua presumível condenação. O que a Constituição determina no nº 2 do artigo 32º é que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.' (cfr. Acórdão nº 474/94, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 28º vol., pag. 402, transcrevendo o Acórdão nº 31/87, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º vol.) As coisas são assim considerada a posição do arguido. Vistas as coisas na perspectiva da ordenação funcional do processo, se não for requerida a instrução
- uma vez que esta é facultativa (nº 2 do artigo 286º) - o processo é submetido ao juiz para o exclusivo efeito do artigo 311º do Código de Processo Penal. A instrução não elimina a necessidade de uma decisão do juiz, antes a difere no tempo para entretanto permitir inserir na marcha da tramitação elementos de contraditório sobre se se justifica a submissão do arguido a julgamento (cfr. artigo 298º). Nesta perspectiva, a instrução não perde a natureza de fase preparatória de um acto decisivo na estrutura do processo que aprecia os indícios de facto e os elementos de direito até então reunidos do ponto de vista da sua suficiência para neles se fundar um julgamento. É essa a sua destinação principal e é por isso que, embora seja facultativa, por depender da iniciativa das partes, uma vez decidida a sua abertura, também nela o próprio juiz poderá praticar ou ordenar oficiosamente actos que considerar úteis (nº 1 do artigo 291º, já transcrito, bem como artigo 299º).
5. - O intérprete inserido no espírito do sistema terá de concluir que a finalidade principal não deverá ser prejudicada por meios postos ao dispor do arguido que este, legitimamente, operará com vista a defender-se da acusação. A opção legislativa não merecerá porém censura se às garantias de defesa de que o arguido pode lançar mão, relacionadas com a contradita e demonstração da insubsistência da prova ou da inaplicabilidade das disposições incriminatórias, estiver assegurada efectivação no desenvolvimento do processo. Nomeadamente, é legítimo ao legislador reservar para a efectivação de certas garantias a instância ou fase processual que julgar adequada e entender que essa é a fase de julgamento. A razão é simples: só verdadeiramente nesta fase terminal é que o arguido se vê confrontado directamente com a eventualidade de contra ele ser decidida uma condenação. Assim sendo, os actos de instrução inserem-se em uma cadeia de momentos todos eles encaminhados para a decisão final, que, uma vez obtida, apaga a autonomia relativa de cada um dos actos e momentos antecedentes. Cada fase desempenha uma determinada função que aproveita, complementa, aperfeiçoa e corrige, quando necessário, o que anteriormente foi sendo carreado para o processo, e a decisão final acaba por consumir, no seu sentido último, que é a absolvição ou a condenação, todos os elementos que para ela relevaram. Precisamente porque assim
é, a fase do julgamento é aquela em que a defesa do arguido requer o mais elevado grau de garantias, para além do respectivo núcleo essencial e, nomeadamente, nos termos da jurisprudência do Tribunal, o 'direito de recorrer da sentença condenatória e dos actos judiciais que privem ou restrinjam a liberdade do arguido ou afectem outros direitos fundamentais seus' (cfr. Acórdão nº 474/94, citado, ibidem, pág. 400). No caso, a norma em apreciação não incorre em vício por violação do artigo 32º da Constituição, nem nela se encontra uma restrição do conteúdo essencial das garantias de defesa do arguido, situadas, atendendo ao perfil do caso concreto e ao que vem alegado, no asseguramento do princípio do contraditório (nº 5 do artigo 32º). Essas garantias de conteúdo imediatamente processual, impõe-se que sejam perspectivadas na unidade funcional do processo, e não necessariamente em cada fase separada daquela ou daquelas que se lhe poderão seguir. Na procura de uma solução em que à partida surge afastada a conversão da instrução em antecipação de julgamento, o legislador ponderou em termos adequados a utilização de meios de defesa pelo arguido, não procedendo sequer a uma sua restrição em sentido próprio, antes, limitando-os no quid plus que os mesmos constituem, se se tiver presente qual a vocação própria da instrução. Tomando o exemplo do caso: o indeferimento da inquirição de testemunhas não foi, como também não é no plano da lei adjectiva, óbice à determinação da marcação de debate instrutório, que não se pode entender que se torna inútil apenas por ter sido rejeitada a audição de testemunhas. Não sendo antecipação do julgamento, será incongruente transpor para ele, na íntegra, o regime aplicável à produção da prova na fase final. E não será legítimo desvalorizar o debate, por definição de estrutura contraditória, como meio de defesa por si só, realizado como é sob a direcção (artigo 301º do Código) e na presença do juiz, com a presença e participação das partes, as quais, no seu decurso, poderão inclusivamente requerer 'a produção de provas indiciárias suplementares que se proponham apresentar, durante o debate, sobre questões concretas controversas' (nº 2 do artigo 202º). Aí se dá tradução à exigência contida no nº 5 do artigo 32º da Constituição. Acresce que o legislador condiciona a aplicação da norma constante do artigo
291º, nº 1, do Código, sempre exigindo ao juiz a verificação de que os actos requeridos não interessam à instrução ou servem apenas para protelar o andamento do processo. Por outro lado, admite a reconsideração da decisão tomada, por via de reclamação a apresentar pelo requerente. Na opção legislativa a ponderação realizada pelo legislador entre a posição do arguido e a exigência de consideração do processo como unidade funcional por si só pode justificar a solução encontrada. Nesta perspectiva, esta solução situa-se na mesma linha da irrecorribilidade do despacho de pronúncia que acolhe os termos da acusação do Ministério Público. Por outro lado, é aqui relevante o princípio constitucional da celeridade do processo (artigo 20º, nº 4, da Constituição), o qual exige que se evite que o andamento do processo seja protelado «por constantes envios do processo à segunda instância para apreciação de decisões interlocutórias» (Ac. cit., ibidem, pag. 401). A Constituição, relativamente à instrução, institui uma garantia em sentido próprio, visando dar ao arguido, em conformidade com a estrutura acusatória do processo, a possibilidade de infirmar a prova com base na qual poderá ser acusado, em concreto, estabelecendo que os actos instrutórios que a lei determinar estarão subordinados ao princípio do contraditório (artigo 32º, nº
5). Tal comando constitucional não chegou a ser posto em crise pelo direito aplicado na decisão sob recurso. Das considerações que antecedem, centradas nos aspectos nucleares da problemática suscitada, resultam elementos que permitem concluir, sem necessidade de aprofundamentos significativos, pela improcedência da arguição de vícios por violação de outras normas da Constituição. Com efeito, não ocorre violação dos artigo 20º, nº 1, 209º, nº 1, alínea a), e
210º, nº 1, da Constituição. Em termos gerais, o direito de acesso aos tribunais está, no caso, garantido pelo direito ao recurso da decisão final na qual se poderão projectar insuficiências de elementos de prova, que constituirão fundamentos de recurso dessa decisão. Da Constituição não se retira a plena recorribilidade de todos os actos praticados pelo juiz ao longo do processo penal ainda que sejam susceptíveis de afectar o arguido. A jurisprudência do Tribunal apenas reconhece a aplicabilidade do princípio de recorribilidade às decisões condenatórias e
àquelas que impliquem privação ou restrições da liberdade ou de outros direitos fundamentais do arguido. Por isso, o Tribunal não julgou inconstitucionais normas processuais penais que denegam a possibilidade de o arguido impugnar determinados despachos interlocutórios do juiz, que se limitam a fazer prosseguir o processo (v. Acórdão nº 353/91, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19º vol., entre outros) e, como refere o Ministério Público, também não julgou inconstitucional a norma do artigo 310º, nº 1, do Código de Processo Penal, que considera insusceptível de recurso a decisão instrutória que haja pronunciado o arguido pelos factos constantes da acusação pública (v. Acórdão nº 266/98, publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Julho de 1998). Assim, não consentindo a lei que o despacho, que em sede de instrução indefere a realização de diligências requeridas, seja arbitrário ou discricionário, devendo antes ser fundamentado num juízo que tenta obviar à utilização de expedientes dilatórios através da prática de acto sem interesse para a instrução e para a descoberta da verdade material, não é inconstitucional a norma que prevê a irrecorribilidade de tal despacho, pois as garantias de defesa do arguido não impõem, como se referiu, a recorribilidade de todas as decisões do juiz mas tão somente das decisões condenatórias e das respeitantes à privação da liberdade e outros direitos fundamentais.
III – DECISÃO Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao presente recurso, confirmando-se a decisão recorrida na parte impugnada. Lisboa, 13 de Julho de 2000 Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Declaração de voto
Votei vencido, por entender que a norma em apreço viola o disposto no artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa,
Continuo a subscrever a tese vertida no Acórdão nº 31/87 - de que, aliás fui relator -, segundo a qual se há-de admitir que a faculdade de recorrer pode ser «restringida ou limitada em certas fases do processo e que, relativamente a certos actos do juiz, possa mesmo não existir, desde que, dessa forma, se não atinja o conteúdo essencial dessa mesma faculdade, ou seja, o direito de defesa do arguido» (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º vol., págs. 463 e segs.). E foi na sequência dessa tese que o Tribunal Constitucional veio a considerar, no Acórdão nº 474/94 (Acórdãos do Tribunal Constitucional,
28º vol., págs. 393 e segs.), que não era inconstitucional a norma do artigo
407º, nº 2, do Código de Processo Penal, interpretada como estabelecendo o regime de subida diferida para os recursos dos despachos que indefiram a realização de diligências probatórias na fase da instrução.
Todavia, neste último aresto logo se salientou que «no caso em apreço, o direito ao recurso» estava «garantido, na medida em que o recurso» fora admitido; e, no Acórdão nº 964/96 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 34º vol., págs. 413 e segs.), que subscrevi, e onde se chegou a idêntica conclusão, também se não deixou de assinalar que o que ali era «trazido à controvérsia constitucional» não era «o direito de recorrer de despacho interlocutório do juiz que em processo penal denega diligências instrutórias», o qual se encontrava garantido, mas antes a subida diferida desse recurso.
Ora, no caso vertente, o que se encontra sob censura constitucional
é a nova norma do Código de Processo Penal que veio estabelecer a irrecorribilidade dos despachos que indeferem a realização de actos instrutórios requeridos pelo arguido. E, a esse propósito, escreveu-se inequivocamente no Acórdão nº 610/96 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33º vol., págs. 841 e segs.), então tirado por unanimidade:
[...] a irrecorribilidade do despacho de pronúncia nas situações previstas no nº
1 do artigo 310º do Código de Processo Penal não ofende as garantias de defesa, se englobada no regime em que estejam salvaguardadas as garantias de defesa nas fases de inquérito e de instrução, nomeadamente através da possibilidade de requerer diligências probatórias e de recorrer de um eventual indeferimento.
Não posso, pois, partilhar um raciocínio argumentativo que concluía pela não inconstitucionalidade do despacho de pronúncia, porque sempre se podia recorrer dos despachos que indeferissem a realização de diligências instrutórias; e que, agora, conclui pela irrecorribilidade destes despachos, porque também - ou até - o despacho de pronúncia é irrecorrível.
Pelo contrário: é a irrecorribilidade do despacho de pronúncia que, sob pena de um inadmissível encurtamento das garantias de defesa, supõe a recorribilidade dos despachos que indeferem a realização de diligências probatórias durante a instrução, como se afirmou no referido Acórdão nº 610/96. Luís Nunes de Almeida
José Manuel Cardoso da Costa