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Proc. nº 615/99 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - A..., com os sinais dos autos, intentou, no Tribunal de Trabalho de Torres Vedras, acção contra o Estado (Ministério da Educação) pedindo a condenação do R. ao pagamento da quantia de 528.570$00, acrescida da que fosse apurada até final nos termos do artigo 13º do DL nº. 64-A/89, de 27 de Fevereiro e à indemnização de antiguidade em substituição da reintegração no posto de trabalho.
Alegou em síntese que:
· foi contratada pelo R para exercer funções de empregada de limpeza na Escola Primária da Marteleira;
· o contrato de trabalho foi celebrado por mero ajuste verbal, pelo que se converteu em contrato de trabalho sem termo;
· foi despedida sem precedência de processo disciplinar, pelo que o despedimento deve ser declarado nulo.
Fundamentou, de direito, o seu pedido no artigo 13º nºs. 1, alíneas a) e b) e 3 do DL nº. 64-A/89.
O Estado contestou alegando, entre o mais, que:
· o contrato outorgado com a A deve ser qualificado de prestação de serviços
· a cessação desse contrato foi plenamente eficaz, não havendo necessidade de verificação de justa causa e de instauração de procedimento disciplinar
· a ser qualificado como contrato de trabalho, ele é nulo pois, de acordo com os DL nºs. 184/89, de 2 de Junho e 427/89, de 7 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo DL nº. 407/91, de 17 de Outubro, o Estado não pode celebrar contratos sem termo (a relação de emprego público só pode estabelecer-se por nomeação ou por contrato de provimento ou por termo certo)
· a nulidade do contrato deriva do disposto nos artigos 280º nº. 1 e
294º do Código Civil, só produzindo efeitos em relação ao tempo em que esteve em execução por força do artigo 15º nº. 1 da LCT.
A acção foi julgada parcialmente procedente e provada com os seguintes fundamentos:
· o contrato celebrado pela A com o Ministério da Educação é um contrato de trabalho regulado pelo regime jurídico geral aplicável ao contrato individual de trabalho com as especialidades resultantes dos artigos 5º, 7º, 9º, 14º nº. 3 e 18º a 20º do DL nº. 427/89;
· a A celebrou dois contratos de trabalho a termo certo, legalmente permitidos pelos artigos 7º nºs. 1 e 2 alínea b), 9º do DL nº. 184/99 e 18º nº.
1 do DL nº. 427/89;
· remetendo o artigo 9º nº. 2 do DL nº. 184/89 para a lei geral do trabalho (artigos 41º a 53º do DL nº. 64-A/89), o nº. 3 do artigo 43º deste
último diploma sanciona a falta de forma escrita com a conversão do acordo verbal em contrato de trabalho sem termo;
· a conversão é legalmente possível (apoia-se, entre outros, na doutrina dos Acórdãos da Relação de Lisboa de 3/7/97 e de 15/5/96, publicados no BMJ nºs.
469 p. 640 e 457 p. 436, respectivamente e de 5/11/97 in CJ, ano XXII, tomo V, p. 159 e Seg. e da Relação de Évora de 21/10/97 in CJ, ano XXII, tomo IV, pp.
299 e segs.) 'sob pena de estarmos a premiar a parte contraente relapsa pelas violações por ela praticadas, conferindo absoluta impunidade a tal actuação, bem como à cessação da mesma, com manifesto prejuízo dos trabalhadores e das suas legítimas expectativas';
· aceite a conversão do contrato a termo em contrato sem prazo não se verifica nulidade;
· é ilícita a cessação do contrato que se traduz num despedimento sem justa causa e sem precedência de processo disciplinar.
Desta sentença foi interposto recurso para a Relação pelo Estado, que manteve a posição sustentada na contestação, em especial defendendo que 'não obstante a remissão para o regime geral do contrato de trabalho a termo certo, não é aplicável neste domínio a solução de conversão em contrato sem termo, prevista no artigo 49º nº. 3 do DL nº. 64-A/89, de 27/2, por colidir frontalmente com a taxitividade das formas de constituição da relação jurídica de emprego na Administração Pública, pelo que deve prevalecer o regime especial sobre aquele regime geral, de aplicação subsidiária' (conclusão VI) e que 'os vícios verificados, por ocorridos numa relação jurídico-privada, consubstanciam nulidades com enquadramento legal nos artigos 280º nº. 1 e 294º ambos do CC'
(conclusão VIII), sendo o regime jurídico dessas nulidades '(...) o especialmente previsto no artigo 15º nº. 1 da LCT'; um contrato nestas condições pode ser feito cessar por qualquer das partes, por qualquer forma e em qualquer momento' (conclusão X).
O acórdão da Relação de Lisboa de fls. 121 e segs. negou provimento ao recurso.
Dando como assente que entre o A e o R foram celebrados oralmente dois contratos de trabalho a termo, para satisfação de necessidades permanentes dos serviços,
'sem qualquer obediência às normas legais que ao tempo estavam em vigor sobre a contratação de pessoal para a Administração Pública', começa por apoiar a solução de direito no Acórdão da mesma Relação e com o mesmo relator, de
17/4/96, publicado na CJ, tomo II, ano XXI, pp. 171 e segs.
Deste decorre, em primeiro lugar, que, encontrando-se a A em situação irregular, deveria ter sido oportunamente desencadeado um processo de regularização dessa situação, em conformidade com o disposto nos artigos 37º e 38º do DL nº. 427/89; não o fazendo e despedindo a A sem processo disciplinar e sem justa causa o Réu
'desrespeitou grosseiramente o disposto no artigo 53º da Constituição da República'.
Por outro lado e por aplicação do artigo 294º do Código Civil, em especial da ressalva constante da parte final da norma que pretende 'exceptuar do princípio geral da nulidade dos actos contrários a disposições legais de carácter imperativo os casos em que da lei proibitiva resulta pouco adequada a sanção de nulidade, considerados os interesses em presença e o escopo visivelmente visado pelo legislador', entende--se que os contratos em causa são apenas irregulares quanto à forma da sua celebração e da sua manutenção; isto 'tendo os artigos 37º e 38º do DL nº. 427/89 estabelecido um regime de transição e regularização de pessoal da Administração Pública em situação irregular e resultando do artigo
53º da Constituição da República a proibição dos despedimentos sem justa causa
(...)'.
Não sendo nulos os contratos, o Réu não poderia pôr-lhes termo abruptamente o que equivale a 'despedimentos individuais sem processo disciplinar e sem justa causa (...)' – o despedimento é ilícito com as consequências estabelecidas no artigo 13º da LCT.
Deste acórdão o Ministério Público, em representação do Estado, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do artigo 70º nº. 1 alínea a) da Lei nº. 28/82, por alegada recusa de aplicação do artigo 9º do DL nº. 184/89 e 18 º do DL nº. 427/89, por inconstitucionalidade material.
O recurso não foi recebido pelo despacho de fls. 143 com fundamento em não ter havido declaração de inconstitucionalidade material daqueles preceitos, nem recusa da sua aplicação.
É deste despacho que vem deduzida a presente reclamação nos seguintes termos:
'1º O douto acórdão de fls. 121 corporizou no seu texto, fazendo próprias as tomadas de posição que explicita de outro acórdão do Exmo. Relator na parte que transcreve o texto;
2º Assim, o douto acórdão recorrido ao considerar, por um lado, que a conduta do Estado (recorrente), no caso em apreço, se fundou nas normas que qualificam o contrato de trabalho a termo certo, concretamente, as normas do artigo 9º, regulado no artigo 18º do Decreto-Lei nº. 184/89, de 2 de Junho;
3º E ao considerar, por outra, a conduta do Estado (recorrente) fundada naquelas normas inconstitucional por ofensa ao artigo 53º da Constituição;
4º O douto acórdão recorrido efectivamente considerou as ditas normas inconstitucionais, não as aplicando, ao contrário, aliás, do que faz o Supremo Tribunal de Justiça (como é referido no douto acórdão recorrido), o qual segue outra orientação e não questiona a inconstitucionalidade ora referida, aplicando tais normas. Face ao acima exposto, e salvo melhor opinião, foi suscitada uma questão de inconstitucionalidade no douto acórdão recorrido e assim sendo, nos termos do artigo 77º, nº. 1 da Lei nº. 28/82, de 15 de Novembro reclama--se do douto despacho de fls. 143 no sentido da admissão do recurso interposto a fls. 142 para o Tribunal Constitucional que deverá ser alterado e recebido o recurso nos termos expressos em tal requerimento.'
O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido do deferimento da reclamação, sustentando que houve no acórdão recorrido a recusa de aplicação das normas dos citados artigos 9º do DL nº. 184/89 e 18º do DL nº. 427/89 enquanto consagram 'o princípio da taxatividade das formas de constituição da relação jurídica de emprego na Administração Pública que, em sede de instrumentos jurídicos regidos pelo direito privado, apenas admite a celebração de contrato de trabalho a termo certo (...)'.
Cumpre decidir.
2 – No requerimento de interposição de recurso ao abrigo da alínea a) do nº. 1 do artigo 70º da Lei nº. 28/82, o Magistrado do Ministério Público, ora reclamante, disse ter sido 'recusada, por declarada inconstitucionalidade
(material) a aprovação do artigo 9º do Decreto-Lei nº. 184/89 de 2/6 e do artigo
18º do Decreto-Lei nº. 427/84 de 7/12'.
Não é claro o sentido deste requerimento, em dois aspectos:
Por um lado, no que respeita a ser expressa ou implícita a alegada recusa de aplicação.
Por outro, contendo aqueles dois preceitos normas individualizáveis, quanto à questão de saber a qual dessas normas, no entendimento do reclamante, o acórdão recorrido recusou aplicação com fundamento em inconstitucionalidade.
Pode, porém, aceitar-se, com a leitura do texto da reclamação, que o reclamante sustenta ter sido implicitamente recusada a aplicação dos aludidos preceitos legais – é, aliás, a tese sustentada pelo Ministério Público junto deste Tribunal no parecer que emitiu a fls. 147 v. e segs.; e, de acordo com o mesmo texto, que a recusa se terá traduzido na não aplicação do regime estabelecido naqueles artigos, posto que, reconhecendo o acórdão impugnado que a conduta do Estado se fundou nesse regime, ele não foi aplicado por traduzir uma ofensa ao artigo 53º da Constituição.
Assim compreendido o recurso interposto e a reclamação da sua não admissão, começa por se dizer que o Tribunal Constitucional vem pacificamente aceitando que o recurso previsto no artigo 70º nº. 1 alínea a) da Lei nº. 28/82 pode ser interposto por recusa implícita de aplicação de normas com fundamento em inconstitucionalidade.
Necessário é que a aplicação expressa de normas que se faça na decisão judicial impugnada tenha como pressuposto, lógico e necessário, a recusa de aplicação de outras, por desconformidade com a Constituição, de modo a concluir-se que a opção feita na aplicação do Direito não pode deixar de decorrer do repúdio de outras alternativas com fundamento na inconstitucionalidade das normas que as integram.
A questão a resolver na presente reclamação é, pois, a de saber se o direito aplicado, como razão de decidir, no acórdão de fls. 121 e segs., foi determinado pela recusa de aplicação do regime que regula a contratação a termo certo na Administração Pública, ínsito nas normas invocadas pelo reclamante.
A resposta reveste-se de particular complexidade, especialmente pela circunstância de o acórdão recorrido se apoiar em aresto anterior, transcrito em largo trecho, onde, aparentemente, a situação de facto não seria igual; e acresce que é, precisamente, no trecho citado que se faz alusão a comandos constitucionais.
De todo o modo, é de interpretar o acórdão recorrido nos seguintes termos:
a. O contrato celebrado entre Autores e Réu (Estado) não obedeceu ao regime legal sobre contratação de pessoal para a Administração Pública (artigos
18º a 21º do DL nº. 427/89), designadamente por, sendo contrato a termo certo, se destinar a satisfazer necessidades permanentes de serviço; b. Sendo irregular a situação da A, deveria o Estado ter lançado mão do disposto nos artigos 37º e 38º do DL nº. 427/89; c) Estabelecido no artigo 294º do Código Civil o grau de desvalor do regime jurídico celebrado contra disposição legal de carácter imperativo – nulidade – o mesmo preceito ressalva os 'casos em que outra situação resulte da lei'; d. Dada esta ressalva, o contrato em causa não deve ser considerado nulo mas 'em situação irregular', solução que resulta do regime de transição e regularização do pessoal em situação irregular estabelecido nos citados artigos
37º e 38º do DL nº. 427/89 e do disposto no artigo 53º da Constituição que proíbe os despedimentos sem justa causa; e. A não redução do contrato a escrito leva a considerá-lo como contrato sem termo, por força do artigo 42º do DL nº. 64-A/89, de 27 de Fevereiro, aplicável por nos termos do artigo 14º nº. 3 do DL nº. 427/89; f. Tratando-se, assim, de um contrato não nulo e sem termo, a sua rescisão unilateral por parte do R é ilícita com as consequências previstas no artigo 13º do DL nº. 64-A/89.
Em dois planos, incidem, assim, os juízos decisórios do acórdão recorrido:
Um primeiro, sobre a validade do contrato celebrado, com a decisão de não nulidade e de mera irregularidade.
Um segundo, sobre a convertibilidade do mesmo contrato em contrato sem prazo.
Pois bem.
Para o primeiro juízo, concorrem duas razões fundamentais para afastar a regra da nulidade inscrita no artigo 294º do Código Civil: o já citado regime de regularização de situações irregulares, previsto nos artigos 37º e 38º do DL nº.
427/89 e a proibição constitucional dos despedimentos sem justa causa.
Mas enquanto a primeira razão parece surgir como um fundamento do juízo de censura ético relativamente ao procedimento do Estado (ilegalmente não regulariza a situação e rescinde o contrato com o trabalhador), já a segunda convoca expressamente uma norma constitucional para afastar o regime de nulidade.
A lógica parece ser esta: as desrespeitadas disposições imperativas do regime do contrato a termo certo, em conjugação com o disposto no artigo 294º do Código Civil, conduzem à possibilidade de o Estado dar por findo contrato, sem ter de invocar justa causa, ofendendo deste modo o artigo 53º da CRP.
Verifica-se, assim, uma recusa implícita de aplicação das normas que definem o regime daquele tipo de contrato, no ponto em que elas impunham a aplicação da regra da nulidade estabelecida no artigo 294º do Código Civil.
No que concerne ao segundo juízo decisório, ele surge sem qualquer apelo expresso a norma constitucional, como resultado da aplicação do artigo 14º nº. 3 do DL nº. 427/89 que, remetendo para o regime da lei geral sobre contratos a termo certo, faria aplicar o disposto no artigo 42º nº. 3 do DL nº. 64-A/89, ou seja, a conversão do contrato de trabalho a termo certo, celebrado oralmente, em contrato sem prazo.
A verdade é que a norma do artigo 14º nº. 3 do DL nº. 427/89 não remete para a lei geral sobre contratos a termo certo, tout court; ela ressalva, a final, 'as especialidades constantes do presente diploma', segmento que o acórdão recorrido deixa oculto.
O que poderá significar que, estabelecido um regime fechado de contratação – contrato administrativo de provimento e contrato de trabalho a termo certo – tal conversão não vigora na contratação do pessoal na Administração Pública.
É certo que ultrapassaria os poderes de cognição do Tribunal Constitucional decidir sobre o regime legal aplicável, no plano do direito infraconstitucional.
Mas já isso não acontece quando a determinação desse regime deriva da recusa de aplicação de outro, por razões de inconstitucionalidade, competindo ao Tribunal Constitucional, para este efeito, interpretar a decisão recorrida.
Ora, formalmente desligadas as duas questões decididas no acórdão impugnado, elas não deixam de estar substancialmente conexionadas.
No caso, a aplicação do artigo 42º nº. 3 do DL nº. 64-A/89 traduz a única alternativa possível ao regime de nulidade que seria imposto nos termos do artigo 294º do Código Civil em conjugação com o regime do DL nº. 427/89, agora no ponto em que é violada a regra da forma (escrita) do contrato (cfr. Ac. do TC de 4/11/97 in DR, II Série, de 8/4/98, pp. 4680 e segs.).
Por outras palavras, a aplicação da norma do DL nº. 64-A/89 acaba por ter como pressuposto a recusa em aplicar um regime jurídico que, pela regra do artigo
294º do Código Civil e tendo em conta as únicas formas possíveis de contratação de pessoal na Administração Pública, postularia a nulidade do contrato, o que, na lógica condutora de todo o acórdão recorrido, ofenderia o princípio consagrado no artigo 53º da Constituição (princípio da segurança no emprego, com proibição de despedimentos sem justa causa).
Em suma, pois, decidir que é unicamente irregular o contrato a termo certo celebrado contra preceitos imperativos dos Decretos-leis nºs. 184/89 e 427/89 e que o mesmo se converte em contrato sem prazo pressupõe, em ambos os casos, a mesma recusa de aplicação do regime estabelecido naqueles diplomas legais, por violação da norma do artigo 53º da Constituição.
É evidente – como bem se assinala no parecer de fls. 147 v. e segs. – que se torna 'problemática a identificação precisa das normas que o julgador de forma implícita desaplicou', não só por ser implícita a recusa de aplicação, como também por estar em causa um regime definido por um complexo normativo.
Aceita-se, porém, sem esforço que, estando em causa os efeitos da inobservância das normas reguladoras do contrato de trabalho a termo certo na Administração Pública se indiquem – como fez o reclamante – os artigos 9º do DL nº. 184/89 e
18º do DL nº. 427/89 (com necessário reporte aos artigos 14º nºs. 1 e 3 do primeiro diploma e ao artigo 294º do Código Civil), como os preceitos onde aquelas normas se contêm e cuja aplicação foi implicitamente recusada com fundamento na violação do princípio consagrado no artigo 53º da CRP.
3 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se deferir a reclamação.
Lisboa, 21 de Dezembro de 1999 Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa