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Proc. nº 469/00
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. AC, arguida nos autos de instrução n.º 11.105/98.6TDLSB, reclamou para o presidente do Tribunal da Relação de Lisboa de um despacho proferido no Tribunal Judicial da Comarca de Cascais e datado de 10 de Janeiro de 2000. Neste despacho, decidiu-se não admitir o recurso por si interposto do despacho de pronúncia de 29 de Novembro de 1999, com o fundamento de que não era admissível o recurso do despacho de pronúncia, nos termos do artigo 310º, n.º 1, do Código de Processo Penal, porque o Ministério Público acompanhara a acusação da assistente. Na reclamação, a arguida sustentou que, sendo a acusação predominantemente da assistente e não do Ministério Público, o recurso era sempre admissível e que o artigo 310º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na interpretação e aplicação que dele se fez no despacho reclamado, é materialmente inconstitucional, por ofensa dos artigos 32º, n.º 1, e 277º, n.º 1, da Constituição.
2. Por despacho de 19 de Maio de 2000 (fls. 37 e seguintes), o presidente do Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento à reclamação apresentada pela arguida, tendo entendido que se verifica a situação prevista no n.º 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal sempre que o Ministério Público acompanhe a acusação deduzida pelos particulares, relativamente a crimes particulares, e que a inadmissibilidade do recurso interposto pela reclamante não ofende o disposto no n.º 1 do artigo 32º da Constituição.
3. Não se conformando com o despacho proferido pelo presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, a arguida dele interpôs recurso para o Tribunal Constitucional (fls. 42 e v.º), ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, 'porquanto na interpretação e aplicação que dele foi feita o artº 310º, n.º 1, do Código de Processo Penal, é, a ver da Recorrente e salvo o merecido respeito, materialmente inconstitucional, porque colidente com o artº 32º, n.º 1, da Constituição'. O recurso foi admitido por despacho de fls. 43.
4. Nas alegações que apresentou no Tribunal Constitucional (fls. 47 e seguintes), concluiu assim a recorrente:
'I – Quanto à «questão prévia» a) A Recorrente requereu a «abertura de instrução», arrolou testemunhas e requereu a realização de diligências – sendo que tudo foi indeferido sob invocação do artº 291º, n.º 1, do Código de Processo Penal («por as mesmas se me afigurarem inúteis para a realização das finalidades da instrução», disse o Meritíssimo Juiz). b) Contra esta decisão [...] a Recorrente reagiu, assacando ao artº 291º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na interpretação e aplicação que dele foi feita, a sua inconstitucionalidade, porque colidente com o artº 32º, n.º 1, da Constituição [...] – recurso que mereceu do Meritíssimo Juiz o seguinte despacho: admito o recurso que sobe nos próprios autos com o recurso que vier a ser interposto da decisão que ponha termo à causa, recurso com efeito devolutivo
[...]. c) A Recorrente reclamou do efeito fixado ao recurso, no que não foi atendida
[...]. d) Assim, neste momento está também suscitada a questão da inconstitucionalidade do artº 291º, n.º 1, do Código de Processo Penal [...]. e) [...] afigura-se à Recorrente que se justificaria englobar nos presentes autos aquele outro recurso (o dirigido ao artº 291º, n.º 1, do Código de Processo Penal) – com a chamada dos autos que correm no Tribunal Judicial da Comarca de Cascais [...] e abertura de prazo para as respectivas alegações
[...]. II – Quanto ao «objecto específico» dos presentes autos
1 – Se a Recorrente bem vê, para se decidir como feito fez-se «aplicação implícita» de norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo: o art. 7º, d), da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio, que, em interpretação e aplicação conforme à Constituição e aos princípios nela consignados, é inconstitucional, no segmento em que exclui da amnistia os crimes cometidos através da comunicação social [...].
[...].
2 – A Recorrente requereu [...] a abertura da instrução [...] e todas as diligências por si requeridas foram indeferidas [...].
2.1. Tudo o concluído é matéria de facto [...].
2.2. Ora, esta factualidade [...] não pode caucionar a constitucionalidade do artº 310º do Código de Processo Penal, na interpretação e aplicação que dele foi feita.
2.3. Se a Recorrente bem vê a revisão da Lei Básica levada a efeito pela Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, dá guarida à sua pretensão: o artº
20º, nº 4, corporiza a transposição do artº 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (apreendendo, pois, a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem), e ao inscrever a obrigatoriedade de um «processo equitativo» ilumina radiosamente o artº 32º, nº 1, quando este inclui o «direito ao recurso» como «garantia de defesa» em matéria penal (numa clara consagração alargada da
«igualdade de armas»).
2.4. Assim, por força dos artºs 1º (o qual, enquanto consagra a «dignidade da pessoa humana» como «base» da nossa República, claramente postula como «função
última» da fase instrutória a protecção do arguido-cidadão em não ser submetido a julgamento sem uma «possibilidade razoável» de vir a ser punido: cfr. artºs
283º, nº 2, e 308º, nº 1, do Código de Processo Penal), 20º, nº 4, «in fine»
(obrigatoriedade de um «processo equitativo») e 32º, nº 1, da Constituição, o artº 310º do Código de Processo Penal é materialmente inconstitucional quando, na interpretação e aplicação que dele foi feita no caso da Recorrente, estabelece a irrecorribilidade da decisão instrutória [...].'
A recorrente juntou cinco documentos com cópia (fls. 63 e seguintes).
5. Nas contra-alegações (fls. 87 e seguintes), o Ministério Público concluiu no sentido da improcedência do recurso, pois que 'a norma constante do artigo 310º, n.º 1 do Código de Processo Penal, na parte em que prevê a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronunciou a arguida com base em factos que hajam suportado uma acusação deduzida também pelo Ministério Público
(que aderiu à acusação particular) não colide com o princípio constitucional das garantias de defesa'. II
6. Antes de mais, importa precisar que o objecto do presente recurso há-de considerar-se circunscrito à apreciação da conformidade constitucional da norma do n.º 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal, na interpretação que dela se fez no acórdão recorrido. Com efeito, no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional a recorrente apenas pretendeu a apreciação daquela norma, não podendo obviamente usar as alegações para formular pedidos de apreciação da conformidade constitucional de outras normas, a pretexto de constituírem questões prévias: tais pedidos – independentemente de quaisquer outras considerações sobre a sua admissibilidade e mérito – deviam ter sido formulados no próprio requerimento de interposição do recurso, sendo extemporânea a sua formulação nas alegações (cfr. artigos 75º, n.º 1, 75º-A, n.º 1, e 76º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional). Quanto à pretendida chamada dos autos que correm no Tribunal Judicial da Comarca de Cascais, para efeitos de apreciação do recurso dirigido ao artigo 291º, n.º
1, do Código de Processo Penal (cfr. ponto I, e), das conclusões das alegações),
é também óbvio que tal chamada não teria qualquer cabimento legal. Desde logo, porque o recurso dirigido ao artigo 291º, n.º 1, do Código de Processo Penal – ao que se deduz do relato da recorrente – ainda não foi expedido para o Tribunal da Relação de Lisboa nem interposto para o Tribunal Constitucional, sendo no mínimo anómala a utilização do mecanismo da 'chamada dos autos' para ultrapassar as regras relativas aos recursos ordinários ou para interpor um recurso para o Tribunal Constitucional. Cabe, pois, analisar apenas a conformidade constitucional da norma constante do n.º 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual é irrecorrível a decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação particular, quando o Ministério Público acompanhe tal acusação.
7. É o seguinte o teor do artigo 310º, n.º 1, do Código de Processo Penal: Artigo 310º Recursos
1 – A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.
2 – [...].
Como sublinha o Ministério Público nas contra-alegações, está perfeitamente sedimentado na jurisprudência do Tribunal Constitucional que a norma constante do artigo 310º, n.º 1, do Código de Processo Penal não padece de inconstitucionalidade, não ofendendo o artigo 32º, n.º 1, da Constituição. A argumentação da recorrente, como se verá, nada inova e não justifica que seja afastada, no presente processo, a decisão e respectiva fundamentação dos acórdãos do Tribunal Constitucional que emitiram aquela pronúncia e aqui se dão por reproduzidos: vejam-se os acórdãos n.º s 265/94, de 23 de Março (Diário da República, II Série, n.º 165, de 19 de Julho de 1994, p. 7237 ss), 610/96, de 17 de Abril (Diário da República, II Série, n.º 155, de 6 de Julho de 1996, p. 9117 ss), 468/97, de 2 de Julho (inédito), 45/98, de 3 de Fevereiro (inédito),
101/98, de 4 de Fevereiro (inédito), 156/98, de 10 de Fevereiro (Diário da República, II Série, n.º 105, de 7 de Maio de 1998, p. 6178 ss), 238/98, de 5 de Março (inédito), 266/98, de 5 de Abril (Diário da República, II Série, n.º 158, de 11 de Julho de 1998, p. 9618 ss), 299/98, de 28 de Abril (inédito), e 300/98, de 28 de Abril (inédito). Refere-se no primeiro dos citados acórdãos (o acórdão n.º 265/94):
'A Constituição da República não estabelece em nenhuma das suas normas a garantia de existência de um duplo grau de jurisdição para todos os processos das diferentes espécies. É certo que a Constituição garante a todos «o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos» (art.
20º, nº 1) e, em matéria penal, afirma que «o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa» (art. 32º, nº 1). Destas normas, porém, não retira a jurisprudência do Tribunal Constitucional a regra de que há-de ser assegurado o duplo grau de jurisdição quanto a todas as decisões proferidas em processo penal. A garantia do duplo grau de jurisdição existe quanto às decisões penais condenatórias e ainda quanto às decisões penais respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais. Sendo embora a faculdade de recorrer em processo penal uma tradução da expressão do direito de defesa (veja-se nesse sentido o acórdão nº 8/87 do Tribunal Constitucional, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º volume, pág. 235), a verdade é que, como se escreveu no acórdão nº 31/87 do mesmo Tribunal, «se há-de admitir que essa faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em certas fases do processo e que, relativamente a certos actos do juiz, possa mesmo não existir, desde que, dessa forma, se não atinja o conteúdo essencial dessa mesma faculdade, ou seja, o direito de defesa do arguido»[...].'
E diz-se no segundo dos mencionados acórdãos (o acórdão n.º 610/96):
'Apenas é irrecorrível, portanto, a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público. Ora, este regime especial não é arbitrário, encontrando fundamento na existência de indícios comprovados, de modo coincidente, em duas fases do processo: pelo Ministério Público, dominus do inquérito, e pelo juiz de instrução. E o Ministério Público é configurado constitucionalmente como uma magistratura autónoma (artigo 221º, nº 2, da Constituição), sendo concebido, no processo penal, como um sujeito isento e objectivo, que pode, nomeadamente, determinar o arquivamento do inquérito em caso de dispensa de pena, propugnar, findo o julgamento, a absolvição do arguido e interpor recurso da decisão condenatória em exclusivo benefício do arguido [artigos 280º, nº 1, e 53º, nº 2, alínea d), do Código de Processo Penal; cf. Figueiredo Dias, «Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal», O Novo Código de Processo Penal, ob. col.,
1988, pp. 22 e ss. e 31].
13. Como se afirmou no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 265/94 (cit.), «não se duvida que o legislador pudesse admitir a regra de recorribilidade da decisão instrutória que pronunciou o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público (como sucedia, quanto ao processo de querela, com o artigo
371º do Código antecedente)». Porém, tal como se concluiu nesse mesmo aresto, a irrecorribilidade do despacho de pronúncia nas situações previstas no nº 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal não ofende as garantias de defesa, se englobada no regime em que estejam salvaguardadas as garantias de defesa nas fases de inquérito e de instrução, nomeadamente através da possibilidade de requerer diligências probatórias e de recorrer de um eventual indeferimento. Sendo certo que o nº 1 do artigo 32º da Constituição impõe que se consagre o direito de recorrer de decisões condenatórias e de actos judiciais que, durante o processo, tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais do arguido, é admissível que o legislador determine a irrecorribilidade de outros actos judiciais desde que não atinja o conteúdo essencial das garantias de defesa (cf. Acórdãos nºs 8/87, 31/87 e 177/88 – o primeiro já citado e os restantes publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º vol., pp. 467-9, e 12º vol., p. 596 e ss., respectivamente) e a limitação seja justificada por outros valores relevantes no processo penal. Consequentemente, também não se pode concluir que o regime consagrado no nº 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal viole as garantias de defesa (artigo
32º, nº 1, da Constituição) e, especificamente, o direito de recurso ou a um duplo grau de jurisdição. [...].'
Sempre se entendeu, portanto, na jurisprudência do Tribunal Constitucional que a faculdade de recorrer em processo penal constitui uma tradução da expressão do direito de defesa, correspondendo mesmo a uma imposição constitucional a consagração do recurso de sentenças condenatórias ou de actos judiciais que durante o processo tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais, mas sempre se recusou que a Constituição impusesse a recorribilidade de todos os despachos proferidos em processo penal. Não o impunha antes, nem o impõe depois da revisão de 1997, onde o segmento aditado ao artigo 32º, n.º 1, apenas explicita o que a jurisprudência do Tribunal Constitucional já entendia compreendido nas 'garantias de defesa em processo penal'. Em suma, o 'direito de recurso', como imperativo constitucional, hoje consagrado de modo expresso no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, deve continuar a entender-se no quadro das 'garantias de defesa' – só e quando estas garantias o exijam – o que, pelas razões apontadas nos anteriores acórdãos deste Tribunal, não compreende necessariamente a impugnação do despacho de pronúncia. O acórdão n.º 337/2000, mencionado nas alegações da recorrente, não destrói, evidentemente, este entendimento, dado que foi proferido sobre questão inteiramente diversa da que está aqui em causa. Não assiste, pois, qualquer razão à recorrente, quando defende que a norma constante do n.º 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal é inconstitucional pela mera circunstância de a Constituição consagrar o direito ao recurso. E a circunstância de, no presente recurso, estar em causa um crime particular, tendo o Ministério Público acompanhado a acusação particular, não torna naturalmente inaplicável aquela jurisprudência constante do Tribunal Constitucional. Como bem refere o Ministério Público nas contra-alegações, 'os factos em que assentou a pronúncia não resultam de um puro juízo formulado pelo ofendido/assistente, sendo identicamente objecto de uma apreciação ou valoração pelo órgão a que está constitucionalmente cometido o exercício da acção penal'.
III
8. Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional a norma constante do n.º 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual é irrecorrível a decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação particular, quando o Ministério Público acompanhe tal acusação; b. Em consequência, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que se refere à questão de constitucionalidade. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 30 de Janeiro de 2001 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa