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Processo nº 474/99
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. C. Pn., com os sinais identificadores dos autos, veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, 'ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei do Tribunal Constitucional', do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
(3ª Secção – 1ª Subsecção), de 19 de Maio de 1999, pretendendo 'ver apreciada a inconstitucionalidade das normas dos arts. 379º al. b), 283º nºs 3 al. b) e 5 e
277º nº 3 do Código de Processo Penal, com a interpretação com que foram aplicadas na douta decisão recorrida, por forma a permitir que se considere como constante da acusação os factos de o Ofendido ter à data dos factos 12 anos de idade e de os Arguidos actuarem com conhecimento de que o mesmo tinha idade inferior a 14 anos, quando naquela peça, ainda que aludindo a ‘(fls.26)’ – onde se encontra a certidão de nascimento do Ofendido – e a ‘(id. a fls. 15)’, folhas essas que não foram notificadas ao Arguido, apenas se diz que ele era menor; isto quando o facto de o Ofendido ter menos de 14 anos de idade é um elemento típico dos crimes pelos quais foi condenado o Recorrente' E acrescenta ainda no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade:
'- de acordo com tal interpretação, admitir-se-ia que um Arguido pudesse ser condenado apenas com base numa acusação do tipo ‘Em processo comum (colectivo) o MP acusa Fulano, id. a fls. X, porquanto cf. fls. Y e Z, pelo que cometeu um crime de...’; o tais normas, com esta interpretação, violam o disposto nos nºs 1 e 5 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa, dado que não ficam asseguradas as garantias de defesa do arguido consagradas no nosso diploma fundamental, mais não seja por não permitir que o Arguido se aproveite do facto de a acusação contra si deduzida omitir elementos essenciais à sua condenação e de tal falta não ter sido, a tempo, colmatada; o esta questão da inconstitucionalidade foi suscitada pelo Recorrente na motivação do recurso interposto para o Supremo tribunal de Justiça e nas respectivas conclusões'.
2. O acórdão recorrido, 'dando provimento ao recurso' interposto pelo mesmo recorrente da decisão condenatória da primeira instância, anulou esta decisão, por considerar que houve condenação 'por factos não descritos na acusação'
('Dado que esta alteração – obviamente, não substancial dos factos da acusação – não foi comunicada, nos termos do artº 358º, do C.P.P., o acórdão é nulo, por força do disposto no cit. artº 379º, nº 1, al. a), do mesmo Código' – acrescenta-se no acórdão). E, quanto à 'questão de saber se, face ao disposto no artº 283º, nºs 2, al. b), e 5, e 277º, nº 3 do C.P.P., são inteiramente válidas tanto a acusação em que a descrição dos factos se faça por remissão como a respectiva notificação, ao arguido, desacompanhada das cópias das peças processuais para que é feita a remissão', foi dada a seguinte resposta no acórdão recorrido:
'O que o recorrente pretende, precisamente, é que, por força da alegada invalidade da acusação dos autos e da notificação que, dela, lhe foi feita, os factos em análise não podiam ter sido considerados. Ao que nos parece, não tem razão. Com efeito, mesmo admitindo que, em qualquer dos dois casos, há violação ou inobservância da lei do processo, é seguro que, não constituindo nulidade insanável (por não se incluírem entre as elencadas nas alíneas a) a f), do artº
119º, do C.P.P., nem serem, como tal, cominadas em qualquer outra disposição legal) tais eventuais violações só poderiam consubstanciar ou nulidades dependentes de arguição ou meras irregularidades. Ora, se atentarmos, por um lado, no disposto nos artigos 120º, 121º, e 123º, do C.P.P., e por outro, em que o recorrente foi, pessoalmente, notificado, da acusação e do despacho que a recebeu, respectivamente, em 9 Maio de 1998, cfr. fls. 84v., e em 10 de Outubro de 1998, cfr. 103 v. (as notificações ao Ilustre Advogado foram feitas por cartas expedidas em 5 de Maio e 2 de Outubro do mesmo ano, respectivamente, cfr. fls., 75 e 94), contestou o pedido cível e a acusação e apresentou rol de testemunhas em 19 de Outubro de 1998 (cfr. fls. 96/99), juntou documento superveniente em Novembro (cfr.fls114/116), esteve presente, tal como o seu ilustre mandatário, na audiência de discussão e julgamento, em 18 do mesmo mês de Novembro e em 2 e 16 de Dezembro seguinte (cfr. fls., 122/123,
126/130 e 146/147) – durante a qual, em 2 /12/98, face ao alegado desconhecimento da existência da certidão de nascimento do T. G., foi dada a conhecer e a examinar, ao Sr. Advogado do arguido, o documento de fls. 26 (cfr. fls. 130) -, é manifesto que à data do acórdão recorrido (16/12/98), estava mais do que sanada qualquer eventual nulidade relativa ou irregularidade da acusação e/ou da respectiva notificação do arguido. Logo, à data do acórdão recorrido, já não se podia questionar a validade da indicação de factos, na acusação, por remissão para outras peças ou documentos dos autos. Sendo assim, no caso concreto – independentemente da originária validade ou invalidade relativa da acusação e/ou da sua notificação ao arguido, ora recorrente -, impõe-se decidir, desde já, que, ao condenar os arguidos com base, também, no facto do T. ter ‘à data da prática dos factos 12 anos de idade (cfr. dic. de fls. 26), e no de os arguidos saberem que, então, ele ‘tinha idade inferior a 14 anos’, o acórdão recorrido não padece da nulidade do artº 379º, nº
1, al. b), do C.P.P., em virtude de tais factos constarem da acusação'.
3. O Relator emitiu nos autos uma Decisão Sumária, no sentido de não se tomar conhecimento do presente recurso, na base de que o recorrente não poderia nunca tirar proveito ou utilidade dele, pois, 'por um lado, tem de ser proferido novo acórdão pelas instâncias, em que será revista a primeira decisão condenatória, e, por outro lado, ainda que obtivesse êxito no Tribunal Constitucional, com o presente recurso, o Supremo Tribunal de Justiça não iria reformar o julgado, no ponto em causa, na sequência de um eventual juízo de inconstitucionalidade, a contento do recorrente', na medida em que aquele Supremo Tribunal 'assentou já que a decisão das instâncias envolveu a condenação dos arguidos, sendo um deles o ora recorrente, e com base em determinados factos, mas eles constavam da acusação, estando 'mais do que sanada qualquer eventual nulidade relativa ou irregularidade da acusação e/ou da respectiva notificação do arguido'.
4. Por acórdão nº 618/99, a fls. 243 dos autos, foi decidido 'ordenar o prosseguimento do recurso', revogando-se implicitamente aquela Decisão Sumária.
5. Nas suas alegações concluiu assim o recorrente:
'1- Consagrando a nossa Constituição, como modo de assegurar ao Arguido todas as garantias de defesa, um processo penal de estrutura acusatória, de acordo com a qual o Arguido só pode ser condenado por factos constantes da acusação contra si deduzida, esta peça assume-se como o principal depósito de garantias do Arguido.
2 - Daí que hajam regras a regular o seu conteúdo, entre as quais se conta a da al. b) do n° 3 do art. 283° CPP, pela qual 'a acusação contem, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao Arguido de uma pena. . .'.
3 - Tendo sido imputada ao Arguido a prática dos crimes previstos no n° 1 do art. 172° CP e na al. a) do n° 3 do mesmo art., o facto de o Ofendido ter menos de 14 anos é um dos que fundamenta a aplicação ao Arguido de uma pena, pelo que deveria ter sido narrado, ainda que sinteticamente, na acusação.
4 - Acontece que não foi: a acusação limita-se a narrar que o Ofendido era menor.
5 - Daí que, apesar de na acusação se aludir a 'o menor T. G. C. D. (id. a fls.
15) ' - a fls. 15 encontra-se o auto das declarações que este prestou no inquérito- e a 'com o conhecimento da idade do menor ... (fls. 26)' - a fls. 26 está a sua certidão de nascimento - não se possa considerar como constante da mesma o facto de o Ofendido ser menor de 14 anos.
6 - Na verdade, o facto que consta da acusação, o facto que foi narrado, é o de que o Ofendido é menor, e tal facto está em conformidade com o que consta a fls.
15 e 26.
7- Mas o que não se pode aceitar é que a simples alusão, no meio de tantas outras, a umas folhas dos autos (sendo que uma delas, a de fls. 15, nem sequer pode ser lida em audiência de julgamento - art. 356° CPP) possa ser substitutiva da alegação de um facto que vai para além dos narrados.
8 - Assim, por força do disposto na al. b) do n° 3 do art. 283° CPP, não se pode considerar como constante da acusação o facto de o Ofendido ter menos de 14 anos pelo que foi cometida a nulidade prevista na al. b) do art. 379° do mesmo diploma.
9 - Tais artigos, quando interpretados, como foram implicitamente pela 1ª Instância e pelo Supremo Tribunal de Justiça, por forma a permitir que, sem que tivesse sido comunicada ao Arguido qualquer alteração dos factos descritos na acusação, nos termos do art. 358° ou do art. 359° CPP, se considere constante da mesma tal facto, são inconstitucionais, por violarem o disposto no art. 32° nos
1 e 5 CRP.
10 - Na verdade, uma acusação remissiva ou encapotada, pelo menos quanto aos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao Arguido, não respeita a estrutura acusatória que, por imperativo constitucional, o processo penal deve ter.
11- Se assim não se entender, bastaria que nas acusações se passasse a fazer alusão a todas as páginas dos autos para que se pudesse validamente considerar como delas constante tudo o que constasse dos mesmos, o que implicava o ruir da estrutura acusatória do processo criminal.
12 - Numa outra perspectiva, deixam de ficar asseguradas as constitucionalmente consagradas garantias de defesa do Arguido, já que não se pode deixar de considerar que uma delas é precisamente a possibilidade de valer-se das falhas não colmatadas da acusação contra si deduzida. Nestes termos, os arts. 283° n° 3 al. b) e 379° al. b) do Código Processo Penal, com a interpretação supra referida, devem ser julgados inconstitucionais, fazendo-se assim JUSTIÇA'
6. O Ministério Público apresentou contra-alegações, concluindo deste modo:
'1º - Tendo o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça determinado a anulação da decisão proferida em 1ª instância – e envolvendo o cumprimento do julgado a reabertura do julgamento, com possibilidade de o arguido produzir prova e exercer o contraditório relativamente aos factos que lhe eram imputados pela acusação - carece de utilidade a apreciação do recurso de fiscalização concreta que tem precisamente como fundamento a preterição do contraditório, quanto a certo facto, no julgamento que o Supremo anulou.
2º - Não implica violação das garantias de defesa, por preterição do contraditório, a consideração, na decisão condenatória, da idade do ofendido, enquanto elemento do tipo legal, quando tal facto – estritamente atinente à identificação civil do ofendido – era referenciado na acusação mediante expressa remissão para a certidão de nascimento que constava dos autos e estava ínsito na própria qualificação jurídica que de tais factos haviam feito a acusação e a pronúncia.
3º - Na verdade, neste concreto circunstancialismo, teve o arguido plena oportunidade processual para exercer, querendo, o contraditório possível, relativamente a tal documento autêntico, nos termos que lhe são consentidos pelo artigo 169º do Código de Processo Penal.
4º - Termos em que deverá improceder o presente recurso'
7. Também contra-alegou o recorrido F. D., na qualidade de representante do menor 'T. G. C. D.', sustentando que 'não devem ser julgados inconstitucionais na interpretação que lhe foi dada nos artigos 283º nº 3 alínea b) e 379º alínea b) do C.P.P.'
8. Ouvido o recorrente sobre a questão prévia suscitada nas contra-alegações do Ministério Público e condensada na conclusão 1ª dessa peça, veio defender que 'a questão suscitada pelo Digníssimo Procurador-Geral Adjunto é póstuma, e não prévia, pois foi já resolvida por Vossas Excelências em Conferência' e que, em todo o caso, sempre 'o presente recurso tem toda a utilidade'.
9. Tudo visto, cumpre decidir. Dando de barato que tem de improceder aquela questão prévia suscitada pelo Ministério Público, desde logo, porque foi revogada a Decisão Sumária que assentou, em parte, no mesmo tipo de questão, o que significa ter sido então deferida a reclamação deduzida pelo recorrente e não se pode agora recolocar a discussão, a matéria de (in)constitucionalidade a ser debatida, em sede de mérito do recurso, delimita-se nos termos que vêm postos pelo recorrente, deste modo, nas suas alegações:
'8 - Assim, por força do disposto na al. b) do n° 3 do art. 283° CPP, não se pode considerar como constante da acusação o facto de o Ofendido ter menos de 14 anos pelo que foi cometida a nulidade prevista na al. b) do art. 379° do mesmo diploma.
9 - Tais artigos, quando interpretados, como foram implicitamente pela 1ª Instância e pelo Supremo Tribunal de Justiça, por forma a permitir que, sem que tivesse sido comunicada ao Arguido qualquer alteração dos factos descritos na acusação, nos termos do art. 358° ou do art. 359° CPP, se considere constante da mesma tal facto, são inconstitucionais, por violarem o disposto no art. 32° nos
1 e 5 CRP.' A resposta vem dada pelo Ministério Público, nas suas contra-alegações, no sentido de que 'o presente recurso deverá ser julgado improcedente, já que – a nosso ver – não viola as garantias de defesa do arguido a circunstância de a acusação remeter – no que concerne a certo elemento de identificação civil do arguido – para certo documento autêntico incorporado nos autos e expressamente referenciado'. O Supremo Tribunal de Justiça entendeu que se impunha 'decidir, desde já, que, ao condenar os arguidos com base, também, no facto do Telmo ter à data da prática dos factos 12 anos de idade (cfr. doc. de fls. 26) e no de os arguidos saberem que, então, ele tinha idade inferior a 14 anos, o acórdão recorrido não padece da nulidade do artº 379º, nº 1, al. b), do C.P.P., em virtude de tais factos constarem da acusação'.
10. Verdadeiramente, o objecto do presente recurso haverá de considerar-se como a questão de saber se são ou não conflituantes com as garantias de defesa que o processo criminal deve integrar as normas constantes dos artigos 283º, nº 3, alínea b), e 379º, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, numa interpretação de harmonia com a qual é possível ao tribunal, sem ter efectuado ao arguido a comunicação a que se reporta, quer o artigo 358º, quer o artigo
359º do mesmo diploma, dar por provado determinado facto não expressamente mencionado na acusação, mas para cuja prova, nesta peça processual, expressamente se invoca um documento existente nos autos. Na análise da presente questão não se poderão silenciar os contornos concretos da questão. Ora, neste particular, o acórdão recorrido, se bem se atentar, entendeu que constava da acusação o elemento típico do ilícito assacado ao recorrente e que consistia no conhecimento, por parte dele, da idade do menor inferior a 14 anos. E, de facto, assim, é. Na verdade, após, na dita acusação, por entre o mais, se ter levado a efeito a narração dos factos com vista a explicitar toda uma actuação do ora recorrente e na finalidade de a integrar nos conceitos normativos do tipo de ilícito previsto no artigo 172º do Código Penal, cujo cometimento, a final, lhe era imputado, pode ler-se que o mesmo impugnante tinha conhecimento da idade do menor. Assim sendo, o que, em boa verdade se pode sustentar sem que, minimamente, se force o que quer que seja, é que o aresto recorrido, ao seguir o entendimento acima referido, perfilhou a perspectiva de que a menção à certidão de nascimento existente nos autos, reportando-se implicitamente ao seu conteúdo, significava a indicação de um meio de demonstração de um facto - o de o menor ter menos de 14 anos -, facto esse que era do conhecimento do arguido, ora recorrente, sendo este mesmo facto um (e, obviamente, a par com os demais conexionados com a descrição da sua actuação) dos elementos do imputado crime. Neste contexto, a interpretação levada a cabo, quanto às aludidas normas, dos artigos 358º ou 359º do Código de Processo Penal, pelo acórdão sob censura, de um lado, não é, de todo, incompatível com as exigências de clareza e narração sintética dos factos imputados ao arguido, e, de outro, ponderando que a idade da vítima era imediatamente apreensivel por esse mesmo por esse mesmo arguido em face do teor da acusação, isso conduz ao entendimento de que tal interpretação não vai postergar as garantias de defesa consignadas no nº 1 do artigo 32º da Constituição.
11. Termos em que, DECIDINDO, nega-se provimento ao recurso e condena-se o recorrente nas custas, com a taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta. Lisboa, 5 de Julho de 2000 Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa