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Proc. nº 557/99
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. No Tribunal Central Administrativo, J..., Tenente Miliciano, Deficiente das Forças Armadas, na situação de pensionista por invalidez, interpôs recurso contencioso de anulação do despacho tácito de indeferimento do Chefe do Estado Maior do Exército, que se teria formado sobre o requerimento, datado de 4 de Julho de 1996, em que pediu o ingresso no serviço activo, ao abrigo do Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro, e legislação complementar.
Invocou, em síntese, que:
– foi incorporado no serviço militar em 4 de Maio de 1965, na Escola Prática de Infantaria; pertence ao Quadro de Complemento do Exército; em consequência de acidente resultante do cumprimento do serviço militar, foi qualificado Deficiente das Forças Armadas, tendo-lhe sido atribuído por uma Junta Médica o grau de incapacidade de 75%, homologado em 1972, e tendo passado à situação de pensionista por invalidez, com o posto de Tenente Miliciano;
– após a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro, não optou pela integração no serviço activo, por considerar que a alínea a) do artigo 7º da Portaria nº 162/76, de 26 de Março, a tal se opunha;
– todavia, no seguimento do acórdão nº 563/96 do Tribunal Constitucional [por lapso, refere-se o acórdão nº 538/96], que declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da mencionada alínea a) do artigo 7º da Portaria nº
162/76, tomou a iniciativa de requerer ao Chefe do Estado Maior do Exército, em
4 de Julho de 1996, o seu ingresso no serviço activo.
J... imputou ao acto impugnado o vício de violação de lei (por violação dos artigos 1º e 7º do Decreto-Lei nº 219/73, de 9 de Maio, ex vi do artigo 20º do Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro, do nº 6, alínea a), da Portaria nº 162/76, de 26 de Março, e do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, em virtude de manter a desigualdade já reconhecida pelo Tribunal Constitucional) e vícios de forma, por absoluta falta de fundamentação
(contrariando o disposto no artigo 268º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa e os artigos 124º, nº 1, a), c) e d) e 125º, nº 1, do Código do Procedimento Administrativo), e por falta de audiência prévia do interessado
(violando o artigo 100º do Código do Procedimento Administrativo).
2. Respondeu a entidade recorrida, invocando em primeiro lugar que não se formou o acto tácito impugnado, dado que não tem o Chefe do Estado Maior do Exército, a quem a pretensão foi dirigida, competência para sobre ela decidir; segundo alegou, tal decisão está cometida ao Ministro da Defesa Nacional, por força do disposto no artigo 2º do Decreto-Lei nº 43/88, de 8 de Fevereiro, que atribui a esta entidade a competência para a 'apreciação e decisão dos processos instruídos com fundamento em qualquer dos factos previstos no nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro'. Subsidiariamente, sustentou que o acto impugnado, a existir, não enfermaria de qualquer dos vícios invocados, nem violação de lei nem vício de forma.
3. O Tribunal Central Administrativo, por acórdão de 17 de Junho de 1999
(fls. 84 e seguintes), concedeu provimento ao recurso, anulando o acto recorrido com fundamento em violação do artigo 13º da Constituição.
O tribunal justificou assim a sua decisão:
'A situação do recorrente pressupõe a análise de um regime jurídico que, com a declaração de inconstitucionalidade (com força obrigatória geral) da norma do art. 7º, al. a) da Portaria 162/76, de 24 de Março, ficou pouco clara. O recorrente encontrava-se na situação prevista no art. 7º, al. a) da referida Portaria, isto é, encontrava-se qualificado como deficiente das forças armadas a beneficiar de reforma extraordinária e já tinha podido optar, sem o ter feito, pelo ingresso no serviço activo. Por isso, não requereu o seu reingresso no serviço activo, ao abrigo do regime do Dec. Lei 43/76, de 20 de Janeiro. Este regime, isto é o reingresso no serviço era visto como uma revisão do processo, ficando os militares obrigados a satisfazer as reabilitações vocacional e profissional reconhecidos pela comissão de reclassificação e têm como condição prévia o cumprimento de um ano na efectividade do serviço, no posto em que se encontrem promovidos ou graduados, contado a partir da data em que realizem a opção (art. 8º, al. a) da Portaria 162/76). Mas, se tivesse podido requerer o reingresso no serviço activo, ficaria sujeito a este regime e teria que submeter-se a satisfazer as referidas reabilitações profissional e vocacional... Veio declaração de inconstitucionalidade da norma que impedia o acesso a este regime – Acórdão nº 563/96, DR, I Série, de 16-5-96. E, na sequência de tal inconstitucionalidade entendeu o Governo «retirar as devidas ilações» de tal declaração (como diz no Preambulo do Dec.Lei 134/97, de
31 de Maio, e estabelecer que «os militares dos quadros permanentes deficientes das Forças Armadas ... na situação de reforma extraordinária com um grau de incapacidade geral de ganho igual ou superior a 30%, e que não optaram pelo serviço activo, são promovidos ao posto a que teriam acendido, tendo por referência a carreira dos militares à sua esquerda à data em que mudaram de situação, e que foram normalmente promovidos aos postos imediatos». Este regime
é substancialmente diferente, diferença que decorre do facto de se estar a regular uma situação toda ela ocorrida no passado. O que o legislador fez foi ficcionar uma reconstituição da carreira militar do interessado, para efeitos de determinar o posto «a que teriam ascendido» se tivessem optado pelo reingresso no serviço activo e auferir, em função desse posto (resultante da reconstrução) a respectiva pensão – embora sem direitos retroactivos – (cfr. art. 1º e 2º do Dec. Lei 134/97, de 31 de Maio). Porém, este diploma é claro ao limitar a sua aplicação aos militares dos quadros permanentes e excluir os militares do quadro de complemento – como é o caso do ora recorrente.
[...] A solução jurídica é portanto a de não existir, neste momento, um quadro legal que permita ao recorrente exercer o seu direito de opção pelo reingresso ao serviço activo, com dispensa plena de validez: o regime do Dec. Lei 43/76 já não lhe pode ser aplicado e o regime do Dec. Lei 134/97 também não lhe é aplicável... Do exposto decorre que o requerimento do ora recorrente pedindo o seu reingresso no activo em dispensa plena de validez a aplicação não possa ser deferido. E, assim, o indeferimento tácito impugnado não sofre do vício de violação de lei que lhe é imputado. Só não será assim se o Dec. Lei 134/97 ao excluir do seu âmbito os militares do quadro de complemento for inconstitucional. Neste caso, a solução inverte-se e o indeferimento, porque baseado num diploma inconstitucional seria ilegal. Esta é pois a próxima questão. O princípio da igualdade na sua aplicabilidade a situações discriminatórias relativas aos deficientes das forças armadas foi analisado no Acórdão que declarou a inconstitucionalidade do art. 7º, al. a) da Portaria 162/76, de 24 de Março. Aí podemos encontrar referido, além do mais, que «[...] Ora o princípio da igualdade não funciona apenas na vertente formal e redutora da igualdade perante a lei; implica, do mesmo passo, a aplicação igual de direito igual, o que pressupõe averiguação e valoração casuística da diferença, de modo que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e diferenciado os que se achem em situações legitimadoras de diferenciação» – cfr. Acórdão citado, DR, I Série, pág. 1155. Os dois grupos de deficientes das forças armadas com tratamento diferente são:
– de um lado os militares do quadro permanente, que não puderam requerer o ingresso no serviço activo, por força do art. 7º a) da Portaria 162/76, de 24 de Março;
– de outro lado os militares do quadro de complemento que também não puderam, pelo mesmo motivo, requerer o ingresso no serviço activo. Qual a razão do tratamento diferenciado? Não se vislumbra. Na verdade em nada se explica que o legislador, pretendendo como expressamente diz, retirar todas as ilações de uma declaração de inconstitucionalidade, venha criar uma outra desigualdade. Supriu uma desigualdade que se baseava num mero facto arbitrário (ter tido oportunidade de requerer o ingresso no activo e não o ter feito), para criar outra desigualdade igualmente arbitrário (pertencer ao quadro permanente ou de complemento). A declaração de inconstitucionalidade baseou-se essencialmente no facto do Dec. Lei 43/76 ter querido alargar o benefício da opção pelo reingresso no serviço activo «... possível a todos os DFA» – cfr. Acórdão citado, loc. cit. pág. 1156. O que justifica, no fundo, a igualdade de tratamento de todos os militares é o facto que os une: serem todos eles militares que se tornaram deficientes nas campanhas do ultramar pós 1961. Já foi este o objectivo do Dec. Lei 210/73, e foi este seguramente o argumento fundamental do Acórdão do Tribunal Constitucional que declarou a inconstitucionalidade da Portaria 162/76.
[...]
É, portanto, segundo pensamos perfeitamente arbitrária a divisão entre militares do quadro permanente ou de complemento feita pelo Dec. Lei 134/97, de 31 de Maio, no seu artigo 1º. O art. 1º do Dec. Lei 134/97, de 31 de Maio é, face ao exposto, violador do art. 13º da Constituição (princípio da igualdade). Desta feita o indeferimento tácito da pretensão do recorrente traduz a inaplicabilidade ao seu caso do art. 1º do Dec. Lei 134/97, de 31 de Maio, e, sendo tal inaplicabilidade claramente violadora do art. 13º da Constituição
(princípio da igualdade), então, o referido indeferimento mostra-se ferido do vício de violação de lei. '
4. É deste acórdão que vem interposto o presente recurso para o Tribunal Constitucional, pela representante do Ministério Público junto do Tribunal Central Administrativo, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº
134/97, de 31 de Maio, que o Tribunal Central Administrativo se recusou a aplicar 'com fundamento na sua inconstitucionalidade, por violação do disposto no artº 13º da CRP'. O recurso foi admitido por despacho de fls. 100.
5. No Tribunal Constitucional foi proferido despacho para a produção de alegações. Nas alegações que apresentou, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional formulou as seguintes conclusões:
'1º- Em consequência da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do Acórdão nº 563/96, tem de considerar-se eliminada do ordenamento jurídico a impossibilidade legal de os militares que já beneficiavam do estatuto de DFA, face às disposições do Decreto-Lei nº 210/73 optarem pelo reingresso no serviço activo, apesar de não terem efectivado tal direito no prazo de 1 ano a contar da vigência daquele diploma, nos termos consentidos pelo artigo 15º desse decreto-lei.
2º - Tal declaração de inconstitucionalidade conduziria à aplicação – no que respeita às condições de reingresso no serviço activo, genericamente facultadas a todos os militares qualificados como DFA pelo Decreto-Lei nº 43/76 – do regime previsto neste diploma legal e na portaria nº 162/76, de 24 de Março, dependendo tal reingresso de um juízo favorável da comissão de reclassificação acerca da satisfação pelo requerente das condições de reabilitação vocacional e profissional para o pretendido serviço activo nas Forças Armadas.
3º – Sendo certo que a circunstância de a referida impossibilidade legal para o exercício do direito de opção pelo reingresso no serviço activo apenas ter sido removida em 1996 – cerca de 20 anos após o momento em que normalmente tal requerimento do interessado teria sido feito – acentua a duvidosa praticabilidade e o carácter acentuadamente aleatório de tal juízo de prognose da comissão de reavaliação.
4º – Por força do artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, de 31 de Maio, os militares que, à data em que se deficientaram, integravam os quadros permanentes foram dispensados da concreta avaliação por parte da comissão de reavaliação, sendo-lhes facultada, pelo mesmo diploma legal, uma automática reconstituição da carreira militar de que hipoteticamente podiam ter beneficiado, se inexistisse o referido obstáculo legal ao exercício do direito de opção pelo reingresso no serviço activo.
5º – A circunstância de o artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97 excluir a aplicação deste regime de reintegração automática no serviço activo aos militares que, à data em que se deficientaram, integravam os quadros de complemento das Forças Armadas – ditando a aplicação, quanto a este grupo de militares, do regime que previa o reingresso mediante o resultado da avaliação da comissão de reclassificação, previsto no Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro, e na portaria 162/76, de 24 de Março, – viola o princípio da igualdade.
6º- Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida. '
Por sua vez, J... concluiu:
'1) J..., Tenente Miliciano do Exército é Deficiente das Forças Armadas (DFA), com o grau de incapacidade de 75%, por acidente resultante das Campanhas no Ultramar pós-1961, nos termos do artº 18º, 1, c) do DL 43/76, de 20JAN, tendo-se encontrado impedido pela alínea a), do nº 7 da PRT 162/76, de 24MAR de rever o seu processo para efeitos de exercício do direito de opção pelo activo;
2) O Tribunal Constitucional, no Acórdão Nº 563/96 – processo 198/93, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante da alínea a), do nº 7, da PRT 162/76, de 24MAR, por violação do princípio da igualdade, por a norma declarada inconstitucional vir introduzir no ordenamento jurídico um tratamento diverso para situações essencialmente iguais, não razoavelmente justificado;
3) O Governo publicou o DL 134/97, de 31MAI, afim de dar execução ao conteúdo do acórdão nº 563/96 do TC. Tal não seria necessário porquanto, e uma vez expurgada do ordenamento jurídico a norma declarada inconstitucional, ficavam os DFA livres de exercerem o seu direito de opção pelo reingresso no serviço activo, ao abrigo do regime do DL 43/76, de 20JAN, complementado pelas PRT 162/76, de 24MAR e PRT 94/76, de 24FEV, sendo apenas necessário criar mecanismos que permitissem o exercício de tal direito de opção aos militares DFA que já tivessem atingido o limite de idade para ingresso no activo;
4) O DL 134/97, de 31MAI, para além de outras violações de princípios e normas constitucionais, sofre de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade (artigo 13º da CRP), por manter a desigualdade já constatada pelo Tribunal Constitucional, em relação aos militares do Quadro de Complemento que exclui do seu âmbito;
5) [...] subscrevem-se, aqui, as conclusões das alegações do Digníssimo Procurador-Geral Adjunto, com exclusão da inserta sob o nº 3º.'
6. Nos termos do artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, foi ordenada a notificação do parecer em que a relatora propunha que o Tribunal Constitucional não tomasse conhecimento do recurso, por não se encontrarem verificados os respectivos pressupostos processuais.
Apenas respondeu o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, pronunciando-se no sentido de que o Tribunal deve tomar conhecimento da questão de constitucionalidade suscitada no presente recurso:
'1º. Verifica-se efectivamente que, no caso dos autos, o Tribunal Central Administrativo recusou a aplicação de certo sentido ou interpretação da norma que integra o objecto do presente recurso, por a considerar violadora do princípio constitucional da igualdade.
2º. Sendo inquestionável que esse sentido ou interpretação normativa, recusado com fundamento em inconstitucionalidade, é o que corresponderia ao sentido normal ou literal do preceito em causa, que efectivamente parece pretender restringir a aplicabilidade do regime de reingresso automático no serviço activo aos militares deficientes do quadro permanente.
3º. Afastou, deste modo, o Tribunal «a quo» certa interpretação da norma questionada no presente recurso – precisamente a que decorreria do normal sentido literal do preceito em causa – com fundamento em violação de um princípio constitucional – e sendo esse prévio afastamento, por violação da Lei Fundamental, da normal interpretação literal do preceito legal em causa que autorizou o Tribunal a quo a realizar a interpretação funcional que considerou adequada e respeitadora do princípio da igualdade.
4º. Afigura-se, salvo o devido respeito, que em tal situação se verificam os pressupostos do recurso de fiscalização concreta interposto, com base na aludida recusa de aplicação.
[...]
6º. Nestes termos – e por se entender que o Tribunal «a quo» efectuou uma verdadeira recusa de aplicação do sentido normal do preceito em causa no presente recurso, a qual foi essencial e determinante para a solução jurídica que veio a ser adoptada – afigura-se, salvo melhor opinião, que se verificam os pressupostos do recurso obrigatoriamente interposto pelo Ministério Público. '
II
7. A representante do Ministério Público junto do Tribunal Central Administrativo requereu ao Tribunal Constitucional a apreciação da constitucionalidade da norma constante do artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, de
31 de Maio, que o tribunal recorrido julgou inconstitucional, por violação do princípio da igualdade.
É o seguinte o teor do artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, de 31 de Maio:
'Os militares dos quadros permanentes deficientes das Forças Armadas, nos termos das alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 18º do Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro, na situação de reforma extraordinária com um grau de incapacidade geral de ganho igual ou superior a 30%, e que não optaram pelo serviço activo, são promovidos ao posto a que teriam ascendido, tendo por referência a carreira dos militares à sua esquerda à data em que mudaram de situação, e que foram normalmente promovidos aos postos imediatos.'
Por sua vez, o artigo 2º do mesmo diploma dispõe que 'os militares nas condições referidas no artigo 1º passam a ter o direito à pensão de reforma correspondente ao posto a que forem promovidos, e no escalão vencido à data de entrada em vigor do presente diploma, não havendo lugar a quaisquer efeitos retroactivos [...]'. E, nos termos do artigo 3º, 'a revisão das pensões de reforma, decorrente do disposto no artigo 1º do presente diploma, deverá ser pedida pelo interessado à Caixa Geral de Aposentações, [...] no prazo de 120 dias a contar da entrada em vigor do presente diploma, produzindo efeitos desde esta data'. O Tribunal Central Administrativo interpretou o regime instituído por este diploma no sentido de ele operar uma reconstituição da carreira militar dos interessados, ou uma reintegração automática no serviço activo.
Na perspectiva da decisão sob recurso, a norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, de 31 de Maio, ofenderia o princípio da igualdade, ao tratar de modo diferente, sem razão, dois grupos de deficientes das Forças Armadas, para efeitos do mencionado reingresso automático no serviço activo: de um lado, os militares do quadro permanente que não puderam requerer o ingresso no serviço activo, por força do nº 7, alínea a), da Portaria nº 162/76, de 24 de Março; de outro lado, os militares do quadro de complemento que também não puderam, pelo mesmo motivo, requerer o ingresso no serviço activo.
No acórdão recorrido, considerou-se que 'o indeferimento tácito da pretensão do recorrente traduz a inaplicabilidade ao seu caso do art. 1º do Dec.-Lei 134/97, de 31 de Maio, e, sendo tal inaplicabilidade claramente violadora do art. 13º da Constituição (princípio da igualdade), então, o referido indeferimento mostra-se ferido do vício de violação de lei'.
Sucede todavia que do artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, de 31 de Maio, não decorre qualquer 'reingresso no activo' de militares deficientes das Forças Armadas 'na situação de reforma extraordinária', estejam ou não integrados no quadro permanente. A norma em causa, no seu teor literal, atribui a certas categorias de militares dos quadros permanentes deficientes das Forças Armadas (considerados automaticamente deficientes das Forças Armadas nos termos das alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 18º do Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro, na situação de reforma extraordinária com um grau de incapacidade geral de ganho igual ou superior a 30%), que não optaram pelo serviço activo, uma promoção automática 'ao posto a que teriam ascendido, tendo por referência a carreira dos militares à sua esquerda à data em que mudaram de situação, e que foram normalmente promovidos aos postos imediatos'. A interpretação perfilhada na decisão recorrida e o entendimento do Tribunal Central Administrativo segundo o qual o acto tácito de indeferimento impugnado no processo tem o seu fundamento na norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, de 31 de Maio, não podem ser sindicados por este Tribunal. Na verdade, ao Tribunal Constitucional não compete apreciar a aplicação que os outros tribunais façam do direito infraconstitucional. Na competência do Tribunal Constitucional cabe apenas apreciar a eventual inconstitucionalidade da norma cuja aplicação foi recusada, pelo tribunal recorrido, com esse fundamento. Constitui pressuposto típico do recuso interposto – o recurso previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – a recusa de aplicação, na decisão recorrida, de uma norma de direito ordinário com fundamento na sua desconformidade com a Constituição. É necessário portanto que a decisão recorrida tenha recusado, ainda que implicitamente, a aplicação de uma norma jurídica com fundamento em inconstitucionalidade e que a recusa de aplicação da norma em causa constitua uma dos fundamentos de tal decisão, e não um mero obter dictum. Entende o Tribunal Constitucional que se encontram verificados no caso concreto os pressuposto de admissibilidade do recuso interposto. Perante duas interpretações possíveis de determinado preceito (artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, de 31 de Maio) – uma que exclui do respectivo âmbito de aplicação os deficientes das Forças Armadas do quadro de complemento, abrangendo apenas para os deficientes do quadro permanente, e outra que inclui uns e outros
–, o acórdão recorrido afastou a primeira interpretação, considerando-a contrária ao princípio da igualdade, e adoptou a segunda. Foi esta – repete-se – a razão de decidir do acórdão do Tribunal Central Administrativo: dando como assente que 'o indeferimento tácito da pretensão do recorrente traduz a inaplicabilidade ao seu caso do art. 1º do Dec.-Lei 134/97, de 31 de Maio, e, sendo tal inaplicabilidade claramente violadora do art. 13º da Constituição (princípio da igualdade)', o tribunal decidiu anular o acto recorrido, por violação do artigo 13º da Constituição, e conceder provimento ao recurso.
8. Objecto do presente recurso é assim a norma que o acórdão recorrido considerou contida no artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, de 31 de Maio, nos termos da qual se reserva aos militares dos quadros permanentes das Forças Armadas, em situação de reforma extraordinária, nas condições ali previstas, a reintegração automática no serviço activo, com exclusão dos militares do quadro de complemento em situação de pensão de invalidez. O Tribunal Central Administrativo entendeu que esta exclusão infringe o princípio da igualdade, razão pela qual se recusou a aplicar a norma em questão, nos termos do artigo
204º da Constituição.
Este entendimento da norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº 134/97, de
31 de Maio, foi já objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional.
No acórdão nº 319/00, ainda inédito, depois de recordar o sentido atribuído ao princípio da igualdade na jurisprudência constitucional (citando sobretudo o acórdão nº 563/96, invocado na decisão recorrida), este Tribunal ponderou:
'[...] No caso presente, coloca-se a questão de saber se é constitucionalmente admissível excluir os militares deficientes das Forças Armadas do quadro complemento da reintegração automática no serviço activo, decorrente, segundo o acórdão recorrido, da norma que julgou inconstitucional, a processar-se nos termos previstos no Decreto-Lei nº 134/97. Está, pois, em causa, uma distinção operada no universo dos destinatários possíveis da norma: apenas abrangendo os militares deficientes das Forças Armadas dos quadros permanentes, a norma afasta da sua aplicação os militares deficientes das Forças Armadas do quadro de complemento, que não poderiam beneficiar da reintegração automática no serviço activo por não pertencerem a esses quadros permanentes. Ora a verdade é que existem regimes globalmente diferenciados para os militares dos quadros permanentes e para os militares do quadro complemento, nomeadamente distinguindo-os para efeitos de definição de regime de carreira e de promoções – e, portanto, justificando diferenças no regime de integração no serviço activo de uns e de outros; assim, aliás, procedeu o Decreto-Lei nº 43/76, de 20 de Janeiro de 1976 (ver, em particular, o seu artigo 7º, que trata separadamente o exercício do «direito de opção pela continuação no serviço activo» para os dois grupos de militares deficientes das Forças Armadas). Ora o regime definido pelo Decreto-Lei nº 134/97 para os militares deficientes das Forças Armadas do quadro permanente não toma em conta, naturalmente, as diferenças globalmente existentes entre os dois regimes.
[...].'
Considerando não ser aceitável isolar um ponto do regime global para fazer a comparação, o Tribunal concluiu:
'Estando, portanto, em causa uma norma que prevê a reintegração automática no serviço activo, a verificar-se nos termos previstos nos restantes preceitos do Decreto-Lei nº 134/97, pois que foi com este sentido que a norma objecto deste processo foi interpretada, não pode considerar-se violado o princípio da igualdade pela circunstância de se não abranger no seu âmbito os militares deficientes das Forças Armadas do quadro complemento.'
É esta jurisprudência que aqui se reitera, pelos fundamentos, mais amplos, constantes do mencionado acórdão nº 319/00. III
9. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada de acordo com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 13 de Julho de 2000 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa