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Proc. N.º 189/00
1ª Secção Cons. Vítor Nunes de Almeida ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL: I – RELATÓRIO:
1. – Nos autos de inquérito, que correram termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Condeixa-a-Nova, contra MV, na sequência do falecimento de AM, o Ministério Público proferiu, em 17 de Abril de 1999, um despacho pelo qual ordenou o arquivamento dos autos, por não ter sido possível
'esclarecer cabalmente as circunstâncias precisas em que o malogrado AM sofreu o ferimento letal, bem como a sua autoria e eventual relevância criminal'.
MV, viúva do falecido AM, que se tinha constituído assistente no mencionado processo, veio requerer a abertura da pertinente instrução, por não se conformar com o despacho de arquivamento do Ministério Público.
2. – Por despacho de 14 de Junho de 1999, o Juiz da Comarca decidiu 'julgar nulo e em consequência totalmente inválido o requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente MV', invocando, para tanto, os artigos 287º, n.º1, alínea b), n.º2, 283º, n.º3, alíneas b) e c),
118º, n.º1, e 122º, n.ºs 1,2 e 3, todos do Código de Processo Penal.
É do seguinte teor o referido despacho:
I. Cumpre apreciar a arguição, analisando-se aquele requerimento e as pertinentes regras legais. Assim, dir-se-á, desde já que é manifesto estar a razão inteiramente com o magistrado do M.P.. Na verdade, compulsando o requerimento de abertura de instrução, logo se constata, como acima referido, que lhe são vertidas reputações da argumentação lógica expendida no despacho de agravamento. A requerente contesta a 'leitura' que o magistrado do M.P. ali faz da matéria recolhida em inquérito, e concretiza longamente as razões da sua discordância. Para o efeito, analisa certos pormenores que teriam sido apurados, e aponta deficiências à investigação, manifestando estranheza pela conclusão extraída pelo M.P., e sugerindo que o infausto acontecimento não teria sido obra de caso fortuito mas sim, porventura, da responsabilidade da arguida, trazendo à colacção brincadeiras perigosas que esta de ordinário teria com a vítima, e ainda um comportamento dela (arguida) posterior aos factos que seria supostamente suspeito. Conclui sem imputar expressamente à arguida o crime de homicídio que antes claramente sugerira dever ter aquela cometido (e nem qualquer outro crime), designadamente omitindo qualquer referência ao tipo legal de ilícito que por ela teria sido preenchido – limitando-se a requerer investigação suplementar, tendente à descoberta da suposta verdade material do caso. Ora, em primeiro lugar um tal requerimento é bem o exemplo de que hoje ainda, 12 anos volvidos sobre a entrada em vigor do novo C.P.P., recentemente revisto, continua a não ser bem compreendido o alcance, a correcta função da instrução no equilíbrio do processo penal. A instrução não é um suplemento de investigação e nem tem em vista a substituição do M.P. pelo juiz na investigação. Tudo quanto em sede de instrução se faça no sentido de investigar, terá de ter sempre como horizonte o vir ou não a comprovar-se judicialmente a decisão acusatória ou de agravamento, que esse é sim o escopo legal da instrução. Posto isto, dir-se-á que se a requerente entende que o inquérito foi insuficiente, ou mal conduzido no sentido de terem sido desastradas as diligências de recolha de prova, mas sem que se ache habilitada a, contrariamente ao M.P., fundar (inclusivamente) a imputação de factos concretos à arguida (não podendo senão limitar-se a dela suspeitar, mais ou menos fundadamente), então o mecanismo correcto e próprio
(para isso a lei o prevê), teria sido o recurso à intervenção hierárquica, nos termos do art. 278º do C.P.P.. Não o entendeu porém assim a requerente, e eis-nos por isso chegados, face ao descrito modo como requereu a instrução, à situação processual em que agora nos achamos. Desta maneira, e agora decisivamente no plano da arguição de nulidade em causa, importa referir em segundo lugar que requerente da instrução é assistente, pelo que o respectivo objecto é (e só pode ser) o de infirmar judicialmente a decisão de agravamento do inquérito, e obter pronúncia da arguida pelos factos relativamente aos quais o M.P. não a acusou (cfr. os arts. 286º, nº1, 1 e 287º, nº1, al. b), do C.P.P.) Como é de inteira lógica, tal pressupõe a imputação de factos concretos à arguida, factos que a requerente pretenderia suficientemente indicados, e que fossem integradores de um tipo de ilícito que deveria igualmente ser imputado àquela, em termos tais que se da instrução resultasse comprovado o juízo de condenação alegado pelo assistente, então fosse por tais factos e com essa (ou outra) valoração jurídica, processada a arguida. Como bem se intui, o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, tem materialmente a estrutura e o sentido de uma acusação (como a doutrina o tem acentuado), inclusivamente implicando vinculação temática do Tribunal (cfr. art.
303º do C.P.P.).
É neste quadro sumariamente descrito que ganha inteiro sentido o teor do art.
287º, nº2, parte final, do C.P.P. Aí se dispõe que é aplicável ao requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente o disposto no art. 283º, nº3, al. b) e c), que sob pena de nulidade, a acusação (leia-se aqui 'o requerimento', pelo efeito remissivo do art. 287º, nº 2) deverá conter 'a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação de sua prática, o grau de participação que o agente neles tem e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada '; e ainda, 'a indicação das disposições legais aplicáveis'. Está bom de ver, nada disto fez a requerente. À uma, o seu requerimento é um somatório de raciocínios dubitativos e manifestações de perplexidades e suspeitas, uma colecção de vaguidades de que se retira, implicitamente, que a assistente de modo abstracto imputa participação da arguida na morte de seu marido, por ignoto modo. Em caso algum a desconexa articulação do requerimento poderia haver-se como 'narração de factos, etc.'. Não se trata ali, a nenhum título, de um libelo acusatório em que a assistente tome posição definitiva relativamente à suposta actuação delitiva da arguida, em termos tais que ficasse definido o objecto da instrução, e, provando-se ou não a factualidade imputada, a arguida fosse ou não pronunciada em conformidade. Logo por aqui, é pois nulo o requerimento de abertura de instrução, à luz dos art. 287º, nº2 e 283º, nº3, al. b), do C.P.P.. E, sendo nulo por essa via, quase fica esvaziada de sentido a arguição da outra nulidade. Com efeito, torna-se mera formalidade constatar que não são naquele requerimento referidas as disposições legais aplicáveis; rectius, não se toma posição relativamente a que crimes e em que formas teria a arguida cometido, não se referindo as disposições legais que os prevêem e punem (e como o faria a assistente, se nenhuns factos concretos delitivos imputa afinal?) Evidentemente, também aqui assiste integral razão ao magistrado do M.P.: o requerimento é ainda nulo também nos termos dos art. 287º, nº2, e 283º, nº3, al. c), do C.P.P..
É pois estrepitoso e duplamente nulo o desastrado requerimento de abertura de instrução. Trata-se aqui, como decorre dos art. 118º, nº1, 119º 'a contrario', e 120º, nº1, todos do C.P.P., de nulidade dependente de arguição. Precisamente, foi arguida pelo M.P., e de modo inteiramente regular (artº 120º, nº3, al. c), do C.P.P.). Em face de quanto vai exposto, e nos termos do art. 122º, nº1, do C.P.P., o requerimento de abertura de instrução é inválido, não podendo ter o efeito de invocar aquela fase processual e de resto nem qualquer outro, sendo por inteiro inaproveitável. E nem mesmo é passível de ser repetido, não havendo que determinar a sua repetição. Desde logo, e nos termos do art. 122º, nº2, do C.P.P., porque esta já não seria possível, quando é certo que um novo requerimento de abertura de instrução que a assistente quisesse deduzir estaria absolutamente fora do tempo, ultrapassado como está, e largamente, o prazo respectivo.'
3. – A assistente MV notificada deste despacho interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo apresentado as seguintes conclusões:
'B1: De iure constituto – art. 287º, n.º2, do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.º 58/98, de 25 de Agosto – o requerimento de abertura de instrução, deduzido pelo assistente, para fazer sindicar judicialmente a decisão do Ministério Público de arquivar o inquérito, deve constituir, formal e materialmente, de uma perspectiva funcional, algo de semelhante a uma acusação. Como assim, B2: resulta de lei expressa – art. 287º, n.º2 do citado compêndio normativo – deve tal requerimento observar certos requisitos formais próprios das acusações, os das alíneas b) e c) do n.º3 do art. 283º do mesmo diploma. Por conseguinte. B3: a inobservância desses requisitos – como sucedeu na hipótese dos autos – gera uma nulidade com a tipologia daquelas referidas no art. 120º do Código de Processo Penal, B4: quer por força do disposto no corpo do citado n.º3 do art. 283º, ou seja, por remissão, quer, a não se considerar assim, por aplicação directa do dito art. 120º, ambos do Código de Processo Penal. Ora, B5: tendo em consideração o disposto no art. 122º do mesmo Código, a invalidade dai recorrente não inquina todo o processo, determinando irrepetivelmente o arquivamento dos autos, na sequência do despacho proferido pelo Ministério Público findo o inquérito, ao abrigo do disposto no artigo 277º do Código em apreço B6: antes deveria ter determinado que o M.mo Juiz se limitasse a declarar nulo o referido requerimento, corporizador de determinado acto processual – o de requerer a abertura da instrução. E, B7: declarada a nulidade do referido acto, uma de duas: ou a recorrente discordava de tal despacho, dele recorrendo, ou concordando com ele apresentaria, no prazo de dez dias, novo papel depurado dos vícios que determinaram a declaração de nulidade do acto nele consubstanciado. Porém, B8: o Senhor Juiz, ao fazer apelo, como o faz a fls 214 e verso, ao disposto no art. 122º, n.º2, acima referido e ao sacar dele que o acto que veio a fulminar – e bem! – de nulo, não poderá ser repetido, violou o referido normativo, interpretando-o como se ele coenvolvesse uma consequência semelhante a uma verdadeira 'absolvição do pedido', vale por dizer, a um vício sem remissão. Ora, B9: uma tal interpretação viola não só o disposto no n.º3 do artigo 287º do Código de Processo Penal B10:como o próprio n.º4 do artigo 32º da Constituição da República. Por conseguinte, B11: deve, pelos preditos motivos, ser revogado o douto despacho recorrido, com as acima enunciadas consequências.'
4. - A Relação de Coimbra, por acórdão de 26 de Janeiro de 2000, decidiu negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
O acórdão fundamentou pela forma seguinte a decisão:
'O que assim e residualmente nos resta é a questão de saber se se deveria ter ordenado a repetição do acto por ainda ser ‘possível’ a sua prática. Não se trata, como se nos afigura liminar, de uma possibilidade a aferir em termos materiais, pois não faz sentido pensar-se o problema em tal perspectiva. O cerne da problemática que agora nos ocupa situa-se, deve situar-se, num plano estritamente jurídico. Sendo certo que não está em causa a correcção do despacho de notificação do arquivamento, temos que a declaração de nulidade comporta a 'destruição ex tunc dos efeitos jurídicos que o acto nulo se propunha alcançar'. Mas, assim sendo, como pensamos que é, tal 'possibilidade' de repetição do acto ferido inelutavelmente de nulidade depara com obstáculo de todo intransponível: o esgotamento do prazo – peremptório (cfr. Ac. do Plenário das secções criminais do S.T.J., n.º 2/96, de 06 de Dezembro de 1996, in Dº da Rep.ª, I-A, Série, de
10.01.1996) – assinalado no n.º1 do artigo 287º, que preceitua que:
'A abertura de instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias, a contar da notificação da acusação ou do arquivamento'. Pensar de outro modo, ao permitir a repetição do acto nulo, seria ferir e violar o respectivo comando legal. Assim, bem andou o Mº Juiz a quo ao considerar que tal requerimento '... não é possível de ser repetido...', por estar '... absolutamente fora de tempo, ultrapassado como está, e longamente, o prazo respectivo.' Improcedem, pois, as conclusões da recorrente.'
Contra esta decisão reagiu a assistente interpondo recurso de constitucionalidade para este Tribunal. No respectivo requerimento de interposição do recurso, referiu a recorrente que pretende '...que o Tribunal declare inconstitucional a interpretação e aplicação feitas nas decisões das instâncias e, sobretudo, naquela corporizada no acórdão do Tribunal a quo, segundo a qual a 'possibilidade' 'de repetição de acto ferido inelutavelmente de nulidade depara com obstáculo de todo intransponível: o esgotamento do prazo – peremptório (...)' – assinalado no n.º1 do art. 287º, ...'.
Face a um tal teor do requerimento de interposição do recurso, o relator convidou a recorrente a esclarecer: a) qual a norma cuja inconstitucionalidade pretende que o Tribunal aprecie; b) qual a exacta interpretação dessa norma, que tenha sido aplicada na decisão recorrida e constitua objecto do recurso de constitucionalidade.
Na sequência deste convite, a recorrente veio esclarecer o seguinte: a norma em causa é a do 'artigo 287º, n.º1 e sua alínea b), do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que o prazo referido no corpo do n.º1' do preceito 'impede a renovação do acto [requerimento de abertura da instrução], quando a instrução seja rejeitada por vício de forma – inobservância do disposto no nº e de tal normativo'(sic).
Segundo a recorrente, esta interpretação restringe de forma desproporcionada o conteúdo da garantia decorrente do n.º 4 do artigo 32º da Constituição da República: direito de suscitar a fase processual denominada
'instrução'.'
5. – Nas alegações que apresentou neste Tribunal, a recorrente formulou as seguintes conclusões:
'B1: O Tribunal da Relação de Coimbra errou o alvo, ao 'desaforar' a questão relativamente à sede argumentativa na qual ela vinha sediada, e que é a que deve prevalecer B2: ao cometer a 'jurisdição' para a decisão da problemática ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para uniformização de jurisprudência nº 2/96, de 6 de Dezembro de 1995, que é absolutamente alienígeno no que toca a matéria em discussão. Com efeito, B3: a correcta solução da problemática em apreço, de uma perspectiva de amizade constitucional, até nem postula grandes retóricas argumentativas, por decorrer carrément da lei, desde que, está visto, se não pretenda afastá-la para evitar
'complicações'. É que, B4: como decorre do disposto no nº 4 do artigo 32º da Constituição da República, a existência, no processo penal de uma fase chamada de 'instrução' constitui um direito fundamental e, como tal, directamente aplicável B5: e, consequentemente, o disposto no nº3 do artigo 287º do Código de Processo Penal mais não é do que a 'certificação' ao nível do direito legislado da referida garantia jurídico-constitucional, limitando os casos nos quais o julgador pode denegá-la na aplicação da lei. Ora, B6: o caso dos autos é daqueles nos quais, indubiamente, o legislador constituinte não deixou margem àquele ordinário para cercear o direito à instrução. Com efeito, B7: o acórdão recorrido obliterou toda a ordem de razões acima referida, maxime as das 'CONCLUSÕES' B4 a B7, para optar por uma solução apenas decorrente do mais flagrante arremedo formal, esquecendo que a questão releva, no fundamental, da necessidade de um enfoque 'conforme à Constituição'. Ora, B8: para que o diploma fundamental, sub specie, não seja remetido para papel secundário, a única interpretação conforme à Constituição que a curiosa situação dos autos postularia é a de declarar inválido o requerimento de abertura da instrução, retirando dessa invalidade as consequências queridas pelo direito legislado (artigo 122º, nº2 do Código de Processo Penal) e, B9: na consequência, ordenando a notificação da recorrente para aperfeiçoar o seu precedente requerimento, pois só desarte se poderá afirmar a primazia substancial do referido direito fundamental sobre interpretações prevalecendo-se do formal e da grosseira prevalência de razões que, embora respeitáveis, não deixam de, no essencial, relevar sobretudo do consequencial ou secundário. Como assim, B10: a solução adoptada pelo Tribunal da Relação de Coimbra coenvolveu uma desproporcionada restrição do direito assegurado pelo nº 4 do artigo 32º da Constituição da República, pelo que deve ser declarada inconstitucional.'
Também o Ministério Público alegou, tendo concluído as alegações que apresentou pela forma seguinte:
'1- Não viola o princípio constitucional das garantias de defesa a interpretação da norma constante do artigo 287º do Código de Processo Penal que se traduz em não admitir a renovação, para além do prazo peremptório em que o acto podia ser praticado, de requerimento instrutório manifestamente inepto, por insusceptível de desempenhar a respectiva função processual, e, como tal, ferido por nulidade insuprível.
2- Na verdade, tal nulidade – que pela sua gravidade, é insusceptível de ser suprida mediante simples aperfeiçoamento ou correcção de deficiências formais de tal peça processual – é plenamente imputável ao sujeito processual que requereu, em termos procedimentalmente inidóneos, a instrução e apenas lhe aproveitaria, a ele próprio, a pretendida renovação do acto nulo, em detrimento do prazo peremptório, fixado na lei para a sua prática.
3- Termos em que deverá manifestamente improceder o presente recurso.'
Pelo seu lado, a recorrida, MV também produziu alegações em que formulou as seguintes conclusões:
1. A Constituição Portuguesa integra um extenso conjunto de normas ordenadas sistemática e racionalmente.
2. A Doutrina e a Jurisprudência são auxiliares relevantes para a interpretação do Direito Constitucional, dando-o a conhecer ao cidadão.
3. A Recorrente, assistente no processo de Inquérito referido, alega a violação do direito fundamental decorrente do nº4 do art. 32º da Constituição da Républica Portuguesa.
4. Da leitura atenta de todo esse preceito, resulta que ele contém, apenas, as garantias de defesa do arguido.
5. A Constituição é, assim, manifestamente omissa sobre a figura da vítima dos crimes (cfr. opinião do Dr. Gomes Canotilho, vid. Const. da Rép. Port. Anot., 3ª edição, pág. 208).
6. Essa omissão não se pode considerar como lacuna, foi feita intencionalmente, de modo a remeter a disciplina normativa sobre esse sujeito do processo penal para a lei processual penal, segundo o princípio da 'Liberdade de Conformação Legislativa'.
7. Daí que importa conhecer e aplicar o regime jurídico que o C.P. Penal consagra sobre a matéria.
8. O requerimento de abertura de instrução em causa foi declarado inválido por não conter os requisitos exigidos na lei processual penal (arts 287º nº2 e
283º nº3 al. b) e c).
9. O art. 122º nº2 do C.P. Penal ordena a repetição dos actos inválidos,
'sempre que necessário e possível'.
10. Ora, a instrução não reveste carácter obrigatório na tramitação do processo penal, mas apenas facultativo (art. 286º nº 2 do C.P.P.), o que exclui o carácter de necessidade.
11. Por outro lado, e fundamentalmente, a repetição torna-se impossível, perante um obstáculo de todo intransponível: o esgotamento do prazo – peremptório – (cfr. Ac. Plenário das Secções Criminais do STJ nº2/96, de 6 de Dezembro de 1995 in D.R. I-A, de 10-01-1996) a que refere o art. 287º nº1 do C.P.Penal: 'A abertura de instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias, a contar da notificação da acusação ou do arquivamento.'.
12. No dizer do douto Ac. Da Relação de Coimbra em análise: 'Pensar de outro modo, ao permitir a repetição do acto nulo, seria ferir e violar o respectivo comando legal'.
13. E tal interpretação deste comando não contraria nenhuma norma ou princípio constitucional.'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II – FUNDAMENTOS
6. – A questão que, afinal, a recorrente suscita nos autos, é a de saber se o decurso do prazo para requerer a abertura da instrução impede a renovação do respectivo requerimento, que foi julgado nulo por inobservância dos requisitos exigidos por lei. A recorrente entende que uma tal interpretação dos nºs 1, alínea b) e 2 do artigo 287º do CPP/98 restringe desproporcionadamente o princípio constante do nº4 do artigo 32º da Constituição.
Vejamos, antes de mais, o texto das normas em questão.
O artigo 287º, sob a epígrafe 'Requerimento para abertura da instrução', tem a seguinte redacção:
'1. A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento: a. Pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação; ou b. Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
2. O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões, de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283º, nº3, alíneas b) e c). Não podem ser indicadas mais de 20 testemunhas.
3. O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
[...]'
Decorre dos autos que a recorrente não questiona a existência da nulidade que afecta o requerimento de abertura de instrução de fls. 204 e ss. (ainda que nas alegações apresentadas neste Tribunal se manifestem algumas dúvidas), nem põe em causa a natureza peremptória do prazo fixado no nº1 do artigo 287º do CPP, como bem salienta o Ministério Público nas suas alegações.
O que, verdadeiramente, a recorrente questiona – como claramente resulta das conclusões das suas alegações – é que a decisão recorrida tenha declarado inválido o requerimento de abertura da instrução sem ter ordenado a sua notificação para apresentar novo requerimento, que eliminasse as deficiências que tornavam nulo o entretanto apresentado.
Com efeito, o despacho do juiz de instrução ao apreciar a arguição de nulidade, depois de concluir que o requerimento a pedir a abertura de instrução é inválido, acrescenta: 'E nem mesmo é passível de ser repetido, não havendo que determinar a sua repetição. Desde logo, e nos termos do artigo
122º, n.º2, do C.P.P., porque esta já não seria possível, quando é certo que um novo requerimento de abertura de instrução que o assistente quisesse deduzir estaria absolutamente fora de tempo, ultrapassado como está, e largamente, o respectivo prazo.'
E é esta interpretação do artigo 287º, nºs 1 e 2, conjugada com o nº2 do artigo 122º, todos do CPP, que a recorrente considera violadora do artigo 32º, nº4, da Constituição.
Vejamos.
7. – Importa, antes de mais, acentuar que a recorrente detém a posição de assistente no processo. Nos termos do artigo 69º do CPP, os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, subordinando a sua intervenção no processo à actividade daquela entidade, salvo nos casos excepcionais previstos na lei. Entre estes casos, em que o assistente actua sem subordinação ao Ministério Público, encontra-se o requerimento de abertura de instrução quando o Ministério Público, findo o inquérito, se abstém de acusar
(artigo 287º, nº1, alínea b) do CPP).
Assim, no caso de acção penal por crimes públicos, se o Ministério Público não deduzir acusação, o assistente pode requerer a abertura da instrução, uma vez que esta fase processual se destina a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito (artigo
286º, nº1, do CPP). No CPP, a fase de instrução estrutura-se com dupla finalidade: a de obter a comprovação judicial da acusação e a de proceder ao controlo judicial da decisão processual do Ministério Público (MP), de arquivar o inquérito. Efectivamente, quando o MP não acusa, tratando-se de crime público, o assistente pode apresentar um requerimento para abertura de instrução que corresponde à dedução de acusação que, se for recebida, poderá levar à pronúncia de quem nessa acusação for identificado como arguido.
No caso em apreço, o requerimento de abertura da instrução foi considerado nulo por despacho do juiz de instrução, com fundamento nos artigos 287º, nº2 e 283º, nº3, alíneas b) e c), do CPP. De acordo com a referida decisão, o requerimento foi julgado inválido nos termos do disposto no artigo 122º, nº1, do CPP, sendo considerado inaproveitável para iniciar tal fase processual e, nos termos do nº2 do mesmo preceito, nem sequer podia ser renovado por esgotamento do prazo para requerer a instrução.
Importa, assim, apurar, na parte relevante para os autos, qual o regime das nulidades em processo penal.
8. – Os actos processuais integram-se no todo processual e visam a realização do fim global do processo, sendo uns dependentes dos outros. A violação das leis do processo só determina a nulidade do acto se esta for expressamente cominada, sendo os outros actos ilegais considerados irregulares (artigo 118º, nºs 1 e 2, do CPP). As nulidades podem ser insanáveis ou absolutas, isto é, as que sendo taxativas, podem ser declaradas, mesmo oficiosamente, enquanto não transita a decisão final e nulidades dependentes de arguição, isto é, as que, não sendo identificadas na lei como insanáveis, ficam sanadas se não forem arguidas pelos interessados nos prazos estabelecidos.
No caso em apreço, a nulidade foi arguida pelo Ministério Público e declarada por despacho do juiz de instrução. Importa agora apurar quais os efeitos da declaração de nulidade.
Segundo o artigo 122º do CPP, as nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar (nº1); segundo o nº2 do preceito, a declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição, colocando as despesas a cargo de quem tiver dado causa culposamente à nulidade. Finalmente, o nº3 do preceito impõe ao juiz que aproveite todos os actos que ainda possam ser salvos do efeito da nulidade.
Deste preceito resulta que uma vez declarada a invalidade de qualquer acto processual, o juiz ordena, sempre que necessário e possível a sua repetição. Segundo Germano Marques da Silva (in 'Curso de Processo Penal', IIº V., pág. 74) 'a repetição só será necessária quando os efeitos derivados do acto não tenham sido produzidos doutro modo ou o desenvolvimento do procedimento não tenha evidenciado a sua inutilidade; a renovação será possível quando subsistam ainda os elementos materiais ou os pressupostos de facto para a repetição do acto'.
No caso em apreço e na perspectiva da decisão recorrida, a renovação do acto nulo não é mais possível uma vez que se esgotou o prazo peremptório para a sua prática.
Por outro lado, o procedimento não teve – nem podia ter
- qualquer outro desenvolvimento nem os efeitos do acto podiam ser produzidos de outro modo, pelo que se poderia concluir que a renovação do acto seria necessária, ao menos na perspectiva do recorrente.
A questão que importa resolver é apurar se existe credencial constitucional para impor a renovação do acto nulo, após decurso do prazo peremptório, mais precisamente, se a Constituição impõe que o decurso do prazo fixado no nº1 do artigo 287º e alínea b), do CPP não obste à repetição do requerimento de abertura de instrução formulada pelo assistente, quando o mesmo tenha sido rejeitado por vício de forma.
Segundo o recorrente, uma diversa interpretação restringe desproporcionadamente o direito constitucionalmente garantido ao assistente de suscitar a fase processual da instrução.
Será assim?
9. - Como se referiu supra (ponto 7) a figura do assistente, surge no processo penal, como «colaborador» do Ministério Público
(artigos 68º e 69º do CPP), subordinando a sua intervenção à actividade do MP. Porém, não se trata de um mero auxiliar do MP, pois em determinados aspectos do processo criminal, o assistente surge como verdadeiro sujeito processual, podendo agir sozinho e até contra o Ministério Público, como no caso dos autos – artigo 287º, n.º1, alínea b) do CPP.
No caso, a assistente é viúva da vítima e ofendido, AM. O ofendido é o titular dos interesses que a lei quis especialmente proteger com a incriminação. Como o ofendido (e vítima) faleceu, a sua viúva constituiu-se assistente para fazer prosseguir o processo representando os seus interesses.
Ainda que a propósito de outro problema, a questão de saber se o direito a constituir-se assistente se encontra constitucionalmente reconhecido ou garantido foi colocada e respondida no Acórdão nº 690/98 (in
'Diário da República', IIª Série, de 8 de Março de 1999). Escreveu-se nesse aresto:
'O artigo 20º, nº1, dispõe que «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos», o que, como este Tribunal tem entendido, implica o reconhecimento da garantia da via judiciária, a qual se estende necessariamente a todos os direitos e interesses legítimos, ou seja, a todas as situações juridicamente protegidas.
Assim, e como se pode ler no Acórdão nº 24/88 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º Vol., pp. 525 e segs.):
«A articulação deste preceito com as injunções contidas no artigo
206º, onde, em termos genéricos, se prescreve que ‘incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, e no artigo
286º, nº3, onde se garante aos interessados recurso contencioso para obter o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido’, impõe que dele se faça uma interpretação alargada, ou seja, no sentido de que a garantia judiciária assegura o acesso aos tribunais não só para a defesa de direitos mas também de interesses legalmente protegidos». Nesta perspectiva, o que há que averiguar é se a constituição de assistente «põe judicialmente em acto algum direito ou interesse juridicamente protegido», nos termos do Acórdão nº 24/88, citado, e no qual se respondeu pela forma seguinte:
«E sem necessidade de lançar mão de outros argumentos que se poderiam extrair dos artigos 49º e 217º, nº1, da Constituição ou da autonomia que o assistente goza em matéria de audiência, de interrogatório, de alegações e de recursos relativamente ao Ministério Público, pode desde já afirmar-se que a lei protege o interesse do ofendido em contribuir para a sujeição a julgamento do ou dos autores do crime de que foi vítima.
Este interesse é juridicamente protegido através do próprio instituto do assistente e do direito à sua constituição e dos diversos poderes de intervenção processual que a lei, como se viu, amplamente lhe reconhece.
E a ponderação de que no caso de crimes públicos, a acção exercida para defesa do interesse público violado pela conduta criminosa, se há-de considerar como da própria comunidade, mercê da sua dimensão sócio-jurídica, não invalida que com este interesse possa coexistir um outro do ofendido, a que a lei dispensa protecção.'
Reconhece-se, assim, a existência de um interesse específico do ofendido em intervir mais eficazmente em processo penal.
Com a Revisão Constitucional de 1997 (Lei nº 1/97, de 20 de Setembro, com início de vigência em 5 de Outubro de 1997), o reconhecimento daquele interesse específico passou a constar da própria Lei Fundamental. Com efeito, o nº 7 do artigo 32º passou a estabelecer que 'o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei'.
Assim, no caso em apreço, o assistente defende um interesse constitucionalmente protegido e, para além disso, o nº 4 do artigo
32º, também da Constituição, estabelece que 'toda a instrução é da competência de um juiz (...)'. É certo que este preceito constitucional se refere à judicialização da instrução no processo penal, mas é manifesto que o assistente, em caso de crime público em que o Ministério Público se pronunciou pelo arquivamento do processo de inquérito, tem o direito de requerer a abertura da instrução, para assim controlar judicialmente a posição do Ministério Público. Este direito integra-se indubitavelmente no conjunto dos diversos poderes de intervenção processual do assistente e inclui-se no interesse constitucionalmente protegido de uma intervenção mais eficaz do ofendido no processo penal.
Porém, o que está em causa nos presentes autos é a questão de saber se o decurso do prazo peremptório para requerer a abertura da instrução impede a renovação de um requerimento que, tendo sido apresentado com aquela finalidade, foi considerado nulo. Ou seja, na formulação do recorrente, a questão de saber se o direito do assistente de requerer a acusação foi desproporcionadamente restringido.
A este respeito, importa reconhecer que a dimensão garantística do processo penal, face à sua repercussão nos direitos e liberdades fundamentais do arguido, obsta, por um lado, a um entendimento de tal processo como um verdadeiro processo de partes e, por outro, não proporciona uma perspectiva de total simetria entre os direitos do arguido e do assistente no que se refere ao modos de concretização das garantias de acesso à justiça.
Ora, nos casos de não pronúncia de arguido e em que o Ministério Público se decidiu pelo arquivamento do inquérito, o direito de requerer a instrução que é reconhecido ao assistente – e que deve revestir a forma de uma verdadeira acusação – não pode deixar de contender com o direito de defesa do eventual acusado ou arguido no caso daquele não respeitar o prazo fixado na lei para a sua apresentação.
O estabelecimento de um prazo peremptório para requerer a abertura da instrução – prazo esse que, uma vez decorrido impossibilita a prática do acto – insere-se ainda no âmbito da efectivação plena do direito de defesa do arguido. E a possibilidade de, após a apresentação de um requerimento de abertura de instrução, que veio a ser julgado nulo, se poder ainda repetir, de novo, um tal requerimento para além do prazo legalmente fixado, é, sem dúvida, violador das garantias de defesa do eventual arguido ou acusado. Com efeito, a admissibilidade de renovação do requerimento não permitiria que transitasse o despacho de não pronúncia, assim desaparecendo a garantia do arguido de que, por aqueles factos não seria de novo acusado.
Se se focar, agora, a perspectiva do direito da assistente de deduzir a acusação através do requerimento de abertura da instrução, a não admissibilidade de renovação do requerimento por decurso do prazo não constitui uma limitação desproporcionada do respectivo direito, na medida em que tal facto lhe é exclusivamente imputável, para além de constituir
– na sua possível concretização - uma considerável afectação das garantias de defesa do arguido.
Dir-se-á, por último, que do ponto de vista da relevância constitucional merece maior tutela a garantia de efectivação do direito de defesa (na medida em que protege o indivíduo contra possíveis abusos do poder de punir), do que garantias decorrentes da posição processual do assistente em casos de não pronúncia do arguido, isto é, em que o Ministério Público não descobriu indícios suficientes para fundar uma acusação e, por isso, decidiu arquivar o inquérito.
Este balanceamento dos interesses em causa basta para mostrar que a aceitação da exclusão do direito de renovar um requerimento nulo pelo decurso do prazo peremptório fixado não desencadeia uma limitação excessiva ou desproporcionada do direito de acusar do assistente, pelo que o recurso de constitucionalidade não pode proceder.
III - DECISÃO:
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, na parte impugnada.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
15 unidades de conta.
Lisboa, 30 de Janeiro de 2001 Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa