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Proc. nº 436/2000
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
I Relatório
1. O Tribunal Criminal de Lisboa, por acórdão de 12 de Julho de
1999, decidiu condenar L. S. e M. S., como co-autores, pela prática de um crime de violação, na forma consumada, previsto e punível nos termos do artigo 201º, nº 1, do Código Penal; pela prática de um crime de violação, na forma tentada; e pela prática de um crime de atentado ao pudor, previsto e punível nos termos do artigo 205º, nº 1, do Código Penal, aplicando a pena única de cinco anos de prisão. O Tribunal condenou ainda os arguidos no pagamento de uma indemnização à assistente no valor de 2.000.001$00 e em custas. Por último, declarou perdoada em 1 ano a pena aplicada e perdido a favor do Estado o automóvel apreendido.
Nesse aresto, depois de proceder à indicação dos factos provados e não provados, o tribunal mencionou os meios de prova determinantes para a formação da sua convicção, referindo os factos sobre os quais tais meios de prova incidiram, e realçou aqueles aos quais foi atribuída uma 'especial relevância', nomeadamente os exames laboratoriais (que indicam como sendo dos arguidos o esperma encontrado na roupa da vítima) e o depoimento dos dois clínicos que acompanharam a assistente, 'por terem descrito de forma minuciosa as reacções psicológicas desta, que se apresentaram coincidentes com as das vítimas dos choques traumáticos'.
2. Os arguidos interpuseram recurso do acórdão de 12 de Julho de
1999. Nas alegações de recurso apresentadas, sustentaram que a norma do artigo
374º, nº 2, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de a fundamentação das decisões em matéria de facto se bastar com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em primeira instância, não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal, é inconstitucional, por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição. Os recorrentes invocaram o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 680/98, de 2 de Dezembro de 1998, afirmando que a norma impugnada foi julgada inconstitucional nesse aresto, remetendo consequentemente para a sua fundamentação.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 13 de Abril de 2000, negou provimento ao recurso, afirmando que foi feita a exposição, ‘ainda que concisa’, conforme artigo 374º, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, designadamente a natureza, evolução e sequelas do trauma, iniludível sinal de violência, causado pelos factos na ofendida, reacção aos factos pela assistente testemunhada ao longo de bastante tempo e exame, naturalmente contestado pelos recorrentes, mas evidente do esperma dos arguidos, o que conjugado com o trauma da ofendida e demais circunstâncias referidas na fundamentação nos remetem para um mínimo mas consistente exame crítico das provas e fundamentação quer de facto quer de direito. Aliás o exame crítico do relatório de fls 599, salvo melhor opinião, foi feito adequadamente face aos sinais de identidade de esperma, não sendo exigível a referência crítica aos vestígios excluídos que aliás não sustentavam, face aos positivos, uma eventual versão credível e clara dos acontecimentos, designadamente na contestação.
3. Os arguidos interpuseram recurso de constitucionalidade do acórdão de 13 de Abril de 2000, ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de 'possibilitar que um acórdão final penal não proceda a uma exposição dos motivos de facto que fundamentaram a decisão, mas apenas ao elenco dos factos provados e não provados e não proceda a um ‘exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal’, mas apenas a um enunciado dos meios de prova relevante para tal efeito com mera referência à matéria sobre a qual depuseram'.
A relatora proferiu decisão sumária, ao abrigo do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, no sentido do não conhecimento do objecto do recurso, em virtude de a decisão recorrida não ter feito aplicação do artigo
374º, nº 2, do Código de Processo Penal, na dimensão normativa impugnada durante o processo (que foi a interpretação julgada inconstitucional no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 680/98, de 2 de Dezembro - cfr. fls. 677 e 678).
4. Os recorrentes reclamaram da decisão sumária, ao abrigo do nº 3 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, tirando as seguintes conclusões:
(1) Ao contrário do que se afirma no despacho reclamado, o aresto recorrido procedeu, no caso, a uma aplicação numa dimensão materialmente inconstitucional do artigo 374º, nº 2 do CPP, quer no que se refere àquela parte em que este preceito obriga a uma indicação e exame crítico das provas, quer no que respeita
àquela outra em que este preceito exige uma reposição sobre os motivos de facto;
(2) Tal como se disse na petição de recurso, o aresto recorrido limitou-se a um enumerar dos factos provados e não provados e das provas produzidas, enumerando-as e referindo a matéria sobre a qual incidiam;
(3) O despacho reclamado significa uma antecipação por juiz singular de uma decisão colegial de fundo, a qual é a de saber, afinal, se o artigo 374º, nº 2 do CPP, na dimensão normativa concreta com que foi interpretado e aplicado no caso dos autos é ou não materialmente inconstitucional.
O Ministério Público, em resposta, sustentou o seguinte:
1 - A reclamação deduzida é manifestamente improcedente, por ser evidente e inquestionável que a decisão recorrida não aplicou a norma constante do artigo
374º, nº 2, do Código de Processo Penal com o sentido ou interpretação que, no requerimento de interposição do recurso de fiscalização concreta, lhe atribui o recorrente.
2 - Na verdade - e como bem se demonstra, em termos cabais, na douta decisão, ora reclamada - o acórdão do colectivo procedeu a uma integral e minuciosa especificação da matéria de facto provada, explicitando o tribunal, em termos suficientes e adequados, o processo de formação da sua convicção na sequência da apreciação das provas produzidas.
3 - É, pois, igualmente evidente que tal decisão não interpretou a norma constante do artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal como facultando ao colectivo a possibilidade de se limitar a indicar os factos que considera assentes e elencar meros meios de prova que os sustentam.
4 - E sendo evidente que o acórdão recorrido, proferido pela Relação, não procedeu igualmente à dita interpretação 'inconstitucional' de tal preceito.
A recorrida, na resposta apresentada, manifestou-se igualmente no sentido da improcedência da reclamação.
5. Cumpre decidir.
II Fundamentação
6. Os reclamantes afirmam que submeteram à apreciação do Tribunal Constitucional a interpretação do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, 'em termos de possibilitar que um acórdão final penal não proceda a uma exposição dos motivos de facto que fundamentem a decisão, mas apenas ao elenco dos factos provados e não proceda a um exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, mas apenas a um enunciado dos meios de prova relevantes por tal efeito com referência à matéria sobre a qual depuseram'.
Depois de referirem que a Relatora 'apenas considerou de modo suficiente a segunda questão e não a primeira', os reclamantes sustentam que o artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, foi aplicado no processo, numa dimensão normativa materialmente inconstitucional. Para o demonstrar, referem que da transcrição que se fez na Decisão Sumária do acórdão do Tribunal Criminal de Lisboa resulta que apenas se procedeu à enumeração dos meios de prova e à indicação da matéria de facto sobre a qual incidiram.
Os reclamantes prosseguem, defendendo não ser aceitável que apenas sejam realçados alguns meios de prova (como aconteceu nos autos relativamente aos depoimentos dos clínicos e aos exames laboratoriais). Por outro lado, sustentam também que não se considera cumprida a exigência legal de indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do julgador quando o tribunal realça 'este ou aquele meio de prova que intervém no processo de formação da sua convicção'.
Os reclamantes, depois de mencionarem o que entendem ser o exame crítico e a indicação dos meios de prova, afirmam não poder aceitar que a exposição de motivos se tenha apenas referido aos exames laboratoriais e ao depoimento dos clínicos. Sustentam também não poder aceitar que a exposição de motivos se confunda com a indicação e exame crítico da prova.
Os reclamantes concluem, a final, que o aresto recorrido aplicou o artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, numa dimensão inconstitucional, e que a Decisão Sumária procedeu a uma antecipação do juízo de fundo o que, na perspectiva dos reclamantes, não é aceitável.
Os reclamantes pretendem, portanto, com a presente reclamação, submeter à apreciação do Tribunal Constitucional a apreciação da conformidade à Constituição da interpretação do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, subjacente à decisão condenatória.
7. Em primeiro lugar, sublinhar-se-á que em momento algum do presente recurso de constitucionalidade se colocou em dúvida que o artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, tenha sido aplicado nos autos. Na verdade, não foi essa (nem tinha de ser) a questão apreciada e decidida na Decisão Sumária sob reclamação.
Na Decisão Sumária impugnada procedeu-se à averiguação da verificação dos pressupostos processuais do recurso interposto, nomeadamente do pressuposto consistente na aplicação pela decisão recorrida da dimensão normativa impugnada durante o processo.
Demonstrou-se, então, que os reclamantes, durante o processo (mais concretamente, nas alegações de fls. 672 e ss. - peça processual referida no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade), sustentaram a inconstitucionalidade do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, na dimensão normativa julgada inconstitucional no Acórdão nº 680/98, de 2 de Dezembro (cf. fls. 677 e 678).
Ora, no Acórdão n.º 680/98, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional o mencionado preceito quando interpretado no sentido de permitir que a fundamentação das decisões em matéria de facto se baste com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância (nesse processo a decisão condenatória havia procedido apenas à indicação dos meios de prova).
Nos presentes autos, como se mencionou na Decisão Sumária reclamada
(e como, de resto, os reclamantes admitem na presente reclamação), o Tribunal Criminal de Lisboa realçou determinados meios de prova (os exames laboratoriais e o depoimento dos clínicos que acompanharam a assistente), justificando a razão de ser de tal relevância com a referência ao conteúdo e ao resultado quer dos exames quer dos depoimentos dos dois clínicos. A tal apreciação subjaz uma dada dimensão normativa do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal. Contudo, essa dimensão normativa não se identifica com a que foi julgada inconstitucional no Acórdão nº 689/98, e que os reclamantes impugnaram durante o processo. Com efeito, o preceito não foi aplicado nos presentes autos no sentido de a fundamentação das decisões em matéria de facto apenas se bastar com a simples enumeração dos meios de prova utilizados em 1ª instância (dimensão questionada durante o processo), mas sim na interpretação segundo a qual tal fundamentação pode consistir numa indicação dos meios de prova e dos factos sobre os quais incidiram e no realce de determinados meios de prova fundamentais (no caso, os exames laboratoriais e o depoimento dos clínicos que acompanharam a assistente), explicitando o tribunal o processo de formação da convicção do julgador, através da explicação de razão de ser de tal relevância com a referência ao conteúdo e ao resultado quer dos exames quer dos depoimentos dos dois clínicos. Foi esta, pois, a concreta dimensão normativa do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, aplicada pela decisão recorrida.
Os reclamantes pretendem agora submeter à apreciação do Tribunal Constitucional, no fundo, essa dimensão normativa do artigo 374º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que identificam, na reclamação, como o 'possibilitar que um acórdão final penal não proceda a uma exposição dos motivos de facto que fundamentam a decisão, mas apenas ao elenco dos factos provados e não proceda a um 'exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal', mas apenas a um enunciado dos meios de prova relevantes para tal efeito com mera referência à matéria sobre a qual depuseram (cf. requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade de fls.763 e 764 e reclamação de fls. 801 a 805).
Porém, os reclamantes não impugnaram, na perspectiva da constitucionalidade, qualquer dimensão normativa semelhante a esta durante o processo. Como se referiu, durante o processo os reclamantes apenas suscitaram a inconstitucionalidade da dimensão normativa julgada inconstitucional no Acórdão nº 680/98. Não tendo essa dimensão normativa, obviamente, sido aplicada nos autos (e não tendo sido proferida qualquer decisão objectivamente imprevisível ou inesperada), não se verifica o pressuposto processual do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, consistente na aplicação pela decisão recorrida da norma ou dimensão normativa impugnada durante o processo.
Na verdade, os reclamantes pretendem, no requerimento de recurso de constitucionalidade e na presente reclamação, redefinir a questão de constitucionalidade normativa, corrigindo assim uma deficiente estratégia processual adoptada durante o processo. Contudo, essa redefinição não é agora possível, pois o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade não constitui o momento processualmente adequado para suscitar pela primeira vez a questão de constitucionalidade normativa que se pretende ver apreciada (cf., entre outros, o Acórdão n.º 155/95, de 15 de Março – D.R. n.º 140, II Série, de
20 de Junho de 1995). O que os reclamantes afirmam agora deviam, pois, ter afirmado antes da prolação da decisão recorrida. Não o tendo feito, fica definitivamente comprometida a admissibilidade do presente recurso de constitucionalidade.
8. Os reclamantes sustentam, por outro lado, que a Relatora, na Decisão Sumária reclamada, antecipou a decisão colegial de fundo.
Porém, os reclamantes não têm razão. Sendo certo que na decisão sumária se pode proceder à apreciação da questão de constitucionalidade suscitada (quando a questão a decidir for simples, designadamente por a mesma já ter sido objecto de decisão anterior do Tribunal ou por ser manifestamente infundada - cf. artigo 78º-A, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional), nos presentes autos a Decisão Sumária apenas procedeu, como aliás se demonstrou, à averiguação da verificação dos pressupostos processuais do recurso interposto, necessitando, para isso, de identificar a concreta dimensão normativa subjacente ao acórdão recorrido e vindo, por isso, a considerar que tal dimensão não correspondia à já julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional.
Assim, o Tribunal Constitucional não se pronunciou, nem tinha de o fazer, sobre uma eventual inconstitucionalidade de qualquer norma e, obviamente, não apreciou a conformidade à Constituição de uma qualquer dimensão normativa do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.
9. Improcede, pois, a presente reclamação.
III Decisão
10. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando, consequentemente, a Decisão Sumária reclamada.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs. Lisboa, 28 de Novembro de 2000 Maria Fernanda Palma Bravo Serra Luís Nunes de Almeida