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Proc. nº 24/97
2ª Secção Relator: Cons.º Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
A. O acórdão condenatório
1. F..., J..., JC... e outros foram acusados pelo MINISTÉRIO PÚBLICO e vieram posteriormente a ser julgados em processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, no 2º Juízo Criminal de Lisboa.
Por acórdão de 17 de Janeiro de 1994, foram condenados: o o réu F..., pela prática de um crime de burla agravada, de um crime de participação económica em negócio e de um crime de prevaricação, na pena única de sete anos de prisão, à qual foi perdoado um ano; o os réus J... e JC..., pela prática, cada um, de um crime de burla agravada, nas penas, respectivamente, de quatro anos de prisão, à qual foi perdoado um ano, e de dois anos e seis meses de prisão, com suspensão da respectiva execução pelo período de três anos.
A propósito do crime de burla agravada, procedeu o acórdão condenatório à seguinte sintetização dos factos provados:
Em síntese cabe rememorar ter-se aqui dado como provado ter a então Sr.ª Ministra da Saúde incumbido a PA, Lda, na pessoa do arguido F..., de realizar as campanhas informativas sobre o Centro das Taipas, Centro das Taipas
– serviço de urgência 115 e HSFX, com urgência.
Contando com esta urgência, com a confiança que a Sr.ª Ministra nele depositava e com a circunstância de saber que não vinha existindo, por parte do Estado, qualquer controle relativamente aos negócios em que intervinha como Director da PA, Lda decidiu-se o arguido a realizar as campanhas e a apoderar-se de avultada quantia em dinheiro.
Comunicou este propósito ao arguido J..., que o aceitou, e ambos decidiram executá-lo servindo-se de pessoas da confiança deste último, o qual para o efeito contactou os arguidos JC... e AC.... Estes vieram a aceitar os propósitos daqueles.
Na execução daqueles propósitos constituíram uma empresa em nome individual do arguido JC..., a Planimagem, que funcionou em termos formais como a entidade a quem a PA, Lda adjudicou os trabalhos.
As campanhas foram realizadas, mas não nos termos propostos pela PA, Lda ao Ministério da Saúde, pois nunca foi propósito dos arguidos a sua realização nesses termos.
Desse modo, nunca os arguidos solicitaram a produção nem marcaram a distribuição dos dois filmes institucionais, que incluíram nas propostas.
Por outro lado, os arguidos sabiam que nos termos das propostas apresentadas pela PA, Lda ao Ministério da Saúde, a remuneração desta pela realização dos seus serviços era uma percentagem de 15%, designada de comissão de agência, a incidir sobre o valor real dos trabalhos de produção e distribuição das campanhas.
Porém, os arguidos naquelas propostas não indicaram o valor real dos trabalhos de produção e distribuição das campanhas, antes indicaram valores muito superiores, o que fez aumentar também o valor da comissão de agência, de forma indevida.
Obtiveram os arguidos do Ministério da Saúde, através da PA, Lda, os pagamentos antecipados das campanhas publicitárias. Estes pagamentos foram autorizados pela Sr.ª Ministra, na convicção de que havia intenção séria de realizar todos os trabalhos e que os custos apresentados nas propostas para a produção e distribuição eram os custos reais.
Por este modo, indicação de custos superiores aos reais e apresentação de serviços que nunca foi seu propósito realizar, vieram os arguidos F..., J..., JC... e AC... a apoderar-se da quantia de 56 738 144$40, que repartiram entre si, em prejuízo do Estado.
B. Os recursos para o STJ
2. Inconformados, os arguidos interpuseram recurso dessa decisão para o Supremo Tribunal de Justiça.
Com estes recursos da decisão condenatória da primeira instância, subiram também outros cinco recursos, interpostos de diversos despachos interlocutórios, entre os quais um – em que era recorrente o arguido JC... – interposto dos despachos que ordenaram a junção aos autos de vários documentos vindos do DIAP, bem como dos que, posteriormente, determinaram a respectiva manutenção nos autos.
a. Recurso de F...
3. Na respectiva motivação de recurso, o recorrente F... entendeu, antes de mais, que o tipo legal do crime de burla não abrangia as situações de mero aproveitamento pelo agente de erro ou engano alheio, quando este não provocou esse mesmo erro ou engano; o tipo do crime antes «exige uma conduta activa – provocada – por parte do agente», o que não se teria verificado, no seu caso.
Por outro lado, e após analisar a factualidade dada como provada pela primeira instância, concluiu que «o Acórdão recorrido veio alterar os factos constantes da pronúncia, introduzindo factos novos». Indicou, então, diversas divergências entre a pronúncia e o acórdão, salientando-se como mais relevantes as seguintes:
2. 17 – Veio o Acórdão Recorrido a dar como provado:
a) 'Como remuneração pela realização destes serviços foi estipulado nas propostas, subscritas pelo arguido F..., o pagamento de uma verba, a título de comissão de agência, calculada com base numa percentagem de
15% sobre o valor efectivo ou real que o Ministério da Saúde tinha que pagar pela produção e distribuição das campanhas para o 'Centro das Taipas' e Centro Taipas '(Serviço de Urgência)'; – nº 173, a folhas 50 do Acórdão recorrido -. b) 'Essa comissão foi fixada no montante de 10.304.069$00 e corresponde à totalidade das verbas que os arguidos F..., J... e AC... sabiam ter a PA, Ld.ª direito como remuneração pelas campanhas do 'Centro das Taipas' e 'Centro das Taipas' (Serviço de Urgência), no caso de serem reais os preços que eram apresentados para a produção e distribuição das campanhas' – nº 174, a folhas 50 do Acórdão recorrido -. No entanto, o Recorrente, quanto a esta matéria, foi pronunciado nos seguintes termos: a) 'Como remuneração pela realização destes serviços, estipularam os arguidos o pagamento de uma verba, a título de comissão de agência, calculada com base numa percentagem de 15% sobre o valor efectivo que o Ministério da Saúde teria que pagar pela realização das campanhas para o Centro das Taipas e Serviço '115' – folhas 54 da Pronúncia -. b) 'Essa comissão foi fixada no montante de 10.304.069$00, o qual corresponde à totalidade das verbas que os arguidos entendiam ter direito como remuneração pelas campanhas do Centro das Taipas em articulação com o Serviço '115' – folhas 54 da Pronúncia -. O desfazamento, contradição e alteração de sentido entre os nºs 173 e 174 do Acórdão recorrido e a Pronúncia verifica-se nos seguintes pontos:
- Enquanto na Pronúncia foram os arguidos a estipular a comissão de agência, no Acórdão é apenas o Recorrente que, ao subscrever as Propostas, a estipula;
- Enquanto na Pronúncia a percentagem de 15% era calculada sobre o valor efectivo que o Ministério da Saúde teria de pagar pela realização das Campanhas para o Centro das Taipas e 115, no Acórdão essa percentagem já vem calculada sobre o valor real que o Ministério tinha de pagar pela produção e distribuição das Campanhas.
- Enquanto na Pronúncia o montante de 10.304.069$00 corresponde à totalidade das verbas que os arguidos entendiam ter direito como remuneração pelas referidas Campanhas, no Acórdão esse montante já passa a corresponder à totalidade das verbas que eles sabiam que a PA, Ld.ª tinha direito, no caso de serem REAIS os preços que eram apresentados para produção e distribuição daquelas Campanhas.
Estamos em presença não de uma mera mudança de redacção, mas antes de uma alteração de factos, dos factos descritos na Pronúncia.
Na verdade, mudou-se:
a) Os Agentes – já não são os arguidos mas apenas o Recorrente a praticar os factos -.
b) Quem os arguidos sabiam que tinha direito à comissão – deixam de ser eles próprios e passa a ser a PA, Ld.ª -.
c) A natureza da comissão de agência – deixa de ser a remuneração da Campanha e passa a ficar limitada ao caso de serem REAIS os preços apresentados para a produção e distribuição das referidas Campanhas -.
Uma coisa é afirmar que os Arguidos – que não estavam a negociar com o Estado – sabiam que tinham direito a 10.304.069$00 como comissão de agência pela realização das Campanhas, como refere a Pronúncia, e outra coisa, completamente diferente, é dizer que os arguidos sabiam que quem negociava com o Estado – a PA, Ld.ª - tinha direito a esse montante e apenas no caso de os custos de produção e distribuição serem reais, como refere o Acórdão recorrido.
A primeira afirmação, a da Pronúncia, é, além do mais, inóqua pois que se os arguidos pensavam que tinham direito a alguma coisa estavam completamente enganados porquanto nenhum deles era parte em qualquer contrato.
O Tribunal não pôs em causa a titularidade dos contratos – deu-os como provados no nº 233 a folhas 59 do Acórdão recorrido – e estes processaram-se entre a PA, Ld.ª e o Estado e entre a Planimagem e a PA, Ld.ª.
A segunda afirmação, ou seja a do Acórdão recorrido, não é inocente pois que, através dela se vem dar como provado que os arguidos sabiam aquilo a que a PA, Ld.ª tinha direito e os limites desse direito, ou seja, que a comissão de agência só existia se os custos de produção e distribuição fossem reais.
No primeiro caso indicia-se inocência, mas no segundo pretende dar-se como provado o dolo.
O Acórdão apresenta, assim, factos novos e, além do mais contraditórios com o facto, também dado como provado, que o Ministério da Saúde comprou a realização das três campanhas pelo preço fixo de 103.421.338$00 – nº
202 a folhas 119 do Acórdão recorrido -.
[...]
2.19 – De seguida dá o Acórdão recorrido como provado que o Recorrente subscreveu e apresentou a 16/07/87 a proposta de Campanha Publicitária para o Hospital de S. Francisco Xavier elaborada com base nos elementos fornecidos pelo J..., J. Correia e AC... e endereçou-a ao SUCH – nº
178 e 179 a folhas 51 -.
Nesta proposta o Recorrente estipulava, também, uma verba como remuneração dos serviços prestados pela PA, Ldª, equivalente a 15% 'do montante dos custos efectivos ou reais de produção e distribuição da Campanha' – nº 181 a folhas 51 do Acórdão recorrido -.
Mais uma vez foi alterada a Pronúncia, de 'custos da campanha' passou-se para 'custos de produção e distribuição'.
[...]
2.23 – Vem, ainda, dado como provado que:
'O Estado efectuou os pagamentos descritos, no total de
133.421.338$00, no convencimento de que o custo dos serviços descritos nas propostas respeitantes à produção e distribuição das campanhas era o custo real e que a PA, Ld.ª tinha intenção séria de prestar todos os serviços' – n.º 189 a folhas 52 do Acórdão recorrido -.
Contudo, da Pronúncia consta algo de bem diverso e que é o seguinte:
'O Estado efectuou esse pagamento no convencimento erróneo que era aquele o custo real dos serviços descritos na proposta e que os arguidos os tinham prestado ou que no mínimo, tinham a intenção séria de os prestar'.
As anomalias mais gritantes continuam a ser:
a) O Estado nunca negociou com os arguidos. O Estado negociou sempre com a PA, Ld.ª. Este é ponto que repetidamente é deturpado quer na pronúncia, quer no Acórdão recorrido.
b) Para a PA, Ld.ª o custo dos serviços que descreveu na sua proposta foi um custo real pois que o pagou integralmente à Planimagem, como aliás provado.
c) A alteração da entidade que o Estado pensava que estava obrigada a cumprir, mais não significa que procurar tornar verosímil aquilo que nos termos da Pronúncia era caricato.
Se, como a Pronúncia afirma, o Estado pagou no convencimento de que os arguidos Eng.º F..., AC..., J... e JC... – lhe iam prestar quaisquer serviços, então era porque o Estado sabia com quem tinha contratado.
Este erro é totalmente grotesco.
No Acórdão vem algo completamente diferente, ou seja, vem dizer-se que o Estado pagou no convencimento de que a entidade com quem contratara tinha a intenção de lhe prestar o serviço.
O Acórdão recorrido, alterando os factos constantes da Pronúncia, tornou possível o preenchimento do erro como elemento típico da burla e, de tal sorte, tornou possível a prática de um crime cujo cometimento, com os factos constantes da Pronúncia, era impossível o seu cometimento.
2.24 – Dá ainda o Acórdão como provado que o Recorrente bem como os Srs. AC..., JC... e J.... não tinham o propósito de, 'através da PA, Ld.ª e da Planimagem', efectuar a totalidade dos serviços descritivos na proposta e visavam antes criar a aparência de que as Campanhas iriam ser efectuadas com o fim de se apoderarem de avultadas quantias a que sabiam não ter direito – n.ºs
190 e 191, a folhas 52 e 53, do Acórdão recorrido -.
'Daí que nenhum daqueles arguidos tenha, alguma vez, solicitado à Cinequanon-Produção de Filmes e Auditivos, CRL, a produção e a realidade dos dois filmes institucionais de dois minutos cada, tendo sido esta empresa que procedeu à produção e realização de todos os filmes descritos nas propostas pelos arguidos para serem produzidos e realizados no âmbito das campanhas' – n.º
192 a folhas 53 do Acórdão recorrido -.
'Por outro lado, os arguidos F..., J..., JC... e AC... nunca tiveram intenção de dispender com a RTP-RTC a totalidade das verbas que discriminaram nas propostas e facturas correspondentes à inserção da totalidade dos filmes indicados nas propostas, já que nunca encomendaram o espaço necessário à inserção dos filmes institucionais' – n.º 202 a folhas 54 do Acórdão recorrido
-.
Como atrás se deixou demonstrado no n.º 2.6 precedente o 'propósito' que inicialmente é atribuído ao Recorrente no n.º 138 a folhas 45 do Acórdão é um propósito de lucro.
Aqui e agora – n.ºs 190 e 191 de folhas 53 do Acórdão recorrido, - vem um novo 'Propósito' : Não cumprir as propostas, dando a aparência de que as Campanhas iriam ser efectuadas de acordo com as mesmas Propostas.
O Acórdão não dá por provado nenhum facto que, sendo temporalmente anterior a este último 'propósito' lhe dê qualquer suporte material ou seja – pondo o nome aos bois – a Pronúncia não contém qualquer facto do qual, de longe ou de perto, seja possível sustentar ou vir a provar esta intenção de aparência enganosa.
É de recordar que até ora e aqui, a matéria de facto provada foi apenas a existência de um estudo técnico para a realização das Campanhas, de Propostas para a realização das Campanhas e do pagamento antecipado da realização das Campanhas.
O resto são 'propósitos' como aquele que encontra no n.º 191 que não têm qualquer apoio ou substracto de facto, pelo que, processualmente e penalmente falando, são meros juízos nados mortos.
[...]
De seguida e como facto inteiramente novo ao que consta da Pronúncia veio o Acórdão n.º 207, folhas 55 dar como provado que:
'Na mesma altura ainda aqueles arguidos fizeram sua a quantia de
116.018.555$40, incluindo IVA, que o Estado pagou à PA, Ld.ª na convicção de que era esse o custo da produção e distribuição das Campanhas Publicas quando tal custo foi apenas de 66.881.038$30, incluído IVA.'
Trata-se de uma conclusão elevada à categoria de facto totalmente novo não extraído da Pronúncia.
E esta Conclusão está em inteira contradição com o que anteriormente foi dado como provado ou seja que quem recebeu o dinheiro foi a Planimagem – n.º
205 a folhas 55 do Acórdão – que não era propriedade, nomeadamente, do aqui Recorrente.
A conclusão apresentada, ao arrepio de qualquer realidade factual tem subjacente a ideia de que naquela data – 04/08/87 – se terá verificado o termo do prazo contratualmente acordado para a realização das campanhas pois só assim faz sentido que seja nessa data que os arguidos fazem suas quantias que há muito tinham em seu poder.
A conclusão apontada não tem, como referido, qualquer apoio fáctico e pretende inculcar um termo para a realização das campanhas, termo posterior à suspensão unilateral – decretada pelo Estado via Ministério da Saúde para assim ofuscar o efeito legal legítimo daquela suspensão.
Mas a realidade factual provada nos Autos desmente aquela conclusão pois que:
a) Todas as campanhas, segundo o Acórdão recorrido foram pagas adiantadamente pela PA, Ld.ª à Planimagem – n.º 13 a folhas 127 do Acórdão -.
b) Por sua vez a PA, Ld.ª tinha feito os pagamentos à Planimagem na sequência de recebimento do Estado – n.º 186 e 187 a folhas 52 do Acórdão -.
c) De lado nenhum se pode retirar, portanto, que foi no dia 04/08/87 que os arguidos fizeram suas as verbas recebidas, sendo por isso, o termo que está subjacente às conclusões dos n.º 206 e 207, folhas 55 do Acórdão produto de algo de malévolo que não tem qualquer sustentáculo na matéria de facto provada.
Seguidamente, e a este propósito, o recorrente F... suscitou a questão de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 358º do Código de Processo Penal, nos termos seguintes:
[...] o Acórdão Recorrido veio alterar os factos constantes da Pronúncia, introduzindo factos novos de que, afinal, se vem servir para concluir que o artifício, exigido para verificação da burla, também consistiu em terem sido inseridos nas propostas para as campanhas publicitárias, factos falsos.
[...]
Os factos descritos [...] são 'factos novos' e como tal tinham que ter sido tratados em sede de audiência pois que, no mínimo, representam uma alteração relevante mas não substancial dos factos descritos na Pronúncia - art.ºs 1º, alínea f) e 358º do C. P. Penal -. Aliás, este artigo 358º do C. P. Penal é inconstitucional pois tem ínsita uma violação do princípio do contraditório, previsto no nº 5 do art.º 32º da Constituição, como o Acórdão recorrido disso nos dá um exemplo bem significativo – inconstitucionalidade esta que, desde já e para os devidos, se argui.
4. No tocante ao crime de prevaricação, previsto pelo artigo 11º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, considerou o recorrente que - apesar de, quer este artigo, quer o artigo 415º do Código Penal, se referirem simplesmente à exigência de um «processo» - tal crime não teria cabimento no espaço dos processos administrativos graciosos.
Para tanto, argumentou com o sentido tradicional do conceito de processo e com a evolução legislativa respeitante àquele tipo de crime, distinguindo a função administrativa da jurisdicional, e ainda com a necessidade de «aperfeiçoamento da formulação» da lei, face à entrada em vigor do Código de Procedimento Administrativo, o qual teria vindo alargar a utilização da
«expressão 'processo' ao arrepio do entendimento tradicional». E considerou, ainda, que se verificara um autêntico estado de necessidade da Administração, justificativo das opções tomadas, sacrificando-se o «interesse da legalidade de um concurso» em prol dos interesses de eficiência e oportunidade inerentes ao funcionamento de serviços públicos essenciais ou de «satisfação de necessidades essenciais da população».
Finalmente, quanto ao crime de participação económica em negócio, o recorrente entendeu que se não encontravam preenchidos os respectivos elementos típicos, verificando-se insuficiência da atinente matéria de facto dada como provada e existência de contradições na argumentação do acórdão recorrido.
b. Recurso de J...
5. Por sua vez, o recorrente J..., na sua motivação de recurso, suscitou uma questão de inconstitucionalidade relativamente à norma do artigo
313º do Código Penal, tal como interpretado no acórdão recorrido, ao
«indevidamente» equiparar os conceitos de fraude e astúcia, bem como ao considerar que o conceito jurídico-penal de enriquecimento ilegítimo, para efeitos do crime de burla, equivaleria ao conceito de enriquecimento sem causa, previsto na lei civil.
Nessa sede, e para além do mais, o recorrente entendeu o seguinte:
[...] Vistos os conceitos jurídico-civis, estamos em condições de compreender que na astúcia penalmente punível, enquanto elemento integrante da burla, terá de haver algo de mais específico e intenso do que um simples engendrar o engano alheio e mais ainda do que a utilização de sugestões ou artifícios ou embustes.
[...] Ora, o acórdão recorrido acolhe um conceito de astúcia que se não diferencia da reserva mental do Direito Civil, e nem com boa vontade chega a integrar a noção de dolo civil [...]
[...] ao interpretar do modo como o faz a tipicidade penal referente ao crime de burla, viola directamente a Constituição, no caso o artigo 29º, nº 1 da Lei Fundamental.
[...]
[...] Ora, no caso do crime de burla – a estar ele dado como adquirido -, o enriquecimento ilegítimo ali em causa tem a tutela cível decorrente dos artigos 71º e 72º do CPP.
[...] E, assim, este enriquecimento ilegítimo e penalmente punível haverá de ser algo mais e mais exasperantemente carecedor da censura penal do que a mera ausência de causa justificativa, essa sim típica do enriquecimento sem causa civilístico.
[...] Ao entender o contrário, fazendo entrar a repressão penal para punir o enriquecimento sem causa – por o considerar logo como ilegítimo – e ao proceder a uma extensão da censurabilidade penal a zonas onde vigora a mera ilicitude civil, o acórdão em causa lesiona o carácter fragmentário da tutela penal e interpreta de modo inconstitucional o artigo 313º do Código Penal, por violação do princípio da legalidade incriminatória, previsto nos artigos 1º do Código Penal e 29º, nº 1 da Constituição.
6. O mesmo recorrente J... suscitou ainda a questão da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 1º, nº 1, alínea f),
359º e 379º, alínea b), do Código de Processo Penal, pela forma seguinte:
[...] Cotejando a acusação do Mº Pº, verificamos que o processo enganatório que ali se imputava aos arguidos decorria da circunstância de estes haverem feito o Estado acreditar – como contrapartida das verbas que lhes pagou
– que tinham a intenção de prestar todos os serviços ou que já os haviam prestado.
[...] Tratava-se de uma flagrante contradição nos próprios termos, pois enunciava uma disjuntiva auto-exclusiva, [...]
[...] diante desse acórdão é o ora recorrente inteiramente surpreendido com um facto absolutamente novo que nele se considera, e com o qual nunca fora antes confrontado, nem na acusação nem na pronúncia.
[...] É que o acórdão em exame vem agora a considerar que, afinal, o crime de burla haveria sido cometido através de um modus operandi completamente diverso: já não através da dita intenção de não cumprir a totalidade da prestação, mas através do empolamento de preços, pelo seu artificial agravamento de custos e manipulação da base de incidência sobre a qual haveria de recair uma devida comissão de agência.
[...] Ou seja, factos que não eram criminosos em face da descrição da pronúncia – no caso o suposto empolamento de preços e custos – passaram a sê-lo em face do acórdão condenatório.
[...]
[...]verifica-se também violação das regras constitucionais previstas no artigo 32º, da Constituição, nomeadamente:
(1) no seu nº 1, por lesão às garantias fundamentais de defesa, pois o arguido ora recorrente foi assim surpreendido na condenação com factos não considerados na pronúncia;
(2) no seu nº 5, por lesão à estrutura acusatória do processo criminal, naquela parte em que o thema cognoscendi atque decidendum resultará do caso factual e jurídico configurado na pronúncia.
[...] Os artigos 1º, nº 1, alínea f), 359º, 379º, alínea b) do CPP, quando interpretados no sentido de o arguido poder ser condenado por crime fundamentado em factos absolutamente não constantes da pronúncia enfermam de inconstitucionalidade material, por violação dos citados nºs 1 e 5 do artigo 32º da Lei Fundamental.
7. Sob a designação de «Vícios na Fundamentação», o recorrente entendeu ainda que «o acórdão recorrido violou o disposto no nº 2 do artigo 374º CPP», ao efectuar «mera listagem» das provas que fundamentaram a convicção do tribunal, assim violando também o artigo 208º, nº 1, da Constituição.
E acrescentou:
[...] A indicação na sentença das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal é exigência imposta para a garantia da correcta e, por isso, adequada sindicabilidade dessa mesma sentença: só ao ponderar as provas tidas em conta poderá o tribunal de recurso constatar se o tribunal recorrido tem ou não fundamento para ter concluído do modo como veio a concluir ou se não ocorreu erro notório na apreciação da prova; está pois em causa a garantia ao acusado de um efectivo recurso, pelo qual o Tribunal ad quem tenha meios para desempenhar a sua missão.
[...] Ora essa exigência não se cumpre com meros catálogos de listas de testemunhas, relativamente às quais o Tribunal recorrido se limita a considerar – e nem sempre o fez sequer – qual a ligação que tais testemunhas tinham quanto aos factos em causa.
[...]
[...] Ao agir do modo como o fez, o tribunal recorrido impediu na prática o direito a um recurso efectivo nomeadamente nos termos em que o sistema de revista alargada o possibilita ao STJ, porquanto se tornou impraticável fazer sindicar com efectividade qualquer erro notório na apreciação da prova e, em parte, qualquer contradição na fundamentação, o que implica violação do disposto no artigo 20º, nº 1 da Constituição, na parte em que esta prevê o direito de acesso a tribunais, no caso para garantia do direito a um recurso judicial.
8. Sintetizando, o recorrente J... formulou assim as respectivas conclusões:
(8) ao ter elencado em mero rol de testemunhas as que terão servido de fundamento à convicção do tribunal – nem distinguindo, de entre elas, a que casos se referem – o aresto violou o artigo 97º, nº 4 do CPP e assim o artigo
208º da Constituição, por omissão do dever de fundamentar, de modo a possibilitar a sindicabilidade pelo tribunal ad quem do modo como ele tribunal a quo concluiu como o fez;
[...]
(12) o Acórdão recorrido ao imputar ao recorrente actividade não descrita na pronúncia – o suposto engrandecimento de preços e custos – efectua proibida alteração substancial de factos violando assim o disposto nos artigos
1º, nº 1 al. f), 359º e 379º do CPP e também o disposto no artigo 32º nº 1 e 5 da Lei Fundamental;
[...]
(17) erro de direito também com violação do artigo 313º ao considerar-se que no negócio jurídico celebrado com reserva mental de não cumprimento integral está presente ipso factu processo enganatório astucioso, donde burla o que implica também violação do princípio da legalidade incriminatória por extensão da tutela penal, com violação do artigo 1º do Código Penal e do artigo 29º da CRP;
c. Recurso de JC...
9. Por sua vez, o recorrente JC... concluiu, na sua motivação de recurso, pela inconstitucionalidade dos artigos 433º e 410º do Código de Processo Penal, por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição da República.
d. Posição do Ministério Público
10. O Ministério Público, na sua resposta às motivações de recurso dos recorrentes F... e J..., considerou, além do mais, que se não verificava qualquer violação das normas constitucionais apontadas pelos recorrentes, nomeadamente dos artigos 20º, nº 1 e 32º, nºs 1 e 5 da Constituição. Entendeu, com efeito, que se não verificara qualquer alteração dos factos descritos na acusação e na pronúncia, porquanto:
Todos os factos especificados na sentença resultam das peças processuais a cujo conteúdo o colectivo devia atender na produção da prova.
É, por isso, completamente irrelevante que o Tribunal tenha, num mesmo artigo, dado como provados ou como não provados, factos que na pronúncia ou nas contestações estavam discriminados em artigos distintos, já que, com isso, não alterou o sentido das referidas peças.
Salvaguardada esta condição, é igualmente irrelevante que o Tribunal
„a quo', dentro de uma margem de liberdade que se lhe não pode negar, não tenha decalcado a redacção dos factos resultante da pronúncia.
Considerou ainda que se utilizara na pronúncia e na acusação um
«método de simplificação, consistente em dar por integralmente reproduzidas as propostas e facturas que os arguidos apresentaram ao Ministério da Saúde» - documentos esses, cujo teor dessa forma integrava aquelas pronúncia e acusação, ao ser assim reproduzido, «através de menção expressa».
E concluiu:
Os arguidos tiveram conhecimento do respectivo conteúdo a partir do momento em que foram notificados da acusação, analisaram-no nos requerimentos de abertura da instrução e nas contestações, foram com eles confrontados e sobre eles inquiridos em audiência.
11. No tocante à determinação do conceito de burla – artigo 313º do Código Penal -, e consequente incriminação dos recorrentes pela sua prática, considerou o Ministério Público que eram «no essencial, equivalentes, as expressões astúcia e artifício fraudulento», o que fundamentou pela forma seguinte:
O artifício fraudulento integra-se sempre na astúcia, embora exija um mais, por relação a esta.
Daí que se possa dizer, utilizando uma citação feita pelo recorrente J..., que '...enganar com embustes, com mentira, com artimanhas', é também usar de astúcia.
Sendo certo que estes elementos podem estar presentes no conceito de astúcia penalmente relevante, menos certo não é que, nem o texto do Código Penal nem a elaboração doutrinária e jurisprudencial que sobre ele vem sendo feita, permitem a restrição pretendida pelo recorrente.
[...]
O dolo específico da burla traduz-se no conhecimento e vontade de induzir num erro que seja determinante da prática de actos de disposição patrimoniais causadores de um prejuízo para o lesado e de vantagens indevidas para o agente.
E a respectiva distinção do dolo „in contrahendo', civil, porque ténues são os limites, há-de fazer-se casuisticamente com recurso ao sistema de garantia assegurado pela tipicidade.
[...]
O conceito de determinação não implica, nem pressupõe, que a vítima fique, por força da acção do agente, impedida de agir de outro modo, mas apenas que haja uma sugestão tão forte que a induza à prática do acto de disposição patrimonial.
[...]
O enriquecimento procurado e obtido pelos arguidos configura o enriquecimento ilegítimo da previsão da norma do artigo 313º do Código Penal.
É um enriquecimento obtido à custa do empobrecimento de outrem, sem qualquer causa justificativa, mas, mais do que isso, é um enriquecimento procurado pelos processos que a lei penal descreve.
12. Por fim, relativamente à motivação do recurso do recorrente JC..., entendeu o Ministério Público que também se não verificava qualquer inconstitucionalidade nos artigos 410º e 433º do CPP.
e. Pareceres
13. O recorrente J... juntou então aos autos um parecer elaborado pelo Professor José Faria e Costa, para fundamentação da sua motivação de recurso, e no qual se concluía pela não verificação do preenchimento do tipo legal relativo ao crime de burla imputado ao recorrente (outro parecer, da autoria do Prof. Jorge de Figueiredo Dias, já havia igualmente sido junto aos autos pelo mesmo recorrente, antes da pronúncia, sendo certo que também aí se concluía pela inexistência do referido crime de burla).
O recorrente J... juntou aos autos ainda outro parecer, este subscrito pela Professora Maria Fernanda Palma, a qual se pronunciou no sentido de que a qualificação jurídica efectuada pelo acórdão recorrido era incorrecta, uma vez que inexistia qualquer actividade astuciosa do arguido e que o acórdão procedia a uma «subjectivação» do conceito de astúcia. Nesse mesmo parecer entendeu-se, ainda, que seria, no mínimo, duvidoso que a burla por omissão atingisse o merecimento penal e que o acórdão errara também ao identificar a mera intenção de não cumprir o contrato (reserva mental) com a astúcia, para efeitos de preenchimento do tipo penal, assim qualificando o crime como burla activa.
14. O recorrente F... requereu, por sua vez, a junção aos autos de um parecer elaborado pelo Mestre Miguel Pedrosa Machado. Este entendeu aí que, sendo o crime de burla um crime de forma vinculada, dependia do «cúmulo de ambos os desvalores, acção e evento», ao passo que o crime praticado pelo recorrente consistira, no entender do acórdão recorrido, num aproveitamento, numa omissão. Concluiu, assim, e além do mais, que os factos imputados ao arguido não preenchiam o tipo legal de crime de burla agravada, «quer por falta de prova do dolo específico, quer por falta de prova da causalidade», e que os factos dados como provados apresentavam uma «estrutura subjectiva do hipotético cometimento da burla agravada» dependente da prova da co-autoria; assim, «infirmada esta, não poderá, logo por isso, subsistir tal condenação em relação ao arguido».
Salientou ainda como erro do acórdão recorrido a «dupla valoração da função política» do recorrente, como elemento do tipo e como circunstância agravante, nos termos seguintes:
Como se vê a fls. 312 do acórdão, é um erro cometido quer relativamente à «participação económica em negócio» do art. 23º, nº 1, da Lei nº
34/87, quer relativamente à «prevaricação» do art. 11º dessa Lei.
E no entanto a lei é clara: nos termos do proémio do nº 2 do art. 72º do Código Penal (que neste ponto vem formalmente alargar a solução já existente no nosso velho Direito, com base no nº 1 do art. 40º do Código de 1886), o tribunal só atenderá às circunstâncias que não façam, logo, parte do crime, como
é o que claramente sucede com o exercício de funções políticas relativamente à própria possibilidade de utilização da Lei nº 34/87; dizer, depois, que F... é gravemente punido na sequência do «preenchimento» desses «tipos» devido ao
«elevado grau de violação dos deveres que, como Secretário de Estado, tinha» é, evidentemente, violar o princípio da proibição da dupla valoração ou do non bis in idem.
Considerou igualmente que, sendo o exercício do cargo político condição de aplicação dessa lei penal especial e elemento da respectiva incriminação, o desempenho da função de Secretário de Estado só podia ter significado prático, em termos de valoração jurídica, para efeitos de atenuação da responsabilidade. É que, atentando a esse respeito nos artigos 186º, 187º,
194º e 199º da Constituição, concluiu que, perante a menor extensão da responsabilidade de um Secretário de Estado, por confronto com a dos outros tipos de membros do Governo, deveria «ser tido como ilegítimo invocar tal condição, e já no contexto de uma lei especial, como índice de agravação de responsabilidade».
Relativamente à condenação pela prática do crime de participação económica em negócio, nos termos do artigo 23º, nº 1, da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, concluiu, além do mais, pela «identidade entre os elementos típicos constantes do art.º 23º, nº 1, da Lei nº 34/87 e do art.º 427º, nº 1, do Código Penal», assim como pela inexistência de dolo específico.
Por fim, relativamente ao crime de prevaricação, este previsto no artigo 11º da mesma Lei nº 34/87, e procedendo à análise dos elementos típicos dessa incriminação, afirmou, acerca da noção de «processo» utilizada por aquela norma:
Quando o Código Penal entrou em vigor, a 1 de Janeiro de 1983, o conceito legal de processo era, em regra, vinculado a uma ideia de apreciação imparcial de litígio; isso mesmo se mantinha quando a Lei nº 34/87 entrou em vigor. Só em 16 de Maio de 1992, com a entrada em vigor do Código de Procedimento Administrativo (aprovado pelo Decreto-Lei nº 442/91, de 15 de Novembro), se vem alargar o uso de tal conceito (como conceito legal, entenda-se).
Mas utilizar um tal argumento posterior à entrada em vigor de leis incriminadoras era propor, para elas, a aplicação retroactiva de leis desfavoráveis aos arguidos, o que brigaria totalmente com os princípios da sucessão de leis penais inscritos no art. 29º da Constituição e no art. 2º do Código Penal.
Seguidamente, concluiu também que não se verificava a pretendida tipicidade, por se dever aplicar o nº 2 do artigo 3º do Código de Procedimento Administrativo, atinente ao estado de necessidade em matéria de actos administrativos.
E formulou ainda as seguintes conclusões:
O estudo realizado permite concluir, relativamente ao arguido F...:
[...]
c) No acórdão recorrido, ao considerar como circunstância agravante o exercício das funções políticas que é condição típica da incriminação nos termos da citada Lei nº 34/87, violou-se o princípio da dupla valoração ou do non bis in idem, cuja cláusula geral substantiva se encontra no proémio do nº 2 do art.
72º do Código Penal.
d) Não ter sido considerada a natureza própria das competências exercidas por um Secretário de Estado como circunstância atenuante da responsabilidade a que se refere a Lei nº 34/87 viola o regime constitucional que determina a limitação dessas competências.
[...]
o) Considerar que o conceito de «processo» constante da tipificação da prevaricação viu o seu âmbito alargado pelo Código de Procedimento Administrativo (aprovado pelo Decreto-Lei nº 442/91, de 15 de Novembro) – que seria sempre o único meio de poder incluir os procedimentos graciosos nessa previsão típica – e aplicar, em conformidade, tal conceito mais lato ao caso dos autos, constituiria aplicação retroactiva de lei desfavorável ao arguido.
f. Rejeição do recurso de JC... sobre despachos interlocutórios; consequente interposição de recurso para o Tribunal Constitucional
15. Já no Supremo Tribunal de Justiça, o Ministério Público elaborou parecer, no qual, além do mais, se pronunciou no sentido da rejeição dos recursos dos despachos interlocutórios anteriormente interpostos e que haviam subido com os da decisão final, «por ser manifesta a sua improcedência – art.
420º, nº 1 do CPP». E, no que ao já referido recurso interposto de despacho interlocutório pelo recorrente JC... se referia, entendeu ainda que o mesmo padecia de um «erro de base» que inquinava todo o seu raciocínio: o considerar que os documentos em causa, vindos do DIAP, não integravam já anteriormente o processo, (opondo-se o recorrente, por tal motivo, à sua junção aos autos), quando o que se verificaria seria exactamente o contrário.
Em resposta a esse parecer, o recorrente JC... suscitou a inconstitucionalidade daquele entendimento sustentado pelo Ministério Público, por violação dos direitos e garantias de defesa previstos no artigo 32º, nºs 1 e
5 da Constituição, porquanto, «para que um documento integre os autos, não basta que tenha sido ordenada a sua apreensão; é preciso que o documento seja mesmo materialmente junto [...] não podendo, como foi o caso, ficar esquecido num qualquer departamento policial ou do Mº Pº, enquanto o processo segue para o Tribunal de Instrução [...] para então reaparecer [...] sem que sequer tenha sido concedido prazo para o seu exame».
16. Por acórdão de 9 de Março de 1995, o STJ veio a rejeitar este recurso de despacho interlocutório, por manifestamente improcedente. Dessa decisão o recorrente JC... interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, «ao abrigo do art.º 70º nº 1 al. b) da Lei 28/82 [...] para apreciação da inconstitucionalidade, na interpretação acolhida, dos artºs 164º nº 2, 165º nº 1 e 2, 34º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal».
O relator admitiu este recurso para subir com o que viesse a ser interposto da decisão final, nos temos do disposto no artigo 78º, nº 1, da LTC e no artigo 407º, nº 3, do CPP.
g. Alegações
17. Nas suas alegações referentes ao recurso da decisão condenatória, o recorrente JC... sustentou a inconstitucionalidade dos artigos
410º, nºs 2 e 3, e 433º do CPP « interpretados em termos de permitir a apreciação do recurso sem a sentença conter uma completa fundamentação factual», por violação do princípio do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, consagrado no artigo 32º, nº 1, da Constituição.
O Ministério Público pronunciou-se, quanto a este recurso, no sentido da sua rejeição, e da não verificação da inconstitucionalidade suscitada.
18. Por sua vez, o recorrente J..., nas suas alegações, elaborou as seguintes conclusões:
(6) interpretar o artigo 313º citado do Código Penal pela forma errónea como o fez a decisão recorrida implica tornar tal norma materialmente inconstitucional, por directa violação do artigo 29º, nº 1 da Constituição, pois que se levou assim a ilicitude penal para zonas onde ela não deveria intervir por tanto estar vedado em função do princípio da legalidade incriminatória, dado a isso obstarem os requisitos típicos essenciais que, devidamente interpretados, mais não visam do que garantir a consecução do princípio da subsidariedade do Direito Penal, decorrente do seu carácter fragmentário;
[...]
(10) verifica-se vício na fundamentação por se não individualizarem nem explicitarem as razões pelas quais certos meios de prova permitiram as conclusões probatórias dadas como assentes, antes se interpretaram os artigos
374º, nº 2 e 97º, nº 4 do Código de Processo Penal em termos que tornam tais preceitos materialmente inconstitucionais, por violação dos artigos 20º e 208º, nº 1 da Constituição e do artigo 13º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem;
[...]
(14) e a final verificou-se aplicação de normas tornadas materialmente inconstitucionais pela interpretação efectivada, no caso os artigos 1º, nº 1, alínea f), 359º e 379º todas do Código de Processo Penal, por violação dos nºs 1 e 5 do artigo 32º da Constituição, o que sucedeu quando – sem que ao arguido fosse dada a hipótese de se defender – na sentença se imputou ao arguido um crime de burla cometido por empolamento enganatório de preços, quando substancialmente diversos eram os factos da pronúncia em relação ao modo de comissão de tal ilícito;
Na sua resposta, o Ministério Público concluiu pela improcedência do recurso em causa e pela não verificação das inconstitucionalidades nele suscitadas.
19. O recorrente F... não juntou alegações escritas.
C. O acórdão do STJ
20. Por acórdão de 29 de Fevereiro de 1996, o Supremo Tribunal de Justiça julgou parcialmente procedentes os recursos dos recorrentes F... e J..., relativamente às penas aplicadas.
Assim, fixou a pena aplicada a F... em cinco anos de prisão e oitenta dias de multa à razão de 7.500$00 por dia. E a pena aplicada a J..., em três anos de prisão, suspensa na respectiva execução pelo período de quatro anos.
No tocante ao recorrente F..., considerou ainda o aresto improcedente a sua condenação pela prática de um crime de participação económica em negócio, previsto pelo nº 1 do artigo 23º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, dele absolvendo o recorrente; mas condenou-o, todavia, pela prática do crime previsto no nº 2 do mesmo artigo (vantagem patrimonial em negócio).
No resto, o STJ julgou improcedentes os recursos.
a. Julgamento das questões de inconstitucionalidade
21. No tocante às questões de inconstitucionalidade suscitadas pelo recorrente J..., entendeu esse acórdão, quanto à norma do artigo 374º do CPP o seguinte:
[...] a lei não exige uma indicação dos meios de prova em relação a cada um dos factos que o tribunal tenha considerado provados, nem mesmo que o tribunal indique e fundamente as razões pelas quais considerou ou não considerou como verdadeiros determinados depoimentos ou declarações (v. ac. deste Supremo de 14/10/93, rec. nº 45257).
[...]
Só a ausência total da referência às provas que constituíram a fonte da convicção do tribunal integra violação do artº 374º, nº 2 e a consequente nulidade (artº 379º, a)), considerando-se satisfeita a exigência daquele artigo pela simples indicação dos meios de prova (v. acs. deste S.T.J. de 15/7/89, rec. nº 40094, de 6/3/91, rec. nº 40874, de 16/3/ 94, rec. nº 45759 e de 15/5/94, rec. nº 46279).
Tal interpretação do princípio da fundamentação das decisões dos tribunais (com consagração no artº 208º, nº 1 da CRP) respeita não só a lei ordinária como a lei constitucional, defendendo o Tribunal Constitucional que este princípio tem um alcance eminentemente programático, ficando devolvido ao legislador o seu preenchimento, isto é, a delimitação do seu âmbito e extensão
(v. ac. deste STJ no rec. nº 48101).
22. No que se refere ao artigo 313º, nº 1, do Código Penal, entendeu-se neste aresto:
Se (primeiro momento), com a intenção de enriquecimento ilegítimo (e
é ilegítimo aquele que não corresponde a qualquer direito), o agente convence o sujeito passivo de uma falsa representação da realidade (e o erro ou engano nisso consistem), mediante manobras (e estas podem ser as mais variadas, desde a simples mentira que as circunstâncias envolventes são de molde a tornar credível perante o homem médio até aos mais elaborados artifícios) adrede realizados, e com isso consegue (segundo momento) que esse sujeito pratique actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízos patrimoniais, está perfeito o crime de burla, sendo que o enriquecimento ilegítimo é em regra concomitante (como duas faces da mesma moeda) com o prejuízo patrimonial causado pelo acto e que deve existir numa relação de causa-efeito entre o primeiro e o segundo momentos.
[...]
Pouco importa que o acórdão tenha assimilado a actuação enganosa dos arguidos ao artifício fraudulento do artº 451º do CP/1886 (v. fls. 17204 do ac.), se se verificar – como se viu que se verifica – que toda essa actuação demonstra um complexo estratagema destinado a enganar o sujeito passivo, iludindo a sua boa fé e levando-o a uma falsa representação da realidade de que resultou (e aqui está a chamada relação causa-efeito) agir ele contra o seu património. Nessa actuação está patente o urdimento com exteriorização enganatória, significante da astúcia.
E acrescentou-se ainda que o que importava definir não era se o colectivo tratara correctamente o problema da causalidade, mas antes averiguar se se verificara uma relação de causa-efeito entre a conduta do agente e a do sujeito passivo do crime, concluindo que tal resposta era positiva. Efectuando
«um juízo de prognose póstuma do caso dos autos», deste retirou a conclusão de que «a obtenção de um resultado que para o comum dos cidadãos se tornaria difícil se tornou fácil para os arguidos devido ao entrelaçar das circunstâncias já postas em relevo»: assim, a confiança que o arguido F... fora adquirindo junto da Ministra da Saúde, o conhecimento profundo por ele adquirido acerca do funcionamento desse Ministério, a «quase intocabilidade» das propostas por ele apresentadas. Prosseguiu o aresto:
Tudo a tornar idóneo, naquelas especiais circunstâncias, o meio de atingir o resultado final e a estabelecer um nexo de causalidade adequada entre a conduta dos agentes e a da vítima.
[...]
É óbvio que não coincide o conceito de enriquecimento sem causa dos artigos 473º e ss. do Código Civil com o de enriquecimento ilegítimo de que fala o artigo 313º do Código Penal. A diferença decorre desde logo do artigo 498º, nº
4 do Cód. Civil.
Mas o que o acórdão diz (fls. 17208) é que os arguidos «lograram tal propósito (de obterem para eles valores a que bem sabiam não terem direito), vindo a obter um enriquecimento patrimonial ilegítimo já que para aquele valor, de cerca de cinquenta e sete mil contos, não tinham causa legal ou contratual justificativa».
Ilegítimo é o enriquecimento que não tem apoio em qualquer direito ou interesse protegido por lei ou não é autorizado ou permitido por um preceito legal.
E o acórdão não diz coisa diferente disto.
O mesmo se diga quanto à chamada «reserva mental».
Esta existe (art.º 244º C.Civ.) sempre que é emitida uma declaração contrária à vontade real com o intuito de enganar o declaratário.
Também aqui é evidente que um determinado caso de reserva mental pode ter relevância simultaneamente civil e criminal; basta que o intuito de enganar assuma dignidade penal, como acontece em muitos casos regulados no Código Penal e designadamente no do art.º 313º.
23. Por fim, relativamente às questões de inconstitucionalidade suscitadas no recurso de J..., afirmou-se no aresto recorrido, com referência ao artigo 359º do CPP:
Não existe nenhum facto novo, no sentido que implique alteração substancial (artºs 1º, f) e 359º CPP), que o Colectivo tenha dado como provado.
Como é sabido, é alteração substancial a que tem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (artº 1º, f)).
Ora, o Colectivo, com o fim evidente de pormenorizar tanto quanto possível a imagem da realidade colhida na audiência, introduziu um ou outro facto instrumental que em nada interfere na incriminação e que não se afasta relevantemente do conteúdo da acusação e da pronúncia, em termos de surpreender os arguidos e de lhes diminuir as suas garantias de defesa.
Isto tanto mais que quer a acusação quer a pronúncia tinham como apoio constante as propostas e facturas apresentadas ao Ministério da Saúde e bem assim os relatórios periciais que sobre elas incidiram – tudo documentos conhecidos pela defesa e que o tribunal tinha o dever de examinar e ponderar.
Não se vê violação dos invocados artigos nem do artº 32º, nºs 1 e 5 da CRP.
24. Quanto à inconstitucionalidade dos artigos 410º e 433º do CPP, invocada pelo recorrente JC..., o STJ limitou-se a proceder à sua rejeição, por remissão para a sua anterior jurisprudência constante e uniforme, confortada por igualmente constante jurisprudência do Tribunal Constitucional.
25. Relativamente ao recurso do recorrente F..., no tocante à questão de inconstitucionalidade do artigo 358º do CPP, entendeu o aresto do STJ:
Finalmente, quando o recorrente imputa ao acórdão recorrido o vício de se ter servido de „factos novos' e de ter violado o disposto no art.º 358º do Cód. Proc. Penal (por lapso, disse nas conclusões art.º 368º), esquece que o próprio acórdão respondeu – por forma suficiente e que não suscita censura – não só a esta objecção como aqueloutra de não ter havido benefício concreto para a Edibloco (v. fls. 17227 e ss).
É certo que, quanto aos ditos factos, o acórdão responde à eventual objecção de violação do art.º 359º CPP, quando agora estamos perante o artigo
358º.
Mas a resposta dada pelo Colectivo permanece válida: não houve alteração dos factos, substancial ou não substancial.
Tratou-se apenas de explicitar mais claramente os factos da pronúncia, com recurso a factos constantes de documentos (v.g. relatórios periciais) que a suportam e que dela não extravasam, não podendo o arguido deixar de organizar a sua defesa tendo em conta tais documentos instrumentais, sem que o seu conteúdo – analisado em julgamento – possa constituir surpresa para ele.
Absurdo seria, de resto, que se exigisse que a pronúncia descrevesse o conteúdo de todos os documentos em que se apoia, tornando-a uma peça inextricável.
E de nada serviria o artigo 368º, nº 2 do Cód. P. Penal, quando permite que o tribunal dê como provados factos resultantes da discussão da causa.
E conclui assim este ponto:
E, no que toca à inconstitucionalidade do falado artigo 358º, por violar o princípio do contraditório, a alegação não resiste à primeira análise daquele normativo, que expressamente manda ao juiz comunicar ao arguido qualquer alteração não substancial dos factos, concedendo-lhe tempo para preparar a defesa em conformidade com essa alteração; o que tudo respeita o art.º 32º, nº 5 da C.R.P..
Simplesmente, no caso não houve alteração não substancial que obrigasse o tribunal a cumprir aquela disposição legal.
26. Por fim, o acórdão considerou ainda que o conceito de «processo» utilizado pelo artigo 11º da Lei nº 34/87 incluía necessariamente o processo gracioso.
b. Reclamação por nulidades e pedido de aclaração por parte do recorrente F...
27. Desta decisão veio o recorrente F... reclamar, por omissão de pronúncia e por obscuridade.
Assim, quanto àquele primeiro fundamento, indicou quatro pontos ou questões não respondidos, no seu entender, pelo acórdão reclamado.
Em primeiro lugar, a questão «do princípio da intervenção mínima ou do carácter subsidiário ou de ultima et extrema ratio da intervenção própria do Direito Penal»; segundo o reclamante, «podendo e devendo uma determinada questão ser resolvida, sem prejuízo de terceiros, no plano do Direito Civil, não se justifica a intromissão do Direito Penal», como a que se verificou no caso, correspondendo a uma «relevância excessiva» deste plano do Direito.
A segunda questão não respondida pelo aresto, segundo o reclamante, foi a da «relevância da burla por omissão», tendo-se remetido para o artigo 10º do Código Penal sem, todavia, atender à ressalva expressa que consta da parte final do seu nº 1, e que «implica a insubsistência da equiparação nos chamados crimes modais ou de forma vinculada».
Em terceiro lugar, refere o reclamante que o STJ, ao não discutir as incidências jurídico-administrativas do acto por ele praticado (fls. 210 vº do acórdão), «não cumpriu ainda a omissão que lhe é imposta pelo princípio da suficiência da acção penal», enunciado no artigo 7º do CPP, o que constituiria lesão da «exigência constitucional da intervenção subsidiária da tutela penal».
A última questão objecto de reclamação em sede de omissão de pronúncia, foi a da falta de resposta ao problema de sucessão de leis no tempo, decorrente da entrada em vigor - após as alegações, mas ainda antes da prolação do acórdão sob reclamação - da nova versão do Código Penal, e a que se referiu o voto de vencido que acompanha o acórdão. Apoiando-se nessa declaração de voto, considerou o reclamante que a decisão em causa não tomara em consideração o nº 1 do artigo 2º do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, que determinou a revogação das disposições legais avulsas que prevêem ou punem factos incriminados pelo Código Penal (aí se incluindo o artigo 11º da Lei nº 34/87, ou seja, a previsão do crime de prevaricação pelo qual fora condenado), assim se violando o artigo
29º da Constituição.
28. Por seu turno, o pedido de aclaração recaiu sobre três pontos, sendo um deles o seguinte:
[...]
E finalmente a fls. 213, linhas 24 e 25, remete-se para o art. 266º, nº 2, da Constituição, no momento em que o Acórdão se ocupa da busca do conceito de «processo». Pergunta-se, por isso: integra efectivamente a decisão do Supremo Tribunal de Justiça a defesa de que esse conceito se estriba com base nesse preceito constitucional?
29. Por acórdão de 11 de Julho de 1996, o STJ desatendeu a reclamação por nulidade e o pedido de aclaração, por entender não haver qualquer omissão de pronúncia ou obscuridade na decisão reclamada.
D. Os recursos para o Tribunal Constitucional
a. O 1º recurso para o Tribunal Constitucional de F...
30. O recorrente F..., «sem prejuízo das reclamações» apresentadas, interpôs logo recurso do acórdão de 29 de Fevereiro de 1996 para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do mesmo artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC, para apreciação das seguintes questões de inconstitucionalidade:
1 - Tal como foi interpretado na 1ª instância e como voltou a ser no douto Acórdão referido, o art.º 358º do Código de Processo Penal viola o princípio do contraditório, que é uma das garantias de defesa a que se refere o art.º 32º da Constituição (cf. a Motivação de recurso do arguido, págs. 114 e
125).
2 – A utilização do exercício de funções políticas quer como elemento típico (para o efeito de considerar aplicável a Lei nº 34/87, de 16 de Julho), quer como circunstância agravante da responsabilidade do arguido, nos termos em que a tal utilização se assiste tanto na decisão da 1ª instância como no douto Acórdão referido, viola o princípio do non bis in idem, constitucionalmente consagrado através do nº 5 do art.º 29º da Lei Fundamental (cf. o Parecer junto ao recurso pelo arguido, págs. 13 e 77).
3 – A graduação da responsabilidade política teria de atender – e não atendeu nem na 1ª instância nem no douto Acórdão referido – aos art.ºs 187º,
194º e 199º da Constituição (cf. o Parecer acabado de citar, págs. 14, 15 e 78).
4 – Não se atendeu igualmente à incidência dos princípios fundamentais vigentes em matéria de sucessão de leis penais ou de «aplicação da lei penal no tempo» - que são, antes de mais, princípios constitucionais (art.º
29º, n.ºs 1 e 4 da Lei Fundamental) – sobre a questão que suscitou em torno da aplicabilidade da mencionada Lei nº 34/87 (cf. o Parecer cit., págs. 15 e 16).
5 – Desatendimento esse que se repetiu no que concerne à relação entre esses princípios fundamentais da sucessão de leis e a questão posta sobre o conceito de «processo» para efeitos de preenchimento do tipo de crime de
«prevaricação», na pág. 75 do Parecer junto aos autos pelo arguido.
6 – E foi ainda suscitada uma outra questão de inconstitucionalidade, desatendida no Acórdão referido: a aplicação ao caso, para efeitos de precisão de conceitos, do Código de Procedimento, igualmente como problema de retroactividade in melius (Parecer cit., pág. 80, sob q)).
b. O 2º recurso para o Tribunal Constitucional de F...
31. Igualmente inconformado com a decisão tomada no acórdão de 11 de Julho de 1996, o recorrente F... interpôs recurso do mesmo aresto para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC, que fundamentou nos seguintes termos:
(a) a relevância do princípio da ultima et extrema ratio como princípio definidor da intervenção própria do Direito Penal [...] trata-se de um princípio de que são projecções as exigências legais-ordinárias da suficiência da acção penal e da primazia da jurisdição penal, e que tem como fundamento a subsidariedade criminal, assente nos princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade:
(b) o problema da burla por omissão [...] não atender à delimitação legal da equiparação entre acção e omissão é, evidentemente, não interpretar conformemente com a Constituição o art. 10º do Código Penal, por isso que tal delimitação é delimitação de tipicidade, directamente assente no princípio constitucional da legalidade;
[...]
4. Não ter tratado – isto é: ter omitido o tratamento – é, de qualquer forma, uma maneira juridicamente relevante de abordar questões como as que ficam assinaladas sob (a) e (b). A abordagem negativa aí em causa é que se transforma, nos seus resultados relativamente ao caso dos autos, em interpretações normativas desconformes com a Constituição.
[...]
[...] outra coisa é a necessidade legal-constitucional de fazer depender a relação entre o art.º 369º do Código Penal e a Lei nº 34/87, de 16 de Julho, de uma norma – o referido art.º 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março -, que tem, também ela, de ser interpretada conformemente com a Constituição.
7. Ao não ter sequer considerado o referido artigo do Decreto-Lei nº
48/95, de 15 de Março, o Supremo Tribunal de Justiça não atendeu a princípios e preceitos constitucionais estritos, designadamente os traduzidos nos nºs 1 e 4 do art. 29º da Lei Fundamental.
8. E, enfim, também implica desconformidade com a Constituição a indistinção entre prova indirecta e inferência ou presunção: o facto de a interpretação desta última depender estritamente de um raciocínio legalmente dominado pelo princípio do in dubio pro reo fá-la sediar-se na fundamentação constitucional da presunção de inocência do arguido.
c. O recurso para o Tribunal Constitucional de J...
32. O recorrente J... interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do STJ de 29 de Fevereiro, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC, para apreciação da constitucionalidade de duas normas: o da norma constante do artigo 313º do Código Penal de 1982 «e por isso também do artigo 217º do Código Penal de 1995, que acolheu a mesma descrição típica», na interpretação dada pelo acórdão recorrido, ao considerar «que a mera promessa de uma prestação, sem a intenção de a cumprir, integra o requisito típico de astúcia criminalmente relevante para a realização da burla», por violação do princípio da legalidade incriminatória, expresso no artigo 29º, nº
1, da Constituição; o da norma resultante dos artigos 1º, nº 1, alínea f), 359º e 379º do CPP, interpretados «no sentido de na sentença condenatória poder ser de surpresa imputada ao arguido um modo de comissão do crime de burla, que não é aquele que expressamente constava da pronúncia face à qual ele ofereceu a sua defesa», por violação do artigo 32º, nº 5, da Lei Fundamental.
d. Subida dos recursos; deserção do recurso de JC...
33. Admitidos, por despacho de 20 de Outubro de 1996, os recursos interpostos pelos arguidos J... e F..., ordenou-se a subida com estes do recurso já anteriormente admitido, e interposto pelo recorrente JC..., do acórdão do STJ que julgara improcedente o recurso da decisão interlocutória que ordenara a manutenção nos autos dos documentos vindos do DIAP.
Já neste Tribunal, apenas os recorrentes J... e F... juntaram alegações, pelo que veio a ser julgado deserto o recurso interposto pelo recorrente JC....
e. Alegações de F...
34. O recorrente F... enunciou, nas suas alegações, referentes aos dois recursos por si interpostos, um total de dez questões de inconstitucionalidade.
Assim, no tocante ao recurso interposto do Acórdão de 29 de Fevereiro de 1996, formulou seis questões de constitucionalidade, pela forma seguinte:
A primeira norma que, no entendimento do recorrente, foi interpretada nos autos desconformemente com a Constituição foi o art. 358º do Código de Processo Penal (cfr., nos autos, as págs. 114 e 125 da Motivação do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça). A amplitude da discricionariedade aí atribuída ao julgador penal não pode ser tal que obnubile a necessária incidência do princípio do contraditório, constitucionalmente consagrado no nº 5 do art. 32º da Lei Fundamental. E, assim, no caso sub judice veio o recorrente a ser confrontado com elementos fácticos (essenciais para a compreensão do caso) novos sem que lhe fossem concedidos os meios necessários à sua defesa. O advérbio de modo «estritamente», constante da parte final do nº 1 do art. 358º do Código de Processo Penal, não pode ser interpretado em termos tais que impliquem a lesão da necessária contraditoriedade processual penal.
Em segundo lugar, foi explicado no Parecer junto aos autos pelo recorrente (cfr. as respectivas págs. 13 e 77) que a decisão da primeira instância devia ser criticada e reformada na parte em que utiliza o mesmo elemento fáctico do exercício de funções políticas quer para qualificar especializadamente as imputações com base na Lei nº 34/87, de 16 de Julho, quer para o considerar circunstância agravante da responsabilidade. Assim se violou a norma que, no Código Penal (agora - isto é, na versão do Código Penal posterior
à reforma de 1995 - , cfr. o proémio do nº 2 do art. 71º), mais concretizadamente traduz a proibição constitucional da dupla valoração, formalmente expressa no nº 5 do art. 29º da Lei Fundamental (e, sobre a relevância constitucional do princípio do non bis in idem, vd., por todos, o Senhor Prof. Doutor J. J. GOMES CANOTILHO e o Senhor Dr. VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra Editora, 1993, pág. 194).
Em terceiro lugar, também no referido Parecer (a págs. 14, 15 e 78) se trouxe aos autos a chamada de atenção para a inconstitucionalidade resultante de, na graduação da pena de um titular de cargo político, não observar a própria hierarquia estabelecida em preceitos como os dos arts. 187º, 194º e 199º da Constituição. Se é de graduação da responsabilidade de um titular de cargo político que o Tribunal diz tratar, então o exercício da função de Secretário de Estado não permite que se esqueçam as dependências que o definem. Não o permite negativamente - olvidando a necessária investigação em torno da formação de decisões que são deliberações - e não o permite positivamente - uma vez que o exercício de um cargo subordinado não pode nunca ser critério de agravação, mas, quando muito, de atenuação.
Em quarto lugar, foi ainda através do citado Parecer (desta feita, a págs. 15 e 16) que se trouxe ao processo a saliência de que uma contradição grave ínsita nas condenações proferidas na primeira instância é violadora do princípio da irretroactividade. Quanto à condenação por «burla», o momento consumativo seria, ou teria sido, um pagamento antecipado (numa altura em que ainda se não podia saber se o trabalho iria ser realizado ou não...) anterior ao início do exercício de funções políticas pelo recorrente; quanto à condenação por «participação económica em negócio», o momento consumativo não foi o do início da sequência de actos que o recorrente veio, funcionalmente, completar, por isso que tal início se verificara antes da própria entrada em vigor da Lei nº 34/87, de 16 de Julho.
Em quinto lugar (e cfr. agora a pág. 75 do Parecer junto aos autos), verifica-se no presente processo – e, neste momento, quer pela primeira instância, quer pelo próprio Supremo Tribunal de Justiça – a violação do princípio da retroactividade in melius ou in mitius (retroactividade da solução concretamente mais favorável ao arguido, ex art. 29º, nº 4, da Constituição) em face da desconsideração da evolução legislativa do conceito de «processo»
(elemento do tipo de crime de «prevaricação» por que o recorrente também vem condenado) com a entrada em vigor do Código do Procedimento Administrativo.
[...] foi o que neste processo se fez ao recorrente, ao desconsiderar a necessidade de passar a ler tanto o Código Penal como a sua legislação complementar de modo diferente, por exemplo na incriminação da «prevaricação», a partir da entrada em vigor do Código do Procedimento Administrativo no ordenamento jurídico português.
Em sexto lugar e finalmente, trouxe-se ainda aos autos (cf. o Parecer citado, pág. 80, sob as alíneas «p» e «q») a afirmação da inconstitucionalidade decorrente da inaplicabilidade da causa de justificação consagrada no nº 2 do art. 3º do mesmo Código do Procedimento Administrativo. Essa inaplicabilidade conforma igualmente, in casu, violação da retroactividade in mitius.
35. Quanto às questões suscitadas no segundo recurso, foram elas assim enunciadas:
E, assim, em sétimo lugar, o facto de o Tribunal não ter verificado, ao contrário do que lhe fora pedido (cfr., por exemplo, o Parecer cit., pág. 77, sob «b»), a relevância jurídico-administrativa dos elementos que descreveu e que entendeu dar como provados, na perspectiva da dispensa da intervenção de ultima et extrema ratio como só pode ser a do Direito Penal, é claramente violador do princípio da necessidade das penas. É este um princípio caracterizador do próprio papel do Estado nesta matéria (cf., por último, a Senhora Prof.ª Doutora MARIA FERNANDA PALMA, Direito Penal, Parte Geral, Lições policopiadas pela Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, págs. 65 e segs.), ancorado na subsidiariedade da ilicitude de que aqui se trata (resume indicações a propósito o Senhor Dr. MIGUEL PEDROSA MACHADO, Circunstância das infracções e sistema do Direito Penal português, separata do Boletim do Ministério da Justiça, 1989, pág. 44) e com uma relevância constitucional material vetusta
(por todos, cf. o Senhor Conselheiro JOSÉ DE SOUSA E BRITO, „A Lei Penal na Constituição', na obra colectiva Estudos sobre a Constituição, Livraria Petrony,
1978, págs. 222 e segs.).
Em oitavo lugar, padece o presente processo, na solução de condenação do recorrente por burla, de inconstitucionalidade na interpretação do art. 10º do Código Penal. Em dois planos:
Por um lado, essa condenação assenta no juízo de que o crime de burla seria passível de ser cometido por omissão, por essa forma olvidando que justamente um dos exemplos de aplicação da ressalva constante da parte final do nº 1 desse art. 10º do Código Penal - e precisamente porque do que nessa ressalva se cuida é de crimes modais ou de forma vinculada - é o crime de burla
(cf. o Senhor Prof. Doutor JORGE MIRANDA e o Senhor Dr. MIGUEL PEDROSA MACHADO, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 1994, pág. 488).
Por outro lado, não se pode no presente momento esquecer que a Revisão de 1995 do Código Penal deu nova redacção a tal art. 10º. O que passou a ser equiparado à acção não foi a omissão de uma acção devida, mas uma mera omissão de contornos indeterminados e claramente violadores da legalidade penal
(cfr. a antiga e a nova redacções do nº 1 do cit. art. 10º). O problema para que assim se chama a atenção é o seguinte: tudo indica que esta nova redacção é resultante de um erro, fazendo constar formalmente do Código Penal uma modificação para a qual o diploma aprovador da Revisão de 1995 - o Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março - não tinha habilitação suficiente, violando-se assim o art. 168º da Constituição. Só que essa ilegalidade reforçada (segundo o Senhor Prof. Doutor JORGE MIRANDA, Funções, Órgãos e Actos do Estado, edição policopiada na Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, págs. 476 e 477) ou essa inconstitucionalidade orgânica (segundo o Senhor Prof. Doutor J. J. GOMES CANOTILHO e o Senhor Dr. VITAL MOREIRA, op. cit., pág. 682) não invalida a necessidade de aplicação ao caso da lei, mesmo inconstitucional, mais favorável ao arguido (é um ponto sobre o qual existe discussão doutrinária entre nós: o Senhor Dr. RUI PEREIRA, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 1991, págs.
55 e segs., apresenta-se como defensor de uma posição por si próprio logo qualificada – ibidem, pág. 56 - como minoritária; mas posição que conduziu à apresentação, pelo Senhor Prof. Doutor JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo II, 3ª edição, 1991, págs. 499 e 500, de uma maneira de ver a questão que não deixa de atender aos argumentos do Senhor Dr. RUI PEREIRA, sem deixar de aplicar o nº 4 do art. 29º da Constituição). E esta solução mais favorável ao arguido é claramente a correspondente à nova versão do art. 10º, que contém uma norma vazia reforçadora da inviabilidade de equiparação da acção
à omissão num caso como o dos autos.
Em nono lugar, surge a questão a que muito doutamente se refere o voto de vencido que acompanha o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Fevereiro de 1996. O mesmo princípio da retroactividade in mitius de que se tem falado a outros propósitos nestas alegações exigia que o art. 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, quando interpretado (como é sempre devido) conformemente com a Constituição (e, portanto, também com o seu art. 29º), conduzisse à impossibilidade de aplicação de uma norma da Lei nº 34/87 toda ela construída à imagem da anterior versão do Código Penal, uma vez mudado este, como designadamente se verifica pelo seu art. 369º.
Em décimo lugar, enfim, desrespeita a fundamentação constitucional da culpa penal a confusão entre prova indirecta e inferência feita nos autos
(acerca da questão, cf., por exemplo, o Parecer cit., pág. 26). Dar como provada a burla é algo que nunca se pode verificar sem atender à dupla estrutura causal de que o tipo em causa se reveste: antes da produção do prejuízo está a causalidade psíquica (cf., por último, a Senhora Prof.ª Doutora MARIA FERNANDA PALMA e o Senhor Dr. RUI CARLOS PEREIRA, na Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1994, pág. 328) que há-de ligar o comportamento da vítima à astúcia do agente; ponto não provado (nem directa, nem indirectamente) nos autos.
f. Alegações de J...
36. Por sua vez, o recorrente J... formulou a questão de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 313º do Código Penal de 1982 e do artigo 217º do mesmo Código após a revisão de 1995, nos termos seguintes:
E, como se disse, na petição de recurso estão em causa «na interpretação que deles faz o aresto do STJ em causa, ao ter considerado que a mera promessa de uma prestação, sem a intenção de a cumprir, integra o requisito típico da astúcia criminalmente relevante para a realização da burla».
Na verdade, o preceito incriminador em causa leva a «astúcia» à categoria típica essencial, nisso se diferenciando do Código Penal de 1886 e daquilo que era a tradição portuguesa.
No Código Penal de 1886 a burla estava tipificada em linguagem naturalística e em estilo casuístico, em dois preceitos, os artigos 450º e 451º, neste último prevendo-se a denominada defraudação, possível de ser cometida por várias formas, entre as quais «empregando artifício fraudulento (...)».
[...]
A muito diferente técnica legislativa usada não permite analogia ou qualquer ilação entre essa previsão e aquela que está hoje adquirida desde o CP82, embora, no entender de alguma doutrina, ao usar tal conceito de astúcia «o legislador penal de 1982-95 não pretendeu romper com o passado» (Doutora Fernanda Palma e o Dr. Rui Carlos Pereira, O crime de burla no Código Penal de
1982-95, publicado na Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,
1994, xxv, página 324).
A astúcia é um elemento objectivo necessário integrante do tipo de tal modo essencial que, sem a sua verificação, inexiste burla, mesmo na forma tentada.
[...]
6. A exigência da astúcia, como elemento essencial do tipo, foi considerada ser «uma exigência que se vem juntar limitativamente ao elemento de dolo específico: intenção de enriquecimento específico» (itálico nosso).
O passo citado é extraído da Acta da 9ª sessão, publicada no volume Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, 1979.
[...]
7. Ora a astúcia é um conceito com contornos indeterminados, sem definição legal e que carece assim de um esforço de interpretação jurídica para que os seus contornos se precisem.
Afastamos assim que um conceito típico com esta envergadura possa ser achado pela mera referência a sinónimos seus ou a descrições aptas a sugestionar o respectivo campo semântico mas afinal de tipo retórico, e assim desprovidas do rigor jurídico que se exige para a sua conceitualização.
8. Ora a interpretação jurídica de conceitos típicos pertencentes a normas incriminatórias não é livre, antes há uma fronteira além da qual se extravasa os próprios limites definidos pela tipicidade e que, assim, não é consentida.
[...]
Mas do enunciado constitucional do princípio da legalidade incriminatória, previsto no artigo 29º, nº l da CRP há mais limitações.
Entre as múltiplas facetas possíveis, está precisamente a proibição de uma interpretação que ultrapasse o campo semântico natural dos conceitos jurídicos empregues pelo legislador na conformação dos seus tipos penais, pois
«uma interpretação que vá além do sentido possível dos palavras é incompatível com o fundamento de segurança jurídica do princípio nullum crimen nulla poena sine lege, embora não esteja em rigor abrangido por ele» (Dr. José de Sousa Brito, A lei penal na Constituição, estudo publicado na colectânea Estudos sobre a Constituição, II, página 253).
9. E, como a tipicidade é, como princípio de legalidade, uma exigência constitucional (artigo 29º, nº 1 da CRP), então, uma interpretação de tais conceitos típicos que franqueie os limites de tal fronteira de legalidade incriminatória, torna a norma interpretada materialmente inconstitucional.
Passando à análise dos conceitos jurídico-civis relativos à reserva mental e à simulação, concluiu o recorrente que aquela, desde logo, não podia ser considerada «figura integrante ou equivalente ao requisito típico da astúcia para efeitos de burla»; e, não estando, por sua vez, a simulação sob a alçada penal, «então, por maioria de razão, a reserva mental, também será situação insusceptível de integrar qualquer elemento de tipicidade penal». E continuou:
Aliás, uma interpretação do conceito de astúcia enganatória em termos de nele se excluir a simulação - porque hoje impune - mas em termos de aí abranger a reserva mental, colidiria frontalmente com a regra imperativa do respeito da «unidade do sistema jurídico», a qual é hoje exigência basilar da teoria da interpretação, tal como está consignada pelo artigo 9º, nº l do CCv.
[...]
(…)Em suma, os artigos 313º do CP83 e 217º do CP95, se interpretados e aplicados - como o foram in casu - em termos de a reserva mental de incumprimento integrar e equivaler ao conceito de astúcia enganatória ou indutora em erro são materialmente inconstitucionais, por ofensa ao princípio da legalidade incriminatória, que está enunciado no artigo 29º, nº l da CRP.
37. E, no tocante aos artigos 1º, nº 1, alínea f), 359º e 379º, alínea b), do CPP, o recorrente prosseguiu assim as suas alegações:
No caso em apreço o arguido vinha pronunciado pela comissão de um crime de burla cometido através da reserva mental de incumprimento e ele foi condenado por burla cometida através da formulação de um preço que havia engendrado segundo critérios que não podiam ser aceites, porque supostamente não legais.
(…)Mas mais: é que, dando como reproduzido tudo o que acima se disse, o modo de comissão do crime, tal como está materializado pela descrição fáctica da pronúncia - astúcia por reserva mental de incumprimento - só podia conduzir à sua absolvição e, assim, foi precisamente o ter-se na sentença e de surpresa considerado a existência de outros factos típicos, referentes ao modo de realização do crime, que veio a possibilitar a condenação.
Deste modo, o que está em causa, em suma, é saber se as garantias de defesa em processo penal, clausuladas que estão como exigências do processo criminal acusatório típico de um Estado de Direito, permitem alterar na sentença sem aviso ou contraditório a materialidade dada como achada em termos de decretar condenação que se não poderia alcançar através da narrativa factual da pronúncia.
(…)Ora a existência de «outros factos» que, não significando alteração substancial, não integrem outro crime, diverso do referido na pronúncia, ou não impliquem o agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis (hoc sensu a alínea f) do artigo 1º do CPP) só pode ser tida em conta mediante a garantia de contraditório, tal qual o prevê o artigo 358º, nº 1 do CPP, que impõe que, perante tal eventualidade «o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunicam a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa».
[...]
(…)Violar esta regra de vinculação temática e negar tal eventualidade de contraditório e de defesa é assim negar o «direito a ser ouvido», peça integrante e decisiva do «justo processo legal» que é imperativo do modelo processual imposto pelo artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e que a nossa lei Fundamental expressamente acolheu.
[...]
(…)Em suma, os artigos 1º, nº 1, alínea f), 359º e 379º do CPP quando interpretados nos termos em que o fez o aresto em causa no sentido de que na sentença condenatória pode ser de surpresa imputado ao arguido um modo de comissão do crime, que não é aquele que expressamente constava da pronúncia, face à qual ele ofereceu a sua defesa, são inconstitucionais por violação do disposto no artigo 32º, nº 1 da CRP.
g. Contra-alegações do Ministério Público; suscitação de questão prévia
38. O Ministério Público, nas suas contra-alegações, concluiu do seguinte modo:
1. Não deve conhecer-se do recurso relativo à questão de constitucionalidade da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, por o recorrente não imputar a inconstitucionalidade a qualquer norma, mas à própria decisão.
2. As normas dos artigos 313º do Código Penal de 1982, e 217º do Código Penal de 1995, na interpretação do acórdão recorrido, não violam o disposto no artigo 29º, nº 1 da Constituição.
3. As normas dos artigos 1º, nº 1, alínea f), 359º e 374º do Código de Processo Penal, na interpretação do acórdão recorrido, não violam o disposto no artigo 32º, nºs 1 e 5 da Constituição.
4. A norma do artigo 358º, do Código de Processo Penal, na interpretação do acórdão recorrido, não viola o disposto no artigo 32º, nº 5 da Constituição.
5. O artigo 10º do Código Penal, na interpretação do acórdão recorrido, não viola o princípio constitucional da legalidade.
6. O artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, não viola qualquer norma ou princípio constitucional.
39. O recorrente F..., notificado para responder à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, veio fazê-lo nos termos seguintes:
[...] Se são questões «novas», são-no apenas na medida em que não tinha sequer formal-legislativamente sido possível colocá-las no tempo próprio do decurso do processo. É manifestamente o que se passa com a questão da excessiva amplitude da letra do nº 1 do art. 10º do Código Penal posteriormente
à entrada em vigor da Reforma de 1995, por isso que só muito recentemente o problema foi trazido pelo Governo ao Parlamento (cfr. a Proposta de Lei nº
80/VII, publicada no Diário da Assembleia da República, II Série-A, nº 34, de 11 de Abril de 1997, designadamente a págs. 527 e 531, e divulgada algum tempo antes pela Direcção de Serviços de Apoio da Assembleia da República). Tecnicamente, do que trata é de uma questão de previsibilidade (definida e elencada, por todos, pelas Senhoras Dras. INÊS DOMINGOS e MARGARIDA MENÉRES PIMENTAL, na obra colectiva Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Lisboa, 1993, pág. 446) em termos que a jurisprudência do Tribunal Constitucional não faz voltar contra o recorrente.
5º
[...] Na pág. 3 das suas doutas alegações parece referir-se a uma questão genérica de indistinção entre a impugnação de um acto judicial e a interpretação conforme à Constituição. Mas já a págs. 12-13, sob o nº 1 das suas
«conclusões», parece querer restringir tal questão genérica à questão da aplicabilidade da Lei nº 34/87, de 16 de Julho.
6º
Se é de restrição que se trata, o recorrente tem o dever de chamar a atenção para o facto de ficarem fora da «questão prévia» os aspectos de constitucionalidade por si resumidos nos números 2 e 3 da sua própria conclusão de alegações: a violação do ne bis in idem na condenação do arguido e a inobservância da graduação constitucional-orgânica na medida da pena.
7º
[...] As críticas respeitosamente feitas pelo recorrente a Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Colectivo de 1ª Instância sobre que se basearam só atingem o respectivo sentido decisório na medida das interpretações desconformes à Constituição aí oportunamente detectadas. Não se trata de impugnar um acto por si só. Trata-se de criticar, no acto, interpretações aí realizadas.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTOS
A. Admissibilidade dos recursos
a. Pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade
40. Nos termos do artigo 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, cabe recurso para este Tribunal «das decisões dos tribunais [...] que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo».
Assim, este tipo de recurso de constitucionalidade há-de interpor-se apenas de decisões judiciais que apliquem norma ou normas jurídicas cuja questão de inconstitucionalidade o recorrente haja suscitado durante o processo.
Mostra-se, pois, necessário, e antes de mais, que se esteja perante uma decisão judicial, na qual tenha sido resolvida uma questão de inconstitucionalidade, ainda que implicitamente. Contudo, o recurso de constitucionalidade em questão tem sempre como objecto a norma ou normas jurídicas efectivamente aplicadas por essa mesma decisão, como flui do artigo
280º, nº 1, da Constituição, e dos artigos 70º, nº 1, alínea b), e 75º-A, nº 1, da LTC.
Sobre a questão de saber qual seja o conceito de norma para efeitos de fiscalização da constitucionalidade, tem-se este Tribunal debruçado com alguma frequência, nomeadamente, no Acórdão nº 26/85, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 7 e segs.), no Acórdão nº 150/86, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7º vol., tomo I, págs. 287), no Acórdão nº 80/86, (id., págs. 79), no Acórdão nº 156/88, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., págs. 1057), e no Acórdão nº 172/93, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º vol., págs. 451), entre outros. De toda essa jurisprudência decorre, como se pode ler no referido Acórdão nº 26/85:
Assim, o que há-de procurar-se, para o efeito do disposto nos artigos
277º e seguintes da Constituição, é um conceito funcional de «norma», ou seja, um conceito funcionalmente adequado ao sistema de fiscalização da constitucionalidade aí instituído e consonante com a sua justificação e sentido.
Pois bem: como a Comissão Constitucional já havia acentuado, o que se tem em vista com esse sistema é o controlo dos actos do poder normativo do Estado (lato sensu) - e, em especial, do poder legislativo - ou seja, daqueles actos que contêm uma «regra de conduta» ou um «critério de decisão» para os particulares, para a Administração e para os tribunais.
Não são, por conseguinte, todos os actos do poder público os abrangidos pelo sistema de fiscalização da constitucionalidade previsto na Constituição. A ele escapam, por um lado (e como já a Comissão Constitucional salientara), as decisões judiciais e os actos da Administração sem carácter normativo, ou actos administrativos propriamente ditos; e, por outro lado, os
«actos políticos» ou «actos de governo», em sentido estrito [...]
Não compete, portanto, ao Tribunal Constitucional o conhecimento de inconstitucionalidades que atinjam directamente decisões judiciais ou actos judiciais propriamente ditos.
41. Como resulta das disposições citadas, e também do artigo 72º, nº
2, da LTC (versão decorrente da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro), o recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º pressupõe que:
- a questão de inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo, «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer»;
- a norma tenha sido efectivamente aplicada na decisão recorrida;
- e que dessa decisão não caiba recurso ordinário, por a lei o não prever ou por estarem esgotados os que no caso cabiam (exaustão dos recursos ordinários).
Se, no caso dos autos, não se encontra em causa, por resultar evidente, o preenchimento deste último pressuposto, já em relação ao cumprimento dos dois primeiros pressupostos se impõe efectuar algumas considerações adicionais.
42. Como este Tribunal tem repetidamente afirmado, só se pode considerar suscitada a questão durante o processo, quando a tempo de o tribunal a quo sobre ela se poder e dever pronunciar – ou seja, antes de esgotado o seu poder jurisdicional.
E, por outro lado, o Tribunal tem considerado que cabe
às partes considerar antecipadamente as várias hipóteses razoáveis de interpretação das normas em questão e, bem assim, suscitar antecipadamente as inconstitucionalidades daí decorrentes – isto é, antes de proferida a decisão de que se pretende recorrer para o Tribunal Constitucional. Neste sentido se pronunciaram, nomeadamente, o Acórdão nº 479/89 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14º vol., págs. 143 e segs.), o Acórdão nº 116/93 (inédito), o Acórdão nº 232/94 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27º vol., págs. 1119 e segs.) e o Acórdão nº 258/94 (inédito), no quadro de uma jurisprudência unânime, constante e uniforme.
Significa isto, desde logo, que o requerimento em que se solicite a aclaração ou em que se proceda à arguição de nulidades de uma decisão judicial não é, em regra, instrumento idóneo para se levantar, pela primeira vez, a questão de inconstitucionalidade, em termos de se abrir a via do recurso para o Tribunal Constitucional.
Com efeito, constitui jurisprudência pacífica e uniforme deste Tribunal esse entendimento de que a suscitação da questão de inconstitucionalidade no requerimento de aclaração ou de arguição de nulidades se não pode entender como feita «durante o processo», por ocorrer depois de esgotado o poder jurisdicional do tribunal quanto à apreciação dessa mesma questão de inconstitucionalidade (cfr. Acórdão nº 62/85, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e segs.; Acórdão nº 90/85, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 663 e segs.; Acórdão nº 450/87, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 10º vol., págs. 573 e segs.; e Acórdão nº 94/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., págs. 1089 e segs.). E o mesmo se diga, aliás, quanto aos casos em que a suscitação da questão de inconstitucionalidade apenas ocorre no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade.
Desta forma, o Tribunal Constitucional apenas em casos considerados absolutamente excepcionais ou anómalos – casos em que não tivesse sido possível a suscitação prévia ou em que esta se mostrasse inexigível – tem, admitido que a questão de inconstitucionalidade possa ser suscitada depois de proferida a decisão recorrida.
Assim, a dispensa da prévia suscitação da questão de inconstitucionalidade – prévia, relativamente à prolação da decisão jurisdicional de que se pretende recorrer - tem sido admitida, desde logo, naqueles casos em que o recorrente não tenha tido a oportunidade processual de suscitar a questão anteriormente (cfr. Acórdão nº 136/85, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 6º vol., págs. 615 e segs.; Acórdão nº 94/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., págs. 1089 e segs.; Acórdão nº 51/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 15º vol., págs. 499 e segs.; e Acórdão nº
60/95, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., págs. 445 e segs.). Mas tem sido igualmente admitida naqueles casos em que não era exigível ao recorrente que tivesse suscitado a questão previamente – e isto, quer devido à imprevisibilidade da aplicação da norma ao caso (Acórdão nº 391/89, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13º vol., tomo II, págs. 1367 e segs.; Acórdão nº
61/92, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol., págs. 761 e segs.; e Acórdão nº 188/93, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º vol., págs. 495 e segs.), quer ainda por tal suscitação constituir contradição evidente com a estratégia processual adoptada (Acórdão nº 605/95, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32º vol., págs. 449 e segs.).
Outro tipo de situações excepcionais que dispensam a prévia suscitação da questão de inconstitucionalidade ocorre naqueles casos em que o poder jurisdicional, por força de norma processual específica, se não esgote com a decisão recorrida, como acontece, por exemplo, em função do que se preceitua no artigo 102º, nº 1, do Código de Processo Civil, com o conhecimento da incompetência absoluta (Acórdão nº 3/83, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1º vol., págs. 245 e segs.); e ocorre ainda naqueles casos em que a questão de inconstitucionalidade se refira a normas processuais aplicáveis, a título principal ou incidental, na própria decisão que vai apreciar o requerimento em que se contenha a arguição de nulidade ou o pedido de aclaração (cfr., v. g., o Acórdão nº 206/86, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7º vol., tomo II, págs.
975 e segs.).
Todavia, fora estes casos excepcionais, a questão de inconstitucionalidade - reafirma-se - há-de ser suscitada antes de proferida a decisão recorrida.
43. Para que caiba o recurso de constitucionalidade previsto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC, é necessário ainda que a norma tenha sido efectivamente aplicada na decisão jurisdicional de que se pretende recorrer. Ou seja, é necessário que a norma impugnada tenha constituído verdadeiramente a ratio decidendi dessa mesma decisão - não sendo, pois, suficiente que a questão de inconstitucionalidade tenha sido nela tratada como mero obter dictum (cfr. Acórdão nº 364/96, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33º vol., págs. 489 e segs.) ou como simples argumento ad ostentationem (cfr. Acórdão nº 206/92, Diário da República, II Série, de 12 de Setembro de 1992).
Não basta, pois, que a questão de inconstitucionalidade de uma norma tenha sido oportuna e adequadamente suscitada. É igualmente necessário que essa mesma norma tenha sido efectivamente aplicada na decisão recorrida (cfr. Acórdão nº 187/95, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., págs. 915 e segs.); e, no caso de se contestar a constitucionalidade da norma em causa apenas com uma dada interpretação, é ainda correspondentemente exigido que ela tenha sido aplicada in casu com essa mesma interpretação (cfr. Acórdão nº 139/95, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., págs. 701 e segs.).
b. Verificação da ocorrência dos pressupostos no 1º recurso de F...
44. O recorrente F... indicou um total de dez questões de constitucionalidade, sendo seis referentes ao primeiro recurso - interposto do acórdão do STJ de 29 de Fevereiro de 1996 - e as restantes quatro ao segundo recurso - do acórdão do STJ de 11 de Julho de 1996.
Assim, as questões de inconstitucionalidade enunciadas no primeiro recurso são as seguintes:
a) da norma constante do artigo 358º do CPP, quando interpretada no sentido de se admitir a relevância de factos não constantes da pronúncia, sem que sejam concedidos ao arguido meios de defesa, por ofensa ao nº 5 do artigo
32º da Constituição da República Portuguesa;
b) da dupla valoração da utilização do exercício de funções políticas, como elemento qualificativo do crime e como circunstância agravante da responsabilidade penal, por violação do nº 5 do artigo 29º da Constituição;
c) da graduação da pena aplicada enquanto titular de cargo político sem consideração da respectiva hierarquia funcional, com inobservância dos artigos 187º, 194º e 199º da Constituição;
d) da contradição grave ínsita nas condenações proferidas pelo crime de burla e pelo crime de participação económica em negócio, relativamente aos respectivos momentos de consumação, em violação dos nºs 1 e 4 do artigo 29º da Constituição;
e) da não consideração do conceito de «processo», constante do Código de Procedimento Administrativo (CPA), entretanto entrado em vigor, e da evolução legislativa desse mesmo conceito, também com violação do mesmo artigo 29º, nºs 1 e 4 da Lei Fundamental;
f) da não aplicação ao caso da causa de justificação consagrada no nº
2 do artigo 3º do mesmo CPA, respeitante ao estado de necessidade administrativa, com violação da regra da aplicação da lei penal mais favorável.
45. Pois bem: de todas estas questões indicadas pelo recorrente, apenas uma – a relativa à norma do artigo 358º do CPP – foi efectivamente suscitada durante o processo - concretamente na motivação de recurso para o STJ
-, como questão de inconstitucionalidade.
Com efeito, apesar de se ter referido a todas estas questões jurídicas na sua motivação de recurso para o STJ, a verdade é que, nesse momento, o recorrente não suscitou em relação a elas qualquer questão de inconstitucionalidade normativa (o recorrente não viria, aliás, a apresentar alegações escritas no STJ).
Desde logo, na referida motivação de recurso para o STJ, e como decorre do relato já efectuado, o recorrente, ao tratar as referidas questões jurídicas, à excepção da referente ao artigo 358º do CPP, nunca indicou quaisquer normas de direito ordinário como violadoras da Constituição, limitando-se a apontar a sua divergência com a decisão judicial recorrida, no mero plano da aplicação da lei. Aliás, na referida motivação do recurso, não chegou, sequer, o recorrente - ao colocar tais questões à luz do que entendia ser a interpretação e aplicação da lei ordinária – a perspectivar essas mesmas questões em função de certos princípios constitucionais, como aconteceu no parecer junto aos autos – o que, aliás, não seria, mesmo assim, igualmente bastante para abrir a via do recurso de constitucionalidade.
Por outro lado, mesmo no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, e sempre exceptuando o caso do artigo 358º do CPP, o recorrente não identifica concretamente quaisquer normas jurídicas que, no seu entendimento, padeceriam do vício de inconstitucionalidade. As diversas questões jurídicas que suscita continuam aí sempre a ser referidas à forma ou ao modo como o direito ordinário foi aplicado pelo tribunal recorrido (agora já com referência igualmente à forma como se entende que essa aplicação deveria ter sido efectuada à luz dos princípios constitucionais atinentes), persistindo, no entanto, em não assacar concretamente o vício de inconstitucionalidade a certas normas jurídicas - isto é, persistindo em não identificar as normas de direito ordinário aplicadas pelo tribunal a quo que se encontrariam feridas de inconstitucionalidade.
Assim, não podem ser tidas senão como traduzindo apenas essa discordância com a aplicação do Direito - e não com a conformidade constitucional de certas normas (ainda que numa certa interpretação) - as questões respeitantes:
- à dupla valoração do exercício de funções políticas
- à graduação da pena
- à contradição relativamente à determinação dos momentos consumativos dos crimes
- à não consideração do conceito de processo na legislação administrativa
- à não aplicação de uma causa de justificação.
Em nenhum destes casos, com efeito, foi suscitada a questão de inconstitucionalidade de uma norma, mas apenas a eventual inconstitucionalidade de uma decisão judicial, o que se encontra fora dos poderes de cognição do Tribunal Constitucional, por extravasar a sua competência.
E, mesmo assim, essa questão de inconstitucionalidade – de uma decisão judicial – só veio a ser efectivamente suscitada no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade e não durante o processo, o que significa que o recorrente, tendo tido oportunidade processual para o efeito, não suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa em relação às matérias em causa, em momento processualmente adequado para abrir a via do recurso de constitucionalidade.
Portanto, quanto ao primeiro recurso, e nesta perspectiva, apenas se verificam os pressupostos necessários ao seu conhecimento em relação à norma do artigo 358º do CPP, não se podendo conhecer das restantes questões indicadas pelo recorrente, por manifesta falta dos pressupostos processuais referidos.
c. Verificação da ocorrência dos pressupostos no 2º recurso de F...
46. No tocante ao segundo recurso, interposto do acórdão do STJ de
11 de Julho de 1996, o recorrente F... indicou as seguintes questões de inconstitucionalidade:
a) da não consideração pelo tribunal da «relevância jurídico-administrativa» dos elementos dados como provados, assim desconsiderando a subsidiariedade da intervenção do Direito Penal e violando o princípio da necessidade das penas;
b) da interpretação dada ao artigo 10º do Código Penal, esta em dois planos:
- num primeiro plano, na medida em que admite a prática do crime de burla por omissão, violando o princípio da legalidade;
- num segundo plano, na medida em que se não considerou aplicável no caso a nova redacção da norma, resultante das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº
48/95, de 15 de Março (e isto, apesar de este diploma não ter habilitação parlamentar suficiente para o efeito, padecendo de inconstitucionalidade orgânica), já que esta nova versão se mostra mais favorável ao arguido, uma vez que contém uma norma vazia, violadora da legalidade penal, o que inviabilizaria a equiparação da acção à omissão;
c) da interpretação dada na decisão recorrida ao artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 48/95, violadora do princípio da retroactividade in mitius, já que, como se afirma no voto de vencido junto ao acórdão recorrido, as normas da Lei nº 34/87 não poderiam continuar a ser aplicadas após a entrada em vigor das alterações ao Código Penal;
d) da «confusão entre prova indirecta e inferência» efectuada pelo acórdão recorrido - dando como provada a burla sem atender «à dupla estrutura causal» do respectivo tipo legal (no entender do recorrente, não teria ficado provada nos autos a «causalidade psíquica [...] que há-de ligar o comportamento da vítima à astúcia do agente») -, assim se violando «a fundamentação constitucional da culpa penal».
47. Sucede, todavia, que estas questões não foram obviamente tratadas pela decisão recorrida - o acórdão de 11 de Julho de 1996 -, a qual se limitou a constatar que não se verificara qualquer omissão de pronúncia ou obscuridade no acórdão anterior - o de 29 de Fevereiro de 1996. Consequentemente, o acórdão recorrido não chegou a aplicar quaisquer normas cuja inconstitucionalidade tenha sido impugnada no requerimento de arguição de nulidades e de aclaração.
Ou seja, as únicas normas efectivamente aplicadas pela decisão recorrida (o mencionado acórdão de 11 de Julho de 1996) só podem ter sido as relativas às matérias nela apreciadas - eventuais nulidades e obscuridades do mesmo acórdão -, normas essas que se encontram vertidas nos artigos 379º e 380º do CPP e 666º e seguintes do CPC. E, quanto a estas normas, não suscitou o recorrente qualquer questão de inconstitucionalidade, nem antes nem depois de proferido o acórdão de que pretende recorrer.
Para além disso, e ainda que, por outro lado, se entendesse que o recorrente, pelo menos relativamente a algumas das questões enunciadas no requerimento de interposição do recurso, havia neste suscitado verdadeiras questões de inconstitucionalidade de normas jurídicas - e não apenas de inconstitucionalidade da decisão recorrida - a verdade é que seguramente o não o fez durante o processo.
Com efeito, a suscitação de questões de inconstitucionalidade normativa havia sempre de ter sido efectuada antes de proferido o referido acórdão de 29 de Fevereiro, já que não nos encontramos perante qualquer das situações anómalas ou excepcionais anteriormente indicadas em que é admissível suscitar aquelas questões depois de proferida a decisão judicial, nomeadamente por falta de oportunidade processual anterior, por imprevisibilidade da aplicação das normas, ou ainda por a questão de inconstitucionalidade se referir
às normas determinantes da nulidade requerida (de resto, e quanto a este último ponto, como se referiu, o recorrente nem sequer suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade relativamente às normas efectivamente aplicadas por tal aresto).
Não se pode, pois, conhecer das questões enunciadas no segundo recurso, por falta manifesta de pressupostos processuais.
d. Verificação da ocorrência dos pressupostos no recurso de J...
48. Por sua vez, o recorrente J... abandonou, neste Tribunal, a questão de inconstitucionalidade referente à norma constante do artigo 374º do CPP, que suscitara oportunamente perante o STJ.
Com efeito, no requerimento de interposição do presente recurso – que delimita, desde logo, o seu objecto -, o recorrente apenas indicou duas questões de inconstitucionalidade:
a) em primeiro lugar, a questão de inconstitucionalidade relativa à norma constante do artigo 313º do Código Penal, quando interpretada no sentido de que «a mera promessa de uma prestação, sem intenção de a cumprir, integra o requisito típico de astúcia criminalmente relevante para a realização da burla», por violação do princípio da legalidade incriminatória consignado no artigo 29º, nº 1, da Constituição;
b) em segundo lugar, a questão de inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 1º, nº 1, alínea f), 359º e 379º do CPP, enquanto interpretadas no sentido de «na sentença condenatória poder ser de surpresa imputado ao arguido um modo de comissão do crime de burla que não é aquele que expressamente constava da pronúncia face à qual ele ofereceu a sua defesa», por violação do artigo 32º, nºs 1 e 5 da Constituição.
49. No tocante à primeira questão suscitada, o recorrente J... começa por assinalar que a actual incriminação da burla (constante do artigo
313º do Código Penal de 1982 e hoje consignada no artigo 217º do Código Penal de
1995) possui como seu elemento típico essencial o conceito de «astúcia». E que, sendo este um conceito indeterminado, sem definição legal, carece, no seu entender, de um esforço de interpretação jurídica para a definição dos respectivos contornos.
Neste contexto, o recorrente entende que a interpretação jurídica a efectuar, no tocante a conceitos integrantes de elementos típicos de normas incriminatórias não é livre, antes estando forçosamente contida nos limites da tipicidade decorrente do artigo 29º, nº 1, da Constituição. Prosseguindo no enunciado dos limites colocados ao intérprete pelo princípio da legalidade incriminatória, considera o recorrente que aí se inclui «a proibição de uma interpretação que ultrapasse o campo semântico natural dos conceitos jurídicos empregues pelo legislador na conformação dos seus tipos penais»; e conclui, consequentemente, que uma interpretação que extravase tais limites tornará a norma assim interpretada materialmente inconstitucional.
Nesta conformidade, o que o recorrente verdadeiramente questiona é o processo interpretativo que permitiu ao tribunal recorrido abranger a reserva mental de incumprimento no conceito de astúcia. Tal processo interpretativo efectuado pelo tribunal a quo, por não ter respeitado os limites de interpretação da lei penal decorrentes do princípio da legalidade incriminatória, consignado no artigo 29º, nº 1, da Lei Fundamental, designadamente a proibição da analogia e da interpretação extensiva «que ultrapasse o campo semântico natural dos conceitos jurídicos», consequenciaria a inconstitucionalidade da própria norma penal incriminatória, quando objecto de uma tal interpretação, por violação do referido princípio constitucional.
Resta, porém, saber se essa questão se reconduz a uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, isto é, a uma questão que caiba ao Tribunal Constitucional conhecer, no âmbito do recurso de constitucionalidade.
50. O Tribunal Constitucional, pela sua 2ª Secção, começou por considerar que, em tais casos, se estaria perante «a inconstitucionalidade do acto de julgamento, e não a inconstitucionalidade de uma norma jurídica», pelo que se lhes não aplicaria o sistema de fiscalização da constitucionalidade, ao qual estão «apenas sujeitos os actos do poder normativo» (cfr. Acórdão nº
353/86, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8º vol., págs. 571 e segs.).
Contudo, mais tarde, no Acórdão nº 141/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol., págs. 599 e segs.), o Tribunal Constitucional, pela sua 1ª Secção, embora com o voto de vencido do Exmº Presidente, Consº Cardoso da Costa, deu resposta afirmativa ao problema. Afirmou-se então:
De facto, poderia sustentar-se que o Tribunal Constitucional carecia de competência para conhecer do objecto deste recurso, porquanto não estaria em causa propriamente matéria normativa (norma inconstitucional, numa certa interpretação da mesma), mas matéria decisória (o Supremo Tribunal de Justiça, ao confirmar a decisão condenatória da primeira instância, teria aplicado analogicamente uma norma incriminatória, em contravenção imediata ao disposto no artigo 1º, nº 3, do Código Penal, só mediatamente se podendo considerar que esta decisão judicial teria violado os nºs. 1 e 3 do artigo 29º da Constituição
[...].
Não obstante o carácter sugestivo deste raciocínio, crê-se que o mesmo não procede. De facto, o recorrente suscitou no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a questão de inconstitucionalidade da norma [...]. Sustentou aí que o tribunal havia interpretado extensivamente ou aplicado analogicamente certa norma incriminatória, sendo tal interpretação ou aplicação analógica através da criação de uma norma análoga aplicável a um caso omisso, contrárias à Constituição (no caso de se estar perante uma interpretação extensiva, seria também esta inconstitucional tal como o seria, por idêntica razão, o nº 3 do artigo 1º do Código Penal).
Ora, num plano perfunctório de análise de verificação dos pressupostos do recurso de constitucionalidade, ou seja, numa avaliação prima facie de tais pressupostos, entende-se que os mesmos se verificam no caso concreto. Saber se a interpretação perfilhada foi ou não inconstitucional faz parte já do conhecimento da questão de fundo ou de mérito. [...]
51. Esta última jurisprudência, porém, não se sedimentou. Com efeito, posteriormente, o Tribunal Constitucional veio a entender, nomeadamente no Acórdão nº 634/94 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 29º vol., págs. 243 e segs.), no Acórdão nº 221/95, (Diário da República, II Série, de 27 de Junho de
1995), no Acórdão nº 756/95, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32º vol., págs. 775 e segs.), no Acórdão nº 682/95, (inédito) ou, mais recentemente, no Acórdão nº 154/98 (inédito), que hipóteses em que se questionem certas interpretações normativas por ofensa do princípio da legalidade penal - ou hipóteses idênticas, no âmbito do respeito pelo princípio da legalidade fiscal - não traduzem verdadeiras questões de inconstitucionalidade normativa, mas reflectem antes questões de inconstitucionalidade da própria decisão recorrida ou do acto de julgamento.
Assim, pode ler-se no citado Acórdão nº 221/95:
Portanto, o que a recorrente questiona, no essencial, no recurso interposto no tribunal a quo, não é a norma [...] interpretada em desarmonia com a Constituição, mas, antes, a decisão judicial [...] que, inconstitucionalmente, e na sua tese, tê-la-ia prejudicado, ao aplicar certa norma ao seu caso, através de um método de interpretação colidente com as regras gerais de interpretação das leis fiscais e os princípios constitucionais na matéria [...].
E, por outro lado, escreveu-se no já mencionado Acórdão nº 154/98:
Pretende o recorrente que o Tribunal recorrido interpretou a norma do artigo 292º do Código Penal de forma extensiva, aplicando-o analogicamente, desde logo violando o disposto no nº 1 do artigo 29º da Constituição.
No entanto, não é o controlo normativo - legitimante do recurso de constitucionalidade - que está em causa.
[...]
Ora, esse objectivo não se compagina com aquele controlo normativo, abrindo via, quando muito, a um recurso de amparo que não está entre nós previsto.
E sublinhe-se também que no anteriormente referido Acórdão nº 682/95 se entendeu sugestivamente que, em tais hipóteses, «o que está em causa não é uma específica dimensão normativa do preceito», mas antes «a determinação do seu
âmbito de aplicação, de acordo com a sua ratio», tarefa que «corresponde apenas
à subsunção jurídica do caso, não havendo nenhum sentido específico da norma confrontável com a Constituição». Por isso, aí mesmo se concluiu que não estaria em causa «qualquer específica questão de constitucionalidade, mas apenas um problema de averiguação da intenção normativa, objectivamente considerada, e de subsunção».
52. Mais recentemente, porém, esta posição do Tribunal - que já não era totalmente unânime (cfr. declarações de voto do Exmo. Conselheiro José de Sousa Brito apostas ao Acórdão nº 634/94 e ao Acórdão nº 756/95) - parece ter-se inflectido através do Acórdão nº 205/99 (Diário da República, II Série, de 5 de Novembro de 1999) e do Acórdão nº 285/99 (Diário da República, II Série, de 21 de Outubro de 1999).
Com efeito, entendeu-se no citado Acórdão nº 205/99:
É objecto do presente recurso de constitucionalidade o confronto de uma interpretação do artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal de 1982 com os artigos 29º, nºs 1 e 2 e 32º, nºs 1 e 4, da Constituição.
Consubstancia um tal confronto uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa para cujo conhecimento o Tribunal Constitucional tem competência ou estar-se-á, apenas, perante o pedido de apreciação de uma eventual contradição da decisão recorrida, na sua substância meramente decisória, com a Constituição?
Impõe-se o entendimento segundo o qual o Tribunal Constitucional se confronta, neste caso, com uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, apesar de tal questão resultar de o tribunal recorrido ter atingido um resultado interpretativo eventualmente proibido, em face das restrições interpretativas impostas pelo princípio da legalidade em direito penal.
Com efeito, várias razões intercedem a favor de que a questão colocada não pretende suscitar o mero controlo pelo Tribunal Constitucional da decisão recorrida.
Assim, desde logo, o recorrente não submete à apreciação do Tribunal Constitucional um processo interpretativo utilizado pontualmente na decisão recorrida, isto é, a inserção do caso concreto num âmbito normativo pré-determinado pelo julgador. Não é um tal momento de sotoposição do caso no quadro lógico decorrente da interpretação da norma o que verdadeiramente se questiona, mas antes um certo conteúdo interpretativo atribuído ao artigo 120º, nº 1, alínea a), o qual é identificado. Questiona-se, sem dúvida, se a fixação de sentido da norma, segundo a qual esta abrangerá, em geral, na interrupção da prescrição, a notificação ao arguido do despacho do Ministério Público para interrogatório no inquérito e a realização deste' é uma interpretação normativa compatível com a Constituição, em face dos artigos 29º, nºs 1 e 3 e 32º, nºs 1 e
4. É, assim, o conteúdo final da interpretação, ou dito de outro modo, o resultado interpretativo pelo qual se atinge a norma que decide o caso, norma que eventualmente não tem competência constitucional para o decidir, que é submetido ao controlo de constitucionalidade.
A isto acresce que o referido conteúdo interpretativo não é apenas determinado pelo caso concreto, mas é referido com elevada abstracção, na base de uma linha jurisprudencial anterior que utilizou a mesma perspectiva interpretativa para casos idênticos.
Emerge, assim, claramente, de um momento interpretativo a questão de constitucionalidade. Não se trata de um momento meramente aplicativo da norma ao caso concreto, isto é, de uma situação em que o recorrente suscite apenas a correcção lógico-jurídica da inclusão do caso na norma. Trata-se, antes, da indicação, com suficiente autonomia, dos critérios jurídicos genérica e abstractamente referidos pelo julgador ao texto legal para decidir casos semelhantes. Neste caso, foi enunciada pelo julgador uma dimensão normativa que, segundo o recorrente, não corresponde fielmente às palavras do legislador, violando, por isso, o princípio da legalidade, sendo essa dimensão normativa que o recorrente pretende ver apreciada.
Ora, o Tribunal Constitucional não pode deixar de controlar dimensões normativas referidas pelo julgador a uma norma legal ainda que resultantes de uma aplicação analógica, em casos em que estejam constitucionalmente vedados certos modos de interpretação ou a analogia. O resultado do processo de interpretação ou criação normativa (tanto de meras dimensões normativas como de normas autónomas), ínsito na actividade interpretativa dos tribunais, não pode deixar de ser matéria de controlo de constitucionalidade pelos tribunais comuns e pelo Tribunal Constitucional, quando a própria Constituição exigir limites muito precisos a tais processos de interpretação ou criação normativa, não reconhecendo qualquer amplitude criativa ao julgador.
Questão afim da anterior é a de saber se o objecto do recurso é efectivamente o artigo 120º, nº 1, alínea a), do Código Penal ou antes uma norma construída pelo julgador através de um processo de integração de lacuna por analogia, nos termos do artigo 10º, nºs 1 e 2, do Código Civil. Note-se, porém, que em ambos os casos estaremos confrontados com uma norma cuja conformidade à Constituição é sindicável perante o Tribunal Constitucional. Na primeira hipótese, concluir-se-á que a aplicação analógica ainda constitui uma actividade interpretativa, em sentido amplo, dando como resultado uma certa dimensão normativa que pode contrariar normas ou princípios constitucionais. Na segunda hipótese, estará em causa uma norma não escrita igualmente susceptível de afrontar a Constituição quer quanto ao seu conteúdo quer quanto à sua génese (a circunstância de ser obtida mediante uma aplicação analógica vedada pelo artigo
29º, nºs 1 e 3, da Constituição feri-la-á de inconstitucionalidade material).
Todavia, esta questão acaba por ser de cunho puramente teorético na medida em que estará sempre em causa a questão de saber se é compatível com a Constituição a norma que determina a interrupção da prescrição obtida a partir do artigo 120º, nº 1, alínea a) do Código Penal. E, independentemente de estar em causa uma interpretação extensiva ou aplicação analógica desta norma legal, o que se pergunta é se a norma, dimensão, sentido ou interpretação obtidos contrariam ou não, na sua génese, o princípio da legalidade e, em concreto, a exigência de lex certa que lhe é ínsita.
Também este aresto não obteve unanimidade.
Com efeito, o Exmo. Conselheiro-Presidente manifestou opinião contrária à doutrina que obteve vencimento - em voto de vencido que juntou a este mesmo Acórdão nº 205/99 - tendo então considerado que se não deveria conhecer do recurso, «por entender que o seu objecto extravasa o âmbito da competência e do poder de cognição do Tribunal», e que a argumentação desenvolvida em contrário no acórdão não punha em crise a conclusão «de que, ao cabo e ao resto, já não está em causa, na situação, uma questão de inconstitucionalidade 'normativa' – tal como o não estava nos casos versados nos Acórdãos nº 682/95 e 221/95, os quais [...] não são 'estruturalmente' diferentes do ora em apreço».
Posição idêntica de afastamento relativamente a esta nova corrente jurisprudencial viria também posteriormente a ser manifestada pelo ora relator, através de declaração de voto aposta, por sua vez, ao mencionado Acórdão nº
285/99.
53. Acerca da questão em apreço, designadamente da eventual extensão do sistema de controlo da constitucionalidade às normas que se extraem da integração de lacunas, afirma Rui Medeiros (A Decisão de Inconstitucionalidade - Os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei, Universidade Católica Editora, Lisboa, 1999, págs. 340 a 342):
A conclusão adoptada não significa, porém, que o Tribunal Constitucional possa fiscalizar a constitucionalidade, não já da norma determinada através do processo de integração de lacunas, mas antes do próprio processo de obtenção da regra aplicável. A questão ganha particular relevância nos domínios em que existe uma proibição constitucional de recurso à analogia. É o que sucede, concretamente, com o princípio constitucional da legalidade em matéria penal.
Há quem entenda que cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que, aplicando analogicamente uma norma incriminadora, violam o princípio constitucional da legalidade em matéria penal.
Não duvidamos que essa é a solução mais consentânea com a lógica do recurso de amparo ou da queixa constitucional. Mas, já o sabemos, o legislador constitucional português não quis introduzir um sistema semelhante ao da acção constitucional de defesa de direitos fundamentais. Ora, independente da questão de saber se a violação do nullum crimen sine lege stricta envolve ou não uma inconstitucionalidade directa, a verdade é que, quando invoca a proibição da analogia, o que o recorrente suscita é «a inconstitucionalidade do acto de julgamento e não a inconstitucionalidade de uma norma jurídica». Sem dúvida que, nos casos em que um tribunal interpreta uma lei em desconformidade com a Constituição, a inconstitucionalidade não pode apenas ser imputada ao legislador, pois, sendo possível atribuir à lei um sentido conforme com a Constituição, a disposição legal em si é válida. Mas, na hipótese aqui em apreciação, a inconstitucionalidade, ainda que se convole numa inconstitucionalidade material, reporta-se unicamente ao processo de integração de lacunas adoptado pelo tribunal. Ora, uma coisa é dizer que a norma que um tribunal extrai, ainda que por analogia, de um acto normativo pode ser fiscalizada pelo Tribunal Constitucional, outra, bem diferente, á afirmar que a própria decisão jurisdicional constitui um acto normativo sindicável pelo Tribunal Constitucional. De resto, se assim não fosse, «todas as decisões judiciais, enquanto tais, susceptíveis de fiscalização da constitucionalidade
(...). E assim se defraudaria a Constituição, que expressamente pretendeu que o controlo da constitucionalidade fosse um controlo eminente normativo.
Tudo somado, é possível concluir que, nos casos em que o próprio legislador pode (sem ofender a Constituição) estabelecer por via legislativa solução idêntica àquela que resultava da interpretação ou integração inconstitucional da lei realizada pelo tribunal a quo, o Tribunal Constitucional não pode conhecer do recurso.
É para a transcrita fundamentação lógica - válida necessariamente, tanto para as formas não admissíveis de interpretação extensiva, como para a interpretação analógica - que ora se remete, assim se confirmando a jurisprudência deste Tribunal seguida entre 1994 e 1998 e vertida nos arestos anteriormente citados.
Com efeito, o recorrente não questiona que o conteúdo da norma, com a interpretação adoptada, seja compatível com o texto constitucional – nomeadamente, não questiona que a norma em causa pudesse proceder, por opção expressa do legislador, à referida incriminação quando ocorresse apenas reserva mental de incumprimento. O que vem questionado pelo recorrente nos presentes autos é tão-só que o julgador possa alcançar esse mesmo conteúdo normativo através de um processo interpretativo, já que, ao fazê-lo através de uma forma desrespeitadora dos limites fixados à interpretação da lei criminal, viola necessariamente o princípio da legalidade penal. Ou seja, não se questiona que o comportamento do recorrente possa ser objecto de uma incriminação, apenas se questiona se ele preenche efectivamente o tipo legal do crime de burla.
Conclui-se, assim, inequivocamente, que o que vem impugnado pelo recorrente não é a norma, em si mesma considerada, mas antes, a decisão judicial que a aplicou, por via de um processo interpretativo constitucionalmente proibido.
Ora, tal questão – por não respeitar a uma inconstitucionalidade normativa, mas antes a uma inconstitucionalidade da própria decisão judicial - excede os poderes de cognição do Tribunal Constitucional, uma vez que, entre nós, não se encontra consagrado o denominado recurso de amparo, designadamente na modalidade do amparo contra decisões jurisdicionais directamente violadoras da Constituição.
De todo o modo, mesmo que se entendesse que este Tribunal ainda era competente para conhecer das questões de inconstitucionalidade resultantes do facto de se ter procedido a uma constitucionalmente vedada integração analógica ou a uma «operação equivalente», designadamente a uma interpretação «baseada em raciocínios analógicos» (cfr. declaração de voto do Consº Sousa e Brito ao citado Acórdão nº 634/94, bem como o já mencionado Acórdão nº 205/99), o que sempre se terá por excluído é que o Tribunal Constitucional possa sindicar eventuais interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade.
Aliás, se assim não fosse, o Tribunal Constitucional passaria a controlar, em todos os casos, a interpretação judicial das normas penais (ou fiscais), já que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (ou fiscal). E, em boa verdade, por identidade lógica de raciocínio, o Tribunal Constitucional, por um ínvio caminho, teria que se confrontar com a necessidade de sindicar toda a actividade interpretativa das leis a que necessariamente se dedicam os tribunais – designadamente os tribunais supremos de cada uma das respectivas ordens -, uma vez que seria sempre possível atacar uma norma legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu
«sentido natural» (e qual é ele, em cada caso concreto?), com base em violação do princípio da separação de poderes, porque mero produto de criação judicial, em contradição com a vontade real do legislador; e, outrossim, sempre que uma tal interpretação atingisse norma sobre matéria da competência legislativa reservada da Assembleia da República, ainda se poderia detectar cumulativamente, nessa mesma ordem de ideias, a existência de uma inconstitucionalidade orgânica.
Ora, um tal entendimento - alargando de tal forma o âmbito de competência do Tribunal Constitucional - deve ser repudiado, porque conflituaria com o sistema de fiscalização da constitucionalidade, tal como se encontra desenhado na Lei Fundamental, dado que esvaziaria praticamente de conteúdo a restrição dos recursos de constitucionalidade ao conhecimento das questões de inconstitucionalidade normativa. Assim, por exemplo, e no caso dos autos, para decidir a questão de inconstitucionalidade, o Tribunal Constitucional seria, em primeira linha, chamado a resolver as controvérsias doutrinais respeitantes à factualidade típica do crime de burla (cfr., verbi gratia, José de Sousa e Brito, A burla do artigo 451º do Código Penal – Tentativa de sistematização, Scientia Ivridica, Tomo XXXII, 1983, págs. 131 e segs.; e Maria Fernanda Palma e Rui Pereira, O Crime de Burla no Código Penal de 1982-95, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXV, 1994, págs. 321 e segs.).
Ora, assim sendo, no caso vertente, em que nem sequer ocorreu uma integração analógica ou «operação equivalente», mas uma mera interpretação da lei que vem contestada pelo recorrente, tem necessariamente de se concluir pela inexistência de uma questão de inconstitucionalidade normativa de que o Tribunal deva conhecer.
B. A questão de inconstitucionalidade dos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal
a. Delimitação do âmbito dos recursos
54. Restam, pois, as questões de inconstitucionalidade relacionadas com a eventual alteração, na decisão condenatória, de factos constantes da pronúncia (e da acusação), sendo que o recorrente F... localiza a questão de inconstitucionalidade no artigo 358º do Código de Processo Penal, enquanto o recorrente J..., por seu turno, a reporta ao conjunto normativo formado pelos artigos 1º, nº 1, alínea f), 359º e 379º do mesmo diploma.
Relativamente ao artigo 358º do CPP, a questão de inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente F... tem por objecto a norma em causa naquela interpretação que admite a relevância de factos - não constantes da acusação e da pronúncia - que hajam sido introduzidos ou alterados pela sentença condenatória, sem que ao arguido tenha sido concedida a oportunidade de sobre eles se manifestar ou apresentar a sua defesa. A mencionada norma, com esta interpretação, entraria m colisão com o princípio do contraditório, consignado no artigo 32º, nº 5, da Constituição.
A norma impugnada, na redacção em vigor à data da sentença e do acórdão recorrido (isto é, na redacção anterior às alterações que lhe vieram a ser introduzidas pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto), estabelece o seguinte:
Artigo 358º
(Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia)
1. Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
2. Ressalva-se o disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.
Muito embora este Tribunal não detenha competência para proceder à apreciação da matéria fáctica, nem tão-pouco para proceder à apreciação da sua qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal a quo - e sem entrar, portanto nesse tipo de apreciação ou de revisão -, importa todavia aqui explanar o enquadramento da matéria de facto em que o recorrente se sustenta, sob pena de se não compreender a própria questão de inconstitucionalidade colocada.
Pois bem, as alegadas alterações de factos entre a pronúncia e o acórdão condenatório, tal como o recorrente as enumera e concretiza, terão sido as seguintes:
a) os factos descritos nos nºs 173 e 174 do acórdão alteram a identificação dos agentes – na pronúncia referidos como «os arguidos», no acórdão passou a ser apenas o recorrente –, bem como o titular do direito à comissão de agência – na pronúncia referem-se os arguidos, no acórdão é a PA, Lda -, e ainda a natureza dessa comissão de agência – limitada agora aos custos reais dos preços apresentados, e já não referida como remuneração da campanha publicitária (cfr. fls. 24 a 26 da motivação de recurso);
b) os factos descritos nos nºs 173 e 181 do acórdão introduzem a referência a «custos de produção e distribuição», em vez de «custos de campanha», como base de cálculo da comissão de 15% a título de remuneração pelos serviços prestados pela PA, Lda, relativamente à campanha publicitária para o Hospital S. Francisco Xavier (cfr. fls. 27 da motivação);
c) o nº 189 do acórdão alterou também a referência feita na pronúncia aos agentes – onde se referiam «os arguidos» passou a referir-se a PA, Lda – bem como aos custos «reais» e ao conhecimento – qualificado de «erróneo» na pronúncia, mas já não no acórdão condenatório – do próprio Estado quanto a esses custos e à intenção de prestação dos serviços pela PA, Lda (cfr. fls. 28-29 da motivação);
d) a propósito de contradições entre os próprios factos provados no acórdão, o recorrente entende ainda que a referência introduzida pelos nºs 190,
191 e 202 ao «propósito» dos arguidos em não cumprirem as propostas apresentadas
é um facto novo, pois na pronúncia não constava qualquer facto do qual se pudesse concluir tal intenção, só estando atribuído ao recorrente um propósito de lucro (cfr. fls. 29 a 32 da motivação);
e) por fim, o nº 207 do acórdão, na sua totalidade, descreve um facto totalmente novo, sem qualquer correspondência na pronúncia, e, no entender do recorrente, trata-se de «uma conclusão elevada à categoria de facto» (cfr. fls.
34 da motivação): «Na mesma altura, ainda aqueles arguidos fizeram sua a quantia de 116 018 555$40, incluindo IVA, que o Estado pagou à PA, Lda na convicção de que era esse o custo de produção e distribuição das campanhas publicitárias, quando tal custo foi apenas de 66 681 038$30, incluindo IVA».
55. O recorrente J..., por sua vez, suscitou a questão de inconstitucionalidade do artigo 359º, conjugado com o artigo 1º, nº 1, alínea f) e com o artigo 379º, alínea b), do CPP.
As disposições em causa são do seguinte teor:
Artigo 1º
(Definições legais)
1. Para efeitos do disposto no presente Código considera-se:
[...]
f) Alteração substancial dos factos: aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis;
[...]
Artigo 359º
(Alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia)
1. Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso; mas a comunicação da alteração ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos.
2. Ressalvam-se do disposto no número anterior os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.
3. Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a dez dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.
Artigo 379º
(Nulidade da sentença)
1. É nula a sentença:
[...]
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos
358º e 359º.
[...]
O recorrente J... suscitou a questão de inconstitucionalidade destas normas, quando interpretadas «no sentido de o arguido poder ser condenado por crime fundamentado em factos absolutamente não constantes da pronúncia». Como referiu na motivação de recurso:
[...] diante desse acórdão é o ora recorrente inteiramente surpreendido com um facto absolutamente novo que nele se considera, e com o qual nunca fora antes confrontado, nem na acusação nem n a pronúncia.
É que o acórdão em exame vem agora a considerar que, afinal, o crime de burla haveria sido cometido através de um modus operandi completamente diverso: já não através da dita intenção de não cumprir a totalidade da prestação, mas através do empolamento de preços, pelo seu artificial agravamento de custos e manipulação da base de incidência sobre a qual haveria de recair uma devida comissão de agência.
Ou seja, factos que não eram criminosos em face da descrição da pronúncia – no caso o suposto empolamento de preços e custos – passaram a sê-lo em face do acórdão condenatório.
Pretende, portanto, o recorrente que a descrição factual constante da pronúncia, e perante a qual preparou a sua defesa, configurava um determinado modus operandi do crime de burla, enquanto os factos considerados provados pelo acórdão condenatório (concretamente, o «empolamento» de preços e custos) vieram a configurar uma outra forma de comissão do referido crime, e pela qual veio a ser condenado; e isto, sem que lhe tivesse sido sequer concedida qualquer oportunidade, enquanto arguido, para preparar e apresentar a sua defesa relativamente a essa outra forma de comissão daquele mesmo crime de burla.
É, pois, essa interpretação da norma – no sentido de permitir a condenação do arguido pela prática do crime de que vinha acusado, mas através da descrição de um modus operandi diverso, resultante da alteração de factos introduzida pela decisão condenatória – que o recorrente impugna. Mais concretamente, impugna tal interpretação na medida em que não considera como alterações substanciais as alterações dos factos que, não tendo por efeito a imputação de crime diverso ao arguido, nem a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (artigo 1º, nº 1, alínea f), do CPP), todavia configurem um diverso modo de comissão ou prática do mesmo crime, relativamente ao que vinha configurado na pronúncia ou na acusação.
56. Perante este quadro, o STJ considerou, no acórdão recorrido, que se não havia verificado qualquer alteração dos factos – fosse ela uma alteração substancial ou uma alteração não substancial - e que do que se tratara fora apenas de esclarecer os factos da pronúncia, com recurso a factos constantes das propostas e das facturas apresentadas ao Ministério da Saúde, bem como dos relatórios periciais para os quais aquela mesma pronúncia remetia, sendo certo que os arguidos não poderiam deixar de ter em conta «tais documentos instrumentais».
Concluiu o STJ, assim, que se não verificara qualquer violação do artigo 32º, nº 5, da Constituição, até porque o artigo 358º prevê expressamente que o juiz deva dar conhecimento ao arguido de qualquer alteração não substancial, concedendo-lhe o tempo necessário para preparar a sua defesa de acordo com tal alteração.
O STJ entendeu, portanto, que as alterações apontadas pelos recorrentes, para além das resultantes dos esclarecimentos decorrentes dos depoimentos prestados em audiência e da análise das propostas e facturas, se retiravam nomeadamente dos elementos contidos nos relatórios periciais - seguramente os relatórios periciais nº 1/90 e nº 13/90, integrados no apenso 'M' ao processo, a que se referem quer a acusação, no seu artigo 295º, quer a pronúncia (fls. 12559). Ou seja, o STJ terá entendido que, muito embora o acórdão condenatório referisse elementos ou factos constantes daqueles relatórios periciais ou de outros documentos juntos aos autos, e sendo certo que tais factos se não encontravam textualmente descritos na pronúncia, a verdade é que eles não poderiam ser considerados «factos novos», nem sequer constituir alteração dos factos constantes da pronúncia, uma vez que essa mesma pronúncia mencionava e remetia expressamente para aqueles meios de prova.
Neste sentido, escreveu-se no acórdão recorrido, relativamente ao recurso do recorrente J...:
Ora, o Colectivo, com o fim evidente de pormenorizar tanto quanto possível a imagem da realidade colhida na audiência, introduziu um ou outro facto instrumental que em nada interfere na incriminação e que não se afasta relevantemente do conteúdo da acusação e da pronúncia, em termos de surpreender os arguidos e de lhes diminuir as suas garantias de defesa.
Isto tanto mais que quer a acusação quer a pronúncia tinham como apoio constante as propostas e facturas apresentadas ao Ministério da Saúde e bem assim os relatórios periciais que sobre elas incidiram – tudo documentos conhecidos pela defesa e que o tribunal tinha o dever de examinar e ponderar.
E, da mesma forma, esclareceu-se relativamente ao recurso do recorrente F...:
Tratou-se apenas de explicitar mais claramente os factos da pronúncia, com recurso a factos constantes de documentos (v.g. relatórios periciais) que a suportam e que dela não extravasam, não podendo o arguido deixar de organizar a sua defesa tendo em conta tais documentos instrumentais, sem que o seu conteúdo – analisado em julgamento – possa constituir surpresa para ele.
Absurdo seria, de resto, que se exigisse que a pronúncia descrevesse o conteúdo de todos os documentos em que se apoia, tornando-a uma peça inextricável.
E de nada serviria o artigo 368º, nº 2 do Cód. P. Penal, quando permite que o tribunal dê como provados factos resultantes da discussão da causa.
57. Embora revertendo-a a diferentes disposições do CPP – num caso, a relativa a alterações não substanciais, no outro, a referente a alterações substanciais – a questão abordada pelos recorrentes é, no essencial, a mesma. Com efeito, o que ambos contestam, face às garantias constitucionais em matéria de processo penal, é a possibilidade de inclusão, no acórdão condenatório, entre os factos dados como provados, de factos que não constavam especificadamente da pronúncia, muito embora se pudessem eventualmente extrair de documentos juntos aos autos – designadamente das propostas e facturas, bem como dos relatórios periciais nºs 1/90 e 13/90, constantes do apenso «M» – que suportavam essa mesma pronúncia.
O que importa, pois, saber em primeiro lugar é se um circunstancialismo como o dos autos, e que se acabou de referir, pode ser, à luz da Constituição, inteiramente excluído do regime processual a que se encontram sujeitas as alterações dos factos, regime que se encontra delineado nos artigos
358º e 359º do CPP. Assinale-se, portanto, que determinar se ocorreu uma alteração substancial dos factos ou antes uma alteração não substancial dos factos constitui, assim, neste contexto, um aspecto irrelevante para o efeito do presente recurso de constitucionalidade – não cabendo, obviamente, ao Tribunal Constitucional substituir-se nesse ponto ao Supremo Tribunal de Justiça, ao qual sempre competirá, em cada caso concreto, proceder com anterioridade a essa qualificação jurídica (sobre os conceitos de alteração substancial e de alteração não substancial e respectiva distinção, cfr. Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, Coimbra, 1992, págs. 100-153; Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal, Coimbra, 1983, págs. 394-418; Manuel Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, Lisboa, 1986, págs. 233-238 e O direito de punir – Abuso de confiança e convolação – Atenuação extraordinária, Scientia Juridica, tomo XV,
1966, nº 78, pág. 158 e nºs 79/80, pág. 337; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Lisboa, 1994, págs. 265-275; M. Marques Ferreira, Da alteração dos factos objecto do Processo Penal, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano I, fasc. 2, Abril-Junho 91, págs. 221-239; António Quirino Duarte Soares, Convolações, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano II, tomo III-1994, pág. 14; Teresa Pizarro Beleza, As Variações do Objecto do Processo no Código de Processo Penal de Macau, Revista Jurídica de Macau, vol. IV, nº 1, Janeiro/Abril-1997; António Leones Dantas, A definição e evolução do objecto do processo no processo penal, Revista do Ministério Público, ano 16º, Julho/Setembro 1995, nº 63, pág. 89; Gil Moreira dos Santos, A Estabilidade Objectiva da Lide em Processo Penal, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 2, Fasc. 4, Outubro-Dezembro 1992, pág. 593); Mário Tenreiro, Considerações sobre o objecto do processo penal, Revista da Ordem dos Advogados, ano 47º, pág. 997); José Souto de Moura, Notas sobre o objecto do processo (a pronúncia e a alteração substancial dos factos), Revista do Ministério Público, ano 12º, nº 48, pág. 41); e, ainda, o Acórdão do STJ de 23 de Abril de 1992, Colectânea de Jurisprudência, ano XVII, tomo 2, pág. 22; o Acórdão do STJ de 11 de Novembro de 1992, Boletim do Ministério da Justiça, nº 421, pág. 309; e o Acórdão do STJ de 9 de Novembro de 1990, Boletim do Ministério da Justiça, nº
401, pág. 443).
Daí que se afigure ser consequentemente irrelevante a inclusão, no
âmbito do presente recurso, da questão de inconstitucionalidade da norma do artigo 1º, nº 1, alínea f), do CPP, cujo único sentido e alcance consiste exactamente em determinar a linha de fronteira entre as alterações substanciais e as alterações não substanciais dos factos. Dela, portanto, não se conhecerá, até porque não foi aplicada pela decisão recorrida: o STJ, ao considerar não ter ocorrido qualquer «alteração dos factos», não foi logicamente apreciar se existia uma «alteração substancial» dos mesmos.
58. Igualmente irrelevante é a apreciação da questão de inconstitucionalidade da norma do artigo 379º, nº 1, alínea b), do mesmo CPP, na medida em que a mesma carece de qualquer autonomia na economia da pretensão processual do recorrente. É que, sendo indiscutível que a norma em causa sanciona com a nulidade o incumprimento dos ritualismos previstos nos artigos
358º e 359º, o que importa saber é se estes – ou, antes, um deles - deveriam ter sido desencadeados, por a respectiva interpretação impor a verificação da existência de uma «alteração dos factos».
Aliás, também esta norma não foi objecto de aplicação pelo acórdão sob recurso, nem mesmo na perspectiva da determinação do âmbito negativo de aplicação da mesma norma, uma vez que o STJ não considerou verificado aquele que, segundo o próprio recorrente, seria o seu pressuposto de aplicação no caso vertente – a alteração dos factos constantes da pronúncia. Só assim não aconteceria no caso de se haver concluído pela existência de uma tal alteração, mas se considerasse que o não cumprimento dos procedimentos estabelecidos na lei para tais situações não acarretaria uma nulidade.
Nesta conformidade, também não há que conhecer da questão de inconstitucionalidade da norma em causa.
59. A questão que se coloca, na verdade, ao Tribunal Constitucional,
é tão-só a que resulta de, no entendimento do acórdão recorrido, não caber no conceito de «alteração dos factos» descritos na pronúncia, à luz das relações entre esta e a sentença, a inclusão, entre os factos dados como provados no acórdão condenatório, de factos ou elementos eventualmente constantes ou decorrentes dos relatórios periciais ou de outros documentos, mas não especificadamente descritos na mesma pronúncia. Isto, porque daí pode resultar a inconstitucionalidade das normas atinentes, quando assim interpretadas.
Com efeito, sem que aos arguidos fosse concedida a oportunidade de sobre eles se pronunciarem ou apresentarem a sua defesa, factos assim apurados terão sido dados como provados na súmula ou análise sintética efectuada no acórdão condenatório, no momento em que aí se passou a proceder à aplicação do direito aos factos (fls. 17202):
Porém, os arguidos naquelas propostas não indicaram o valor real dos trabalhos de produção e distribuição das campanhas, antes indicaram valores muito superiores, o que fez aumentar também o valor da comissão de agência, de forma indevida.
Concretizando melhor.
De acordo com a pronúncia, em resumo, e no que respeita ao crime de burla agravada decorrente da questão das «campanhas publicitárias», a comissão de agência estipulada pelos arguidos encontrava-se já quantificada nas propostas apresentadas, sendo calculada com base numa percentagem de 15% sobre o montante efectivo dos custos reais das campanhas, custos esses também já quantificados nas propostas, elaboradas na sequência de um estudo efectuado por um dos arguidos, «com base nas tabelas em vigor nos mass-media». Por outro lado, o Estado terá efectuado o pagamento do preço global das campanhas, no convencimento erróneo de que era aquele o custo real dos serviços descritos nas propostas e que os arguidos os tinham prestado ou que, no mínimo, tinham intenção séria de os prestar. Todavia, sempre segundo a pronúncia, os arguidos nunca tinham tido essa intenção de efectuar a totalidade dos serviços descritos
(cfr. fls. 12551 a 12557).
Do teor da mesma pronúncia resulta claro que se atribui aos arguidos a intenção de «se apoderarem de avultadas quantias a que sabiam não ter direito», por das propostas apresentadas constarem acções de campanha que nunca efectuaram, nem tiveram alguma vez a intenção de fazer levar a cabo. Mas já não se lhes encontra expressamente atribuída a intenção de enganar o Estado, apresentando para cada acção de campanha um valor discriminado superior ao real. Ao invés, na parte da decisão instrutória introdutória à pronúncia, procura-se esclarecer – em resposta ao parecer do Prof. Jorge de Figueiredo Dias - por que razão se encontra indiciada a prática de um crime de burla agravada, assinalando-se apenas:
a) que «as comissões pagas pelo Estado são superiores porque calculadas com base em trabalhos (filmes institucionais) que nunca foram realizados nem sequer existiu intenção de os realizar» (fls. 12507);
b) que ocorreu «uma forte intenção ab initio de não realização de alguns dos serviços contratados, sendo que é «essa intenção prévia de não cumprimento que configura precisamente o elemento subjectivo da burla – o dolo»
(fls. 12508).
No que respeita ao acórdão condenatório – e não tanto no articulado dos factos dados como provados, quanto na já referida súmula ou análise sintética – já se apresenta como claro, como acima se assinalou, que existiu também um «empolamento» dos preços das campanhas, para assim se potenciar um aumento do valor das comissões de agência. Essa conclusão terá resultado, desde logo, de não se ter dado como provado um facto constante da pronúncia, mas claramente favorável aos arguidos – o de que «o custo dos trabalhos discriminados no estudo apresentado» por um deles, «tinha por base as tabelas em vigor nos mass-media» (cfr. nº 65, a fls. 17098).
O certo, porém, é que esse circunstancialismo foi tido como decisivo para a caracterização da conduta dos arguidos enquanto crime de burla, quer salientando-se as diferenças detectadas entre os custos constantes das propostas e os custos efectivos, com remissão exclusiva e expressa para relatórios periciais (cfr. fls. 17206), quer afirmando-se taxativamente que «se tivesse havido todo o cuidado necessário, [...] – no mínimo através da verificação dos preços de produção e distribuição apresentados, para saber da sua conformidade com aqueles que os meios produtores e distribuidores cobrariam e do controle do material produzido e distribuído – não teria havido um prejuízo» (fls. 17207); e, por isso, se sublinhou (fls. 17208):
Na verdade, como anteriormente se referiu, em função das propostas apresentadas ao Ministério da Saúde, os arguidos não podiam cobrar do Estado aquele montante, pois os custos de produção e distribuição, que apresentavam, bem sabiam serem completamente fictícios e nunca tiveram intenção de prestar todos os serviços que indicavam.
Ora, a verdade é que a referência a um tal agravamento fictício, nas propostas apresentadas, dos custos de produção e distribuição só se poderia eventualmente encontrar na pronúncia – e de forma meramente implícita - através da remissão para os relatórios periciais, quando nessa mesma pronúncia se refere
(fls. 12559):
Daí que se tenham logrado apoderar e fazer sua a quantia de
59.646.613$40 – relatórios periciais nºs 1 e 13/90 a fls. 9 e 422 do apenso «M», que se dão como reproduzidos.
Ora, nos termos dos referidos relatórios periciais, a verba em causa traduz a diferença entre os custos das campanhas publicitárias efectivamente pagos pelo Estado e os respectivos custos reais. Todavia, a pronúncia não explicita esse facto, nem dá conta que os arguidos tenham propositadamente inflacionado os custos constantes das propostas, com a intenção de se apoderarem de verbas a que não tinham direito.
De resto, desta mera remissão para os relatórios periciais, terá resultado alguma oscilação na determinação do montante da burla por que os arguidos vieram a ser condenados, oscilação que se sublinha no voto de vencido junto ao acórdão do Supremo:
- o facto de os arguidos se terem logrado apoderar e fazer sua a quantia de 59.646.613$40, viria a ser dado como não provado no acórdão condenatório (nº 74 dos factos não provados da pronúncia, a fls. 17099);
- foi, em contrapartida, dado como provado que os arguidos se lograram apoderar e fazer coisa sua a quantia total de 56.738.144$40, correspondente à diferença entre o valor pago pelo Estado – 133.421.338$20 – e o custo real das campanhas – 76.683.194$00 (nº 208 dos factos provados da pronúncia e das contestações, na parte com aqueles directamente relacionados, a fls. 16976);
- todavia, não deixou de ser igualmente dado como provado que «o valor global das três campanhas foi de 133.421.338$00» e que «o Ministério da Saúde comprou a realização das três campanhas pelo preço fixo de 133.421.338$00»
(nº 201 e nº 202 dos factos provados da contestação do arguido F..., a fls.
17039/17040).
Aliás, como se deu já conta anteriormente, a relevância de um outro modus operandi – consistente no referido agravamento fictício dos custos de produção e distribuição nas propostas apresentadas – não resultará sequer imediatamente dos factos dados como provados no acórdão condenatório (onde decorrerá tão-só implicitamente do cálculo do montante da burla), mas antes resultará apenas, de forma inteiramente perceptível, da análise sintética da factualidade provada a que o mesmo acórdão procede, para aplicar o direito aos factos. Neste contexto, é particularmente significativa a circunstância de o STJ, no acórdão recorrido, quando procede à densificação da factualidade provada para efectuar o respectivo enquadramento jurídico, não ter podido remeter para o articulado dos factos provados, constante da decisão da primeira instância, os elementos integradores daquele modus operandi, ao invés do que aconteceu relativamente aos elementos que se reportavam ao outro modus operandi, ou seja, ao modus operandi expressa e explicitamente descrito na pronúncia (fls. 19293 vº/19294):
[ …] Esse plano, relativo às campanhas informativas de que fala o n.
124, desenvolvido através das manobras descritas nos n.ºs 125 a 201, com aproveitamento da enorme confiança que o F... conseguiu granjear junto da então Ministra da Saúde (n. 127), para mais irmã do recorrente, teve por objecto criar junto do Ministério «a aparência de que as campanhas iriam ser efectuadas nos termos propostos e que vieram a ser aprovados» (n. 191), sendo certo que «nunca os arguidos» tiveram o propósito de efectuar a totalidade dos serviços que se propuseram fazer (n.ºs 190, 202 e 203) e que o plano de custos que apresentaram contabilizava estes em montantes muito superiores aos custos reais dos meios que se propunham empregar; [ …]
60. Sublinhe-se, finalmente, tendo em conta algumas das supostas alterações dos factos apontadas pelo recorrente F..., que liminarmente se exclui a eventual inconstitucionalidade das normas em causa enquanto interpretadas no sentido de se não considerar como alteração dos factos a consideração no acórdão condenatório de factos que se afastam da pronúncia tão-só em decorrência de nem toda a factualidade nesta descrita ter vindo a ser dada como provada na audiência de julgamento, ou então porque os factos provados constituem uma redução relativamente aos factos constantes da própria pronúncia (cfr. Acórdão nº 330/97, Diário da República, II Série, de 3 de Julho de 1997).
E idêntica solução se há-de adoptar relativamente àquelas alterações de facto, relativas a aspectos não essenciais, manifestamente irrelevantes para a verificação da factualidade típica ou da ocorrência de circunstâncias agravantes, isto é, que se não apresentem «com relevo para a decisão da causa»
(assim o tem entendido também o STJ, citando-se, entre outros, o Acórdão de 3 de Abril de 1991, Boletim do Ministério da Justiça, nº 406, pág. 287; o Acórdão de
11 de Novembro de 1992, Boletim do Ministério da Justiça, nº 421, pág. 309; e o Acórdão de 19 de Outubro de 1995, no processo nº 48271, www.dgsi.pt, nº convencional JSTJ00029484).
Nesta conformidade, e reduzindo consequentemente os pedidos dos recorrentes, a única questão que o Tribunal Constitucional é verdadeiramente chamado a resolver consiste em saber se as normas contidas nos artigos 358º e
359º do CPP, quando interpretados no sentido de se não entender como alteração dos factos – substancial ou não substancial - a consideração, na sentença condenatória, de factos atinentes ao modo de execução do crime, que, embora constantes ou decorrentes dos meios de prova juntos aos autos, não se encontravam especificadamente enunciados, descritos ou discriminados no texto da pronúncia (e da acusação), a qual todavia expressamente remetia para esses mesmos meios de prova, serão conformes com as garantias de defesa em processo penal e com os princípios do acusatório e do contraditório, de acordo com o que se preceitua no artigo 32º da Constituição da República.
b. O quadro constitucional e jurisprudencial e a vinculação temática
61. No seu artigo 32º, a Constituição da República Portuguesa estabelece, entre os direitos, liberdades e garantias pessoais, as Garantias de processo criminal.
Nos termos do preceituado nesse artigo 32º, «o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso» (nº 1), sendo que o mesmo «processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório» (nº 5).
A propósito do princípio acusatório, dizem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira que ele «é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal» e «uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial», significando essencialmente que «só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento» (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. revista, Coimbra Editora, 1993, nota IX ao artigo
32º, pág. 205).
Relativamente ao princípio do contraditório, assinalam os mesmos comentadores que ele implica o dever «de o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão», bem como o «direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão», e ainda o «direito do arguido de intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo», sendo certo que «o princípio abrange todos os actos susceptíveis de afectar a sua posição» (ibidem, nota X ao artigo 32º, pág. 206).
62. Os princípios do acusatório e do contraditório, enquanto princípios estruturantes do processo penal, movem-se necessariamente no quadro de um sistema processual que tem também – como vimos – de assegurar todas as garantias de defesa, ou seja, no quadro de um processo penal justo e equitativo.
Escreveu-se no Acórdão nº 172/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 22º vol., págs. 350), acerca das garantias de defesa do arguido:
O processo penal há-de, assim, configurar-se - como se disse já - em termos de ser 'um due process of law, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido' (cf. acórdão deste Tribunal nº 61/88, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 375, p. 138; cf. também o já citado acórdão nº
393/89).
[...]
O princípio do contraditório, encarado do ponto de vista do arguido, pretende, antes de mais, realizar, o seu direito de defesa. 'A máxima audiatur et altera pars ou ne absens damnetur' é, justamente, no dizer de EDUARDO CORREIA,' a expressão', nesse sentido, 'do princípio do contraditório' (Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 110º, p. 99).
Dizendo com a Comissão Constitucional, no seu Parecer nº 18/81, publicado em Pareceres da Comissão Constitucional, volume 16º, p. 147: o sentido essencial do princípio do contraditório 'está, de uma forma mais geral, em que nenhuma prova deve ser aceite em audiência, nem nenhuma decisão (mesmo só interlocutória) deve aí ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade, ao sujeito processual contra o qual é dirigida, de a discutir, de a contestar e de a valorar'.
A descoberta da verdade material em processo penal há-de, portanto, necessariamente compaginar-se com aquelas garantias de defesa do arguido. E assim se reconhecerá, como corolário do princípio do acusatório, o da vinculação temática do tribunal e da correlação entre a acusação (e a pronúncia) e a sentença.
63. Como realça Jorge Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, Coimbra, 1974, pág. 45), a concepção típica de um «processo acusatório» implica a «estrita ligação do juiz pela acusação e pela defesa», em sede de determinação do objecto do processo como em sede de poderes de cognição e dos limites da decisão.
E, mais adiante (id., pág. 145), acerca da vinculação temática do tribunal, como efeito consubstanciador dos princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal, afirma este autor:
Deve pois firmar-se que objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal [...] e a extensão do caso julgado.
Como também se pode ler no Acórdão nº 173/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 22º vol., págs. 361):
A questão não pode ser apresentada ao tribunal para julgamento sem que tenha sido previamente delimitado o seu objecto num documento
(a acusação, ou requerimento acusatório) que indique os factos de que o arguido
é acusado e qual o seu enquadramento jurídico-penal (esta questão está sistematicamente concatenada com o princípio da legalidade vigente em direito penal substantivo, do qual decorre a necessidade de fixação prévia de um determinado quadro fáctico e de uma determinada moldura penal adequada a esse quadro fáctico); por vezes, exige-se até que um juiz se pronuncie previamente sobre essa acusação (através da pronúncia) antes de a questão ser apresentada ao tribunal do julgamento. Mas a acusação não basta, porque é preciso dar também ao arguido a possibilidade de produzir ele próprio um documento (a contestação) que contrarie o anterior.
Em segundo lugar, o princípio da correlação entre acusação e sentença. Como a acusação fixa o objecto do processo, o julgamento incide sobre a matéria da acusação e o tribunal não pode, por sua iniciativa, ou por iniciativa da parte acusadora, apreciar questões diversas das descritas na acusação, julgar um arguido por factos que foram atribuídos a outro, nem muito menos julgar pessoas nela não indicadas. Uma norma legal que o permitisse violaria este princípio processual penal.
Como assinala António Quirino Duarte Soares (ibidem), do «princípio da acusação (segundo o qual é esta que define e fixa perante o juiz o objecto do processo)» decorre logicamente um outro princípio, corolário do primeiro - «tal princípio é o da identidade do objecto do processo, que representa a ideia de que o objecto da acusação se deve manter idêntico, o mesmo, desde aquela, até à sentença final».
Ora, este princípio da identidade do objecto do processo significa, desde logo, que a correlação entre a acusação e a pronúncia se há-de prolongar numa necessária correlação entre a pronúncia e a sentença. Quando esta imputar ao arguido factos absolutamente novos, estranhos ao objecto do processo, tal como este resulta da pronúncia, ainda aí se estará, pois, perante uma ofensa ao princípio do acusatório.
64. De resto, o Tribunal Constitucional tem-se por diversas vezes debruçado sobre esta temática, no âmbito das garantias de defesa do arguido, não apenas nos já citados Acórdão nº 172/92, Acórdão nº 173/92 e Acórdão n 330/97, mas também no Acórdão nº 279/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31º vol., págs. 389 e segs.), no Acórdão nº 16/97 (Diário de República, II Série, de 28 de Fevereiro de 1997), no Acórdão nº 130/98 (Diário da República, II Série, de 7 de Maio de 1998) e no Acórdão nº 442/99 (inédito), entre outros.
No quadro dessa numerosa jurisprudência, o Tribunal já teve ocasião de apreciar as normas dos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal. Fê-lo sempre, todavia, e até ao momento, apenas do ponto de vista da conformidade constitucional da mera alteração da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido, designadamente no que se refere ao respeito pelo princípio do contraditório.
Assim, afirmou-se, a este propósito, no já mencionado Acórdão nº
330/97:
O 'direito a ser ouvido', enquanto direito a dispor de oportunidade processual efectiva de discutir e tomar posição sobre quaisquer decisões, particularmente as tomadas contra o arguido, integra as garantias de defesa, no que à respectiva estratégia respeita, de outro modo se violando o princípio do contraditório. Compreende-se que assim seja uma vez que, em princípio, a faculdade de alteração da incriminação constante da acusação, se operada sem ao arguido se dar ensejo de a conhecer e de organizar a sua defesa em função da mesma, pode-lhe causar grave prejuízo (neste sentido, para além dos arestos citados, mencionem-se inter alia, os acórdãos nºs. 402/95, 22/96 e
596/96, publicados no Diário da República, II Série, de 16 de Novembro de 1995,
17 de Maio e 6 de Julho de 1996, respectivamente).
No presente recurso já não importa, porém, apurar em que medida é constitucionalmente possível proceder à alteração das qualificações jurídicas, mas antes em que casos se está perante uma verdadeira alteração de factos e em que medida é lícito efectuar tais alterações de factos, sem que se mostrem violados os referidos princípios do acusatório e do contraditório ou as garantias de defesa do arguido.
65. Uma tal averiguação exige, portanto, no presente recurso, que se venha a dar resposta a duas questões distintas que, no caso dos autos, se encontram ocasionalmente associadas: o por um lado, saber se já deve ser tida como uma efectiva alteração dos factos – tendo em conta o princípio do acusatório e as garantias de defesa do arguido - a consideração, na sentença condenatória, de factos que, não se encontrando descritos na pronúncia, se podem contudo extrair de documentos anexos para os quais aquela mesma pronúncia remetia; o e, por outro lado, determinar se a consideração, na sentença condenatória, de um outro modus operandi, distinto do descrito na pronúncia, constitui uma alteração da base factual a justificar, em aplicação das garantias de defesa do arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório, que lhe seja dada oportunidade de se pronunciar sobre a mesma.
c. A descrição dos factos na pronúncia
66. No tocante à primeira questão enunciada, ou seja, a de apurar se deve considerar-se uma alteração dos factos a circunstância de se darem como provados, no acórdão condenatório, certos factos não expressa e explicitamente descritos na acusação e na pronúncia, mas retirados de documentos juntos ao processo como meios de prova, entendeu o Ministério Público que se utilizara na pronúncia e na acusação um método de «simplificação», dando por integralmente reproduzidas as propostas e facturas que os arguidos apresentaram ao Ministério da Saúde – e que, desta forma, ao ser assim reproduzido, «através de menção expressa», o teor desses documentos integrava aquelas pronúncia e acusação.
O artigo 283º, nº 3, alínea b), do CPP, determina:
3. A acusação contém, sob pena de nulidade:
[...]
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
[...]
Estas exigências quanto ao conteúdo da acusação são igualmente aplicáveis ao despacho de pronúncia, por força do preceituado no artigo 308º, nº
2, do mesmo código.
Por outro lado, estas mesmas exigências – no que se reporta à necessidade de uma narração dos factos penalmente censuráveis - podem ser mesmo vistas, para além do mais, como uma decorrência lógica do princípio da vinculação temática, já que só desse modo a acusação pode conter os limites fácticos a que fica adstrito o tribunal no decurso do processo (cfr. António Barreiros, Manual de Processo Penal, Universidade Lusíada, 1989, pág. 424). Ou seja, a narração dos factos que constituem os elementos do crime deve ser suficientemente clara e perceptível não apenas, por um lado, para que o arguido possa saber, com precisão, do que vem acusado, mas igualmente, por outro lado, para que o objecto do processo fique claramente definido e fixado.
Significa isto que a acusação – e a pronúncia - deve conter, ainda que de forma sintética, a descrição dos factos de que o arguido é acusado, efectuada «descriminada e precisamente com relação a cada um dos actos constitutivos do crime», pelo que se hão-de mencionar «todos os elementos da infracção» e quais «os factos que o arguido realizou» (Luís Osório, Comentário ao Código de Processo Penal, 4º vol., Coimbra Editora, 1933, nota VII ao artigo
359º, pág. 494, e nota VIII ao artigo 366º, pág. 531), sendo perante este quadro e esta factualidade que o mesmo arguido deve elaborar a sua estratégia de defesa e que a acusação define e fixa o objecto do processo, limitando a actividade cognitiva e decisória do tribunal (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., págs. 144).
Como sublinha António Leones Dantas (Os factos como matriz do objecto do processo, Revista do Ministério Público, nº 70, ano 18º, Abril/Junho
1977, págs. 111 e segs.), é essencial a descrição dos factos «que integram todos os elementos de algum crime», já que, «para que a acusação desempenhe a sua função processual – delimitando a factualidade de que o arguido é acusado – mostra-se necessário que a descrição nela feita evidencie de uma maneira precisa e imediatamente intelegível aquilo que é imputado ao arguido»; sendo este «o destinatário da acusação», «impõe-se que a entenda, para que face a ela possa organizar a sua defesa».
67. É, assim, imperativo que a acusação e a pronúncia contenham a descrição, de forma clara e inequívoca, de todos os factos de que o arguido é acusado, sem imprecisões ou referências vagas.
Ora, nesta conformidade, efectuar meras remissões para documentos juntos aos autos, sem referência expressa ao seu conteúdo - e, principalmente, sem referir explicitamente o seu significado, porque se não esclarece com precisão qual a conduta criminosa que deles se pretende extrair e que através deles se pretende comprovar - não pode então constituir, como pretende o MP, uma mera «simplificação» da acusação e da correspondente pronúncia, ainda compatível com aquelas exigências de clareza e narração sintética dos factos imputados ao arguido e, consequentemente, com a virtualidade de permitir uma futura condenação também com base nesses factos apenas indirecta e implicitamente referidos, sem que se considere ter verdadeiramente ocorrido uma alteração dos factos, mas tão-só a sua «explicitação», como se sustenta no acórdão recorrido. Com efeito, um tal entendimento afrontará irremissível e irremediavelmente as garantias de defesa do arguido e o princípio do acusatório, assegurados no artigo 32º da Constituição.
E, seguramente por esse motivo, se tem já chamado a atenção «para a necessidade de se conferir o máximo cuidado à sua feitura [da acusação], não apenas no aspecto de explanação geral, como sobretudo na vertente da descrição fáctica, que deve ser suficientemente pormenorizada e precisa, até porque, como se sabe, está legalmente vedada uma alteração substancial dos factos transportados para a acusação» (Simas Santos, Borges de Pinho e Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, 2º vol., 1966, pág. 129, em anotação ao artigo
283º).
Assim sendo, não se pode deixar de concluir que a consideração na sentença condenatória de factos relevantes para a decisão da causa, quando eles apenas constavam indirecta e implicitamente da pronúncia, através da remissão para documentos juntos aos autos (maxime, para relatórios periciais), há-de ter-se necessariamente por uma alteração dos factos, para o efeito do disposto nos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal.
Na verdade, como terminava sugestivamente Silva e Sousa o célebre artigo que publicou em 1949 sobre as Condenações penais de surpresa (Revista dos Tribunais, ano 67º, nº 1604, pág. 306): «nem pronúncias enigmáticas nem condenações de surpresa». E se as condenações de surpresa, noutras situações, se podem considerar erradicadas, em função da lei e da jurisprudência deste Tribunal, é igualmente necessário que se assegure que elas não ocorram na sequência de «pronúncias enigmáticas».
Consequentemente, as normas constantes daqueles preceitos legais – artigos 358º e 359º do CPP - se interpretadas diferentemente, padecerão, na parte atinente, de um vício de inconstitucionalidade.
d. Consideração de distinto modo de execução do crime e alteração dos factos
68. Resta apenas, pois, apurar se a consideração, na sentença condenatória, de um outro modo de execução do crime – de um outro modus operandi
-, distinto do descrito na pronúncia (no caso, distinto do expressa e explicitamente nela descrito), constitui uma alteração da base factual a justificar, em aplicação das garantias de defesa do arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório, que lhe seja dada oportunidade de se pronunciar sobre a mesma. Trata-se, no fundo, de saber se, em tal hipótese, existe - quando se dá como provado um diferente modo de execução do crime - uma alteração dos factos, designadamente uma alteração dos factos «com relevo para a decisão da causa»; recte, se os artigos 358º e 359º do CPP, quando interpretados no sentido de, nesses casos, já não ocorrer uma alteração dos factos, são ainda compagináveis com o preceituado na Constituição em matéria de garantias de defesa e de respeito pelos princípios do acusatório e do contraditório.
Para tal, haveria, em abstracto, que delimitar as fronteiras dentro das quais se pode livremente movimentar o poder de cognição do tribunal, ou seja, determinar até que ponto pode o julgador, no âmbito da sua actividade investigatória, ou de descoberta da verdade material, alterar ou modificar os elementos constantes da acusação e da pronúncia, sem contender com o já mencionado princípio da vinculação temática.
A resposta a esta questão, ainda sempre em abstracto, exigiria, portanto, uma posição face ao problema da determinação do objecto do processo, sendo certo que esta é matéria sobre a qual as posições doutrinárias tradicionalmente se dividem, em função do critério adoptado – um critério naturalista, um critério normativo ou um critério social (entre nós, tais posições doutrinárias são representadas, respectivamente, por Cavaleiro de Ferreira, Eduardo Correia e Figueiredo Dias, sendo certa que é a última a que presentemente parece reunir maior aceitação na abundante doutrina sobre a matéria, a que se fez exaustiva referência a propósito dos conceitos de alteração substancial e de alteração não substancial dos factos).
Todavia, a solução deste problema relevaria, sobretudo, para apurar a distinção entre factos absolutamente novos, totalmente alheios ao objecto do processo, alteração substancial dos factos e alteração não substancial dos factos. Ora, uma vez que, por um lado, os recorrentes não questionam que tivesse podido ocorrer uma alteração dos factos – no máximo, um deles entende que se deveriam seguir os termos do disposto no artigo 359º - e que, por outro lado, neste recurso não cumpre ao Tribunal Constitucional – como se viu – averiguar se existiu uma alteração substancial ou uma alteração não substancial de factos, não há necessidade de optar aqui por qualquer das teorias em disputa.
Com efeito, no caso dos autos, mesmo admitindo que era possível condenar os arguidos com base num diferente modus operandi relativamente ao expressa e explicitamente descrito na pronúncia – e, nesse ponto, confluirão seguramente quer as teorias que se sustentam no critério normativo, quer as que assentam no critério social, e mesmo, numa visão não radical, alguns seguidores do critério naturalista -, para resolver a questão de inconstitucionalidade apresentada basta verificar se, pelo menos, eles não deveriam ter tido a oportunidade de preparar a sua defesa em função dessa alteração.
69. Ora, sobre hipótese teoricamente similar à que se referem os autos pronunciou-se António Quirino Duarte Soares (Convolações, cit.), considerando aí que «se houver alteração dos factos descritos na acusação, mas ela não implicar a imputação de um crime diferente, ou, ao menos, o agravamento dos limites máximos da sanção aplicável, deve o juiz proceder como manda o art.
358º, desde que a consideração desses novos elementos de facto implique com a produção de uma defesa eficaz».
E o mesmo autor acrescenta:
[...] se a unidade de resolução unifica as diversas condutas que a expressam numa única reacção penal, num único crime (...), é de concluir que o conhecimento, em audiência, de acontecimentos que correspondem à descrição do ilícito imputado ao arguido, mas que derivam da mesma resolução criminosa que presidiu aos acusados, constitui, também um pressuposto de aplicação do art.
358º (...); com efeito, a alteração dos factos não releva, aqui, de uma imputação de crime diferente, ou do agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis, mas tem, por certo, influência ao nível da escolha e determinação da medida da pena, e, portanto, tem relevo para a decisão da causa [...]
Por isso, entende que «o art. 358º não foi pensado apenas para acolher elementos circunstanciais do crime [...], mas, também, para o alargamento da matéria de facto necessária ao conhecimento do facto integral», ou seja, para responder aos casos em que, «para além de não haver imputação de um crime diverso [...], acresce, porém que os factos que servem de suporte à nova imputação apenas em parte correspondem aos da acusação, constituindo uma alteração destes últimos, a nível do meio ou instrumento [...], podendo, efectivamente, implicar negativamente no exercício do contraditório, ou de uma defesa eficaz».
E, assim sendo, as hipóteses de «conhecimento, em audiência, de novas condutas integradas, com as acusadas, na mesma unidade de resolução, e, portanto, no mesmo crime (desde que a 'nova' conduta não qualifique o crime, alterando-lhe o limite máximo da sanção)», isto é, de «novas condutas ilícitas unificáveis à já acusada através da mesma resolução criminosa que presidiu à primeira, mas sem influência na moldura penal», serão casos de alteração simples, sujeitos à aplicação do formalismo estabelecido no artigo 358º do CPP. E conclui pela forma seguinte:
- qualquer alteração não substancial da acusação, isto é, qualquer modificação da base factual do processo que não produza efeitos iguais aos expressos na alínea f) do artº 1º, ainda que irrelevante do ponto de vista jurídico substantivo, mas que implique com o exercício de uma defesa eficaz, pode e deve, hoje, ser levada em conta, apenas se tendo de cumprir o ritual do art. 358º [...]
Erige-se assim em critério orientador a defesa eficaz do arguido, permitindo que ele tome conhecimento das alterações de factos que sejam relevantes do ponto de vista daquela defesa – o que se passará, sem qualquer dúvida, quando os novos factos se reportem a um distinto modo de comissão ou execução do crime, bem como à intenção de praticar esses factos e de atingir o resultado penalmente ilícito (com eventuais consequências a nível da graduação da pena).
Na verdade, não se afigura admissível que factos dessa natureza e relevância possam ser tomados em consideração na sentença condenatória, sem que seja dada a oportunidade ao arguido de sobre a pretendida alteração se pronunciar, e de, se assim o entender, reorganizar a sua defesa em função dessa mesma alteração. Como inadmissível seria entender que ao arguido caberia, tendo em conta a factualidade resultante dos documentos juntos aos autos, antecipar uma eventual condenação com base nesses factos, apesar de apenas implícita e indirectamente referidos na pronúncia. É que, dessa forma, se forçaria o arguido, com violação das mais elementares garantias de defesa, a desempenhar um papel que o acusador não levara a cabo até ao fim.
Neste contexto, uma tal interpretação das normas constantes dos artigos 358º e 359º não se mostra compatível com o preceituado no artigo 32º, nºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.
III – DECISÃO
70. Nestes termos, decide-se:
a) Não tomar conhecimento dos recursos, salvo quanto às questões de inconstitucionalidade dos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal;
b) Julgar inconstitucionais as normas contidas nos artigos 358º e 359º do CPP, quando interpretados no sentido de se não entender como alteração dos factos – substancial ou não substancial - a consideração, na sentença condenatória, de factos atinentes ao modo de execução do crime, que, embora constantes ou decorrentes dos meios de prova juntos aos autos, para os quais a acusação e a pronúncia expressamente remetiam, no entanto aí se não encontravam especificadamente enunciados, descritos ou discriminados, por violação das garantias de defesa do arguido e dos princípios do acusatório e do contraditório, assegurados no artigo 32º, nºs 1 e 5 da Constituição da República;
c) Consequentemente, conceder provimento parcial aos recursos, devendo o acórdão recorrido ser reformado em conformidade com o ora decidido sobre a questão de inconstitucionalidade. Lisboa, 15 de Dezembro de 1999 Luís Nunes de Almeida Bravo Serra Messias Bento Guilherme da Fonseca José de Sousa e Brito (com declaração de voto quanto ao não conhecimento da questão de inconstitucionalidade do artigo 313º do Código Penal) Declaração de voto Embora o acórdão tenha concluído que não ocorreu uma integração analógica ou
'operação equivalente', mas uma mera interpretação da lei, pelo que não há uma questão de inconstitucionalidade normativa respeitante à norma aplicada numa certa interpretação do artigo 313º do Código Penal, o certo é que defendeu a propósito a doutrina de que, mesmo no caso de aplicação de uma norma penal obtida por interpretação de lacuna e, portanto, com violação do princípio
'nullum crimen nulla poena sine lege', ainda assim não haveria que conhecer dessa questão de constitucionalidade, quando suscitada. Considero errada esta doutrina e já defendi o contrário na minha declaração de voto no Acórdão nº
634/94 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 29, págs. 24 e segs.; cfr. a minha declaração de voto no Acórdão nº 756/95, Acórdãos do Tribunal Constitucional,
32, pág.77). Mas como a posição contrária, que se vinha limitando a dizer tratar-se nestes casos de eventual inconstitucionalidade da decisão judicial, e não de uma norma, pelo que não seria sindicável por este Tribunal, veio agora aduzir argumentos novos, que considero insustentáveis, não posso deixar de dizer as razões da minha discordância.
Há, em primeiro lugar, que afastar os casos em que o recorrente apenas afirmou que a decisão judicial - ou o processo a ele conducente - era inconstitucional, sem identificar, pelo menos implicitamente, uma norma ou interpretação dela que considere inconstitucional. Nestes casos falta uma uma condição de admissibilidade exigida pelo artigo 280º, nº 1, alínea b) da Constituição e pelos artigos 70º, nº 1, alínea b), 75-A, nº 1 da LTC. É então irrelevante que a norma ou interpretação normativa que foi aplicada no caso seja questionável constitucionalmente, mesmo quando a sua inconstitucionalidade seja alegada perante o Tribunal Constitucional, mas só então. Foi por esta razão que o Tribunal bem decidiu nos Acórdãos nºs 221/95 (Diário da República, 27-6-1995, págs. 7088 e segs.) e 682/95 (inédito) não tomar conhecimento. O mesmo há que decidir quando apenas a subsenção do caso concreto sob a norma aplicada se contesta, sem questionar sequer a inclusão de descrição genérica do caso na norma aplicada e, portanto, a interpretação em que a norma foi aplicada. Assim quando na decisão recorrida que condenou pelo crime de condução em estado de embriaguês (artigo 292º do Código Penal) se contestou que pudesse ser considerado com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior 1,2 g/l quem apenas revelava essa taxa no exame efectuado no aparelho Seres, sem que tivesse sido feita um análise de sangue, apenas se contestou a prova do facto, sem questionar a sua descrição nem a norma que lhe foi aplicada, como bem se entendeu no acórdão nº 154/98, inédito).
Bem diferentes são os casos em que se questionou a constitucionalidade da norma aplicada no caso em certa interpretação, por esse resultado interpretativo não caber no sentido possível das palavras de uma lei penal. É aqui irrelevante se esse resultado interpretativo foi obtido por interpretação extensiva ou por integração, por meio de analogia ou, havendo integração de lacuna, por qualquer outro meio de preenchimento desta. É uma questão de mera construção jurídica, no sentido de que não tem consequências práticas em direito penal (sobre o ponto tomei posição na minha declaração de voto no acórdão nº 634/94) Nestes casos considera-se violada a garantia individual de não ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declara expressamente punível a acção ou a omissão (artigos 29º, nºs 1 e 3 da Constituição). Semelhantes são os casos em que se questionou a constitucionalidade de certa interpretação de uma lei fiscal, por essa interpretação formular, bem vistas as coisas, uma norma integradora de uma lacuna. Invoca-se a violação da garantia individual de não ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados por lei, nos termos da Constituição (artigo
103º, nºs 2 e 3 da Constituição). Aqui já é praticamente relevante a distinção entre interpretação extensiva e integração (sobre o ponto veja-se, em geral, o Acórdão nº 59/95, Acórdão do Tribunal Constitucional, 30, págs. 103-106, e, em especial, a minha declaração de voto no Acórdão nº 756/95, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32, págs. 784-786). Nestes casos há que averiguar se a norma aplicada, obtida por interpretação ou por integração, ofende as garantias individuais. Vejamos, no conjunto de casos que se acaba de delimitar, aqueles em que se deve concluir que a norma aplicada no caso concreto é um resultado interpretativo que não ofende as garantias individuais referidas. Assim, no Acórdão nº 141/92
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21, págs, 606-610) entendeu-se que há apenas uma interpretação declarativa quando se considera que 'toma parte directa na execução', no sentido do artigo 26º, nº 1 do Código Penal, quem exerce dolosamente uma actividade de todo imprescindível para a execução, conclui que não houve interpretação extensiva, pelo que 'não pode, por isso, pôr-se a questão da inconstitucionalidade de uma interpretação extensiva ou de uma aplicação analógica, por violação do artigo 29º, nºs 1 e 3, da Constituição'. Do mesmo modo se deveria ter concluído no acórdão nº 221/95, como defendi em declaração de voto (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 32, págs. 784-786), uma vez que vinha questionado se a interpretação extensiva do artigo 6º, nº 2 do Código do Imposto de Capitais segundo o qual é 'rendimento derivado da simples aplicação de capitais', no sentido daquele preceito, o desconto do preço da compra de veículo automóvel, obtido como contrapartida da entrega antecipada de parte desse preço, violava a garantia do artigo 103º da Constituição. Deveria ter-se concluído não haver integração da lei fiscal, pelo que não poderia pôr-se a questão da inconstitucionalidade de uma norma integradora, por violação do artigo 103º. Da mesma espécie é o caso sub-judice, uma vez que o recorrente pretende, como o acórdão reconhece, que o acórdão recorrido, ao abranger no conceito de 'astúcia' do artigo 313º do Código Penal a reserva mental de incumprimento, está a ultrapassar o sentido possível das palavras, que é o limite imposto à interpretação pelos nºs 1 e 3 do artigo 29º da Constituição - sem curar de saber, por praticamente irrelevante, se para lá desse limite houve interpretação extensiva ou integração - é incorrecto dizer que 'o que vem impugnado pelo recorrente não é a norma, em si mesma considerada, mas antes a decisão judicial que a aplicou, por via de um processo constitucionalmente proibido'. Sem dúvida, o recorrente impugnou a decisão, mas porque ela aplicou uma norma, obtida por uma interpretação do artigo 313º em que a palavra
'anteriormente' é substituída pelas palavras 'com reserva mental de incumprimento', segundo a qual é punido por burla nos termos do artigo quem, com a intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo através de erro ou engano sobre factos, que com reserva mental de incumprimento provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem ou causem a outra pessoa, prejuízos patrimoniais. O acórdão conclui bem que não se põe a questão de inconstitucionalidade de uma norma obtida por integração analógica ou operação equivalente. Houve apenas interpretação e, eu diria, interpretação declarativa que não ultrapassa o sentido possível das palavras. Mas isso não significa que não tenha sido aplicada uma norma, obtida por interpretação, e que não tenha sido suscitada a inconstitucionalidade dessa norma, mas apenas a da decisão. Note-se que, para decidir esta questão, não tem o tribunal que resolver as várias questões de correcta interpretação do artigo 313º, nomeadamente as relacionadas com a burla por omissão. Apenas tem que decidir se uma certa interpretação ultrapassa o sentido possível das palavras da lei penal. Decidiu que não em poucas palavras. Consequentemente, nos casos em que a decisão recorrida interpreta a lei de modo a ultrapassar o sentido possível das palavras da lei penal, ou a fazer integração da lei tributária, há que decidir pela inconstitucionalidade, como bem fizeram os recentes acórdãos nº 205/99 (Diário da República, II, 5-11-1999, págs. 16641-16644) e 285/99 (Diário da República, II, 21-10-1999, págs. 15772 -
15776), uma vez que se julgou que uma interpretação normativa da expressão
'notificação para a instrução preparatória', referida no artigo 120º, nº 1, alínea a) do Código Penal de 1982, não podia abranger 'a notificação para o primeiro interrogatório do arguido no inquérito', sem ultrapassar o sentido possível das palavras. Ao contrário, deve lamentar-se a jurisprudência dos anteriores Acórdãos nºs 353/86 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8, págs.
575-576) e 634/94 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 29, págs. 246-249), em que se decidiu que o Tribunal não podia tomar conhecimento da questão de saber se a norma do artigo 66º, nº 1 e a do artigo 437º - do Código Penal, interpretado no sentido de a palavra 'funcionário' abranger militares, violava a garantia do artigo 29º, nº 1 e 3 da Constituição, questão em minha opinião claramente suscitada pelos recorrentes. Remeto para o meu voto de vencido neste
último Acórdão (págs. 249-258).
A peregrina tese que o Acórdão sustenta, seguindo Rui Medeiros, de que nos casos em que o próprio legislador pode estabelecer por via legislativa solução idêntica àquela que resultava de interpretação ou integração inconstitucional da lei realizada pelo tribunal a quo, o Tribunal Constitucional não pode conhecer do recurso, recusa a protecção da justiça constitucional à generalidade dos casos de violação das garantias dos artigos 29º, nºs 1 e 3 e
102º da Constituição.
Não se diga que de outro modo o Tribunal está a fazer amparo. O Tribunal faz com certeza amparo indirecto em matéria de direitos fundamentais, através da resolução das questões de inconstitucionalidade normativa suscitadas.
Nem se diga que de outro modo o Tribunal não se limita a julgar sobre inconstitucionalidade, substituindo-se ao juiz penal ou fiscal. Já mostrei que a questão de inconstitucionalidade não se confunde com a questão de interpretação correcta do preceito legislativo em questão, e o Tribunal pode ter de resolver quaisquer questões de direito instrumentais para a decisão sobre a inconstitucionalidade. Finalmente, não compete certamente ao Tribunal Constitucional considerar inconstitucionais todas as normas obtidas por interpretação judicial errada, por violação do princípio da separação de poderes ou, possivelmente, da reserva de lei aplicável ao caso. A razão não é a de nesses casos haver apenas inconstitucionalidade da decisão e não da norma nela aplicada, mas sim a de nesses casos o juiz estar autorizado pela Constituição a julgar tão bem como pode, mesmo que seja mal. Por outras palavras, a norma obtida dentro dos limites da liberdade judicial de aplicar o direito - excedidos quando se violam garantias individuais, como as dos artigos 29º e 103º da Constituição - não é uma norma no sentido funcional do termo, consagrado no artigo 280º da Constituição. José Manuel Cardoso da Costa