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Processo n.º 294/12
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Em 9 de maio de 2012, o Relator proferiu, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), decisão de não conhecimento do objeto do recurso de constitucionalidade interposto pela Autoridade da Concorrência (fls. 9977 e segs.). Notificada de tal decisão, a recorrente deduziu reclamação para a conferência, nos termos que se seguem:
«(…)
1. DA ADMISSIBILIDADE DA RECLAMAÇÃO DA DECISÃO SUMÁRIA DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1. No âmbito dos processos de contraordenação por violação das normas da concorrência previstas na Lei n.º 18/2003, de 11.6 (adiante, “Lei n.º 18/2003”), cabe recurso de impugnação das decisões da Autoridade da Concorrência (adiante, “AdC”, “Recorrente” ou “Reclamante”) para o Tribunal do Comércio de Lisboa (adiante, “TCL”), e da Sentença proferida por este Tribunal pode recorrer-se para o Tribunal da Relação (in casu, o Tribunal da Relação de Lisboa, adiante, “TRL”), nos termos dos artigos 50.º, n.ºs 2 e 6, e 52.º, n.º 1, ambos da Lei n.º 18/2003.
2. O TRL decide em última instância, não cabendo recurso das suas decisões, nos termos dos artigos 52.º da Lei n.º 18/2003 e 75.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações, sem prejuízo da suscitação de incidentes pós decisórios e do recurso de constitucionalidade.
3. Deste modo, sob pena de violação das garantias de defesa consagradas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (adiante, “CRP”), os sujeitos processuais podem reagir contra as decisões dos tribunais, reclamando, arguindo nulidades, bem como requerendo a sua correção, quando as mesmas contenham erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade.
4. In concreto, a possibilidade de reação da decisão é assegurada pelo artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com a última redação dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro (Lei do Tribunal Constitucional, “LTC”) e dos artigos 668.º, n.º 4, e 669.º do Código do Processo Civil (adiante, “CPC”), aplicável subsidiariamente ao processo de controlo da constitucionalidade, ao abrigo do disposto no artigo 69.º da LTC.
5. Para além da possibilidade de retificação de erros materiais contidos na Decisão Sumária, prevista nos artigos 667.º e 669.º do CPC.
6. Pelo que a presente Reclamação é admissível para a conferência do Tribunal Constitucional (adiante, “TC”) e a AdC tem legitimidade para a apresentar.
II. DO PEDIDO DE CORREÇÃO/RETIFICAÇÃO DA DECISÃO SUMÁRIA POR ERRO MATERIAL
7. A Decisão Sumária do TC n.º 234/2012, de 9.5.2012 (adiante, “Decisão Sumária”), refere, no segundo parágrafo da página 1, que “[a] Autoridade da Concorrência interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa ao qual foi negado provimento, por acórdão de fls. 9642 e seguintes. Deduziu então reclamação, dirigida a esse mesmo tribunal, onde arguiu a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia quanto ao pedido de reenvio prejudicial de três questões para o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). Invocou ainda, nomeadamente, a inconstitucionalidade da interpretação dada ao artigo 267.º do TFUE, por violação do artigo 8.º, n.ºs 1 e 4, 32.º, n.º 2, 20.º, n.º 1 e 202.º, n.º 2 da Constituição”.
8. Acrescentando que, “[p]or acórdão de fls. 9901 e seguintes, a Relação indeferiu a reclamação apresentada. É desta decisão que vem interposto recurso de constitucionalidade [...]“.
9. Sucede, porém, salvo o devido respeito, que o TRL, em conferência, decidiu “suprir a nulidade (por indevida omissão de pronúncia) de que enferma (nos termos sobreditos) o mencionado Acórdão de 20 de dezembro de 2011 [...]“, conforme o Acórdão do TRL de 6.3.2012, que deferiu a Reclamação da AdC.
10. Não obstante ter o Tribunal decidido, no mesmo Acórdão, indeferir o reenvio prejudicial.
11. Nestes termos, uma vez que na Reclamação se arguia a nulidade do Acórdão de 20.12.2011, por omissão de pronúncia, quanto à questão do reenvio prejudicial, vem, a AdC, requerer que tal lapso material da Decisão Sumária seja corrigido.
III. DA FALTA DOS REQUISITOS DO RECURSO DE (IN)CONSTITUCIONALIDADE
12. O TC tem entendido, de modo reiterado e uniforme, como resulta da própria Decisão Sumária no presente processo, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso interposto nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC:
a. A existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa – como alvo de apreciação;
b. O esgotamento das vias de recurso ordinário (artigo 70.º, n.º 2, da LTC);
c. A aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida;
d. A suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP e artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
13. Daqui resulta que o recurso de constitucionalidade se funda no pressuposto de que a norma cuja conformidade constitucional se visa que seja apreciada tenha sido efetivamente aplicada na decisão recorrida enquanto seu fundamento, pois só assim a eventual procedência do recurso terá utilidade, determinando a pretendida alteração daquela decisão.
14. Assim, só cabe ao TC sindicar da verificação dos pressupostos do recurso e se a norma que o TCL e o TRL não aplicaram se mostra, ou não, em conformidade com a CRP.
15. Ora, face ao cotejo da interpretação normativa da AdC e das decisões em recurso não se vislumbra que os pressupostos do recurso de constitucionalidade, supra mencionados, não estejam preenchidos.
16. Efetivamente, as questões de interpretação normativas que a Recorrente, ora Reclamante, extrai para fundamentar o recurso de (in)constitucionalidade encontram reflexo nas decisões que invoca, como infra melhor se verá.
17. Acresce que, nos termos do artigo 75.º-A, n.ºs 5 e 6, da LTC, o Ilustre Juiz Conselheiro Relator do Venerando Tribunal, salvo melhor opinião, deveria ter proferido despacho a convidar a Recorrente, ora Reclamante, a suprir os requisitos que considerou em falta, dando-lhe a oportunidade de corrigir a sua peça, ainda que, nos termos do artigo 76.º, n.º 5, da LTC, o Tribunal pudesse não admitir o requerimento após o suprimento mencionado.
18. Ou, ainda, ter afastado a aplicação do disposto no n.ºs 5 e 6 do artigo 75.º-A da mesma lei com vista à concretização pela Recorrente, ora Reclamante, da interpretação normativa que se pretendia ver apreciada.
19. Efetivamente, perante uma disposição que se afigura imperativa, salvo melhor opinião, a Decisão Sumária é omissa no que respeita à aplicação ou não do invocado normativo.
20. Em consequência, a Recorrente, ora Reclamante, viu coartado o acesso a este Alto Tribunal e a sindicância de uma questão de interpretação normativa previamente suscitada e que reveste profunda pertinência para a resolução do caso sub judice, em violação dos artigos 20.º, n.º 2, e 280.º da CRP e 668.º, n.º 1, alínea b) e d), e 669.º, n.º 1, alínea a), do CPC, ex vi 69.º da LTC, que a Reclamante apresentou por um meio idóneo e atempadamente.
21. Bem como para o cumprimento constitucionalmente previsto da missão da AdC, que constitui uma das incumbências prioritárias do Estado (artigo 81.º, n.º 1, alínea f), da CRP), como infra melhor explicitado.
22. Deste modo, e com o devido respeito, não se mostram preenchidos os requisitos para a prolação da Decisão Sumária proferida e, como tal, a Reclamante viu precludido o conhecimento do objeto do seu recurso.
23. Assim o entendemos sustentados no próprio aresto do TC de 9.5.2012, que prescreve que “[o] recurso vem interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC). No entanto, durante o processo, e designadamente na peça processual indicada pela recorrente, nunca foi suscitada a inconstitucionalidade do artigo 6.º, n.º 3, alínea b) da Lei n.º 18/2003, de 11 de junho, norma que é agora integrada no objeto do presente recurso. O que então se suscitou foi a eventual inconstitucionalidade do artigo 267.º do TFUE ao ser interpretado no sentido de não ser obrigatório o reenvio para o Tribunal de Justiça quando estejam em causa questões prejudiciais relativas à validade e interpretação de normas de direito da União Europeia. Independentemente de se saber se este seria um objeto possível do recurso de constitucionalidade, o certo é que esta questão não foi integrada no requerimento de recurso”.
24. E continua, “[n]ão o tendo feito, verifica-se que falta um dos pressupostos previstos nos artigos 280.º, n.º 1, alínea b) da Constituição e 70.º, n.º 1, alínea b) com referência ao n.º 2 do artigo 72.º da LTC, relativo à necessidade de suscitar a questão da inconstitucionalidade normativa durante o processo”.
25. A verdade é que a inconstitucionalidade que foi arguida na peça processual de Reclamação perante o TRL, para fundamentar a tese da nulidade da omissão de pronúncia respeitante à obrigatoriedade do reenvio prejudicial e consequente omissão de reenvio, como o Venerando Tribunal ad quem descreve, pela própria natureza da questão, só aquele tribunal ainda dispunha de poder jurisdicional para a decidir.
26. Ainda que se considere que se trata de uma questão “nova” sobre a qual o TCL não se havia pronunciado, sucede que tal lhe não era possível, atendendo à natureza da questão, para a qual só o TRL ainda dispunha de poder jurisdicional.
27. O reenvio prejudicial só é obrigatório para o Tribunal superior.
28. Logo, foi perante este que a questão foi suscitada e, tendo havido omissão de pronúncia quanto à questão do suscitado reenvio, como o próprio TRL veio a reconhecer, a sua invocação deve ser considerada atempada, pois que, pela sua própria natureza, não o podia ter sido antes.
29. Deste modo, a Recorrente, ora Reclamante, interveio no processo e a questão de inconstitucionalidade colocou-se em virtude do total silêncio por parte do Tribunal a quo (TRL) no seu aresto, sobre a questão oportunamente apresentada em Recurso da Sentença do TCL relativamente à necessidade de pronúncia do TJUE quanto à interpretação do artigo 6.º, n.º 3, alínea b), da Lei n.º 18/2003 e do artigo 102.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (adiante, “TFUE”), atendendo à desconformidade da interpretação do Tribunal de 1ª instância em relação ao direito da União Europeia.
30. Em conclusão, segundo a jurisprudência assente do TC, têm de se verificar os seguintes dois requisitos essenciais, entre outros:
a. Que sejam matérias sobre as quais o poder jurisdicional do Tribunal a quo não se tenha esgotado com a decisão final, ainda lhe sendo possível pronunciar-se sobre a questão de inconstitucionalidade invocada, in casu, na Reclamação;
b. Que a norma ou interpretação da norma alegada inconstitucional seja relevante para a pronúncia sobre as questões conexas com a inconstitucionalidade, in casu, reenvio para o TJUE.
31. Assim, no sentido da jurisprudência do TC, “a questão conexiona-se com outra relativamente à qual o poder de jurisdição do tribunal a quo se não havia esgotado com a anterior decisão e, de tal forma, que esse tribunal ainda podia reexaminar, por via da reclamação, essa outra questão”. O que efetivamente aconteceu.
32. Aliás, o Ilustre Juiz Conselheiro Relator, ao utilizar o vocábulo “recolocou”, entendeu que a Recorrente, ora Reclamante, não pretendia abandonar a questão anteriormente colocada, pelo que a incompletude do requerimento é suscetível de sanação.
33. Se no requerimento de interposição de recurso para o TC a questão de inconstitucionalidade normativa não estava expressa nos precisos termos em que fora feita perante o TRL, ou até de modo deficiente, também é verdade que a mesma não estava afastada, pelo que ao omitir uma fase da tramitação do processo perante o TC e a pronúncia sobre a sua possibilidade de sanação do próprio requerimento feriu a Decisão Sumária proferida de invalidade.
34. Por outro lado, é inegável que a Recorrente, ora Reclamante, identificou várias, específicas e concretas normas que, aplicadas num determinado sentido, resultaram numa violação da Constituição.
35. Tanto bastaria para concluir pela possibilidade de conhecimento do objeto do presente recurso, na medida em que é da competência exclusiva do Venerando Tribunal conhecer da constitucionalidade de “normas jurídicas” cuja desconformidade com a Constituição tenha sido efetivamente suscitada perante o tribunal a quo, o TRL, como efetivamente aconteceu no caso ora em apreço.
36. Face ao exposto, salvo melhor opinião, deve ser revogada a Decisão Sumária porque esta foi proferida pelo Venerando Tribunal sem que se mostrassem preenchidos os requisitos para a prolação da mesma, nos termos do artigo 75.º-A, n.ºs 5 e 6, da LTC, constituindo tal omissão de pronúncia nulidade ou, pelo menos, irregularidade da Decisão Sumária do Venerando Tribunal sustentada no fundamento da falta de requisitos do requerimento.
37. O artigo 668.º, n.º 1, alínea d), do CPC, ex vi artigo 69.º LTC determina que é nula a sentença, in casu, a Decisão Sumária, designadamente quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou de que deva conhecer oficiosamente.
38. Ora, como se referiu, a Decisão Sumária é totalmente omissa no que respeita à não aplicação do artigo 75.º-A, fls. 5 e 6, da LTC, que deveriam preceder a sua prolação, nos termos do n.º 2 do artigo 78.º-A da LTC.
39. Ainda que, por hipótese, assim não se entenda, e que se antecipa por dever de patrocínio, mas sem conceder, o completo silêncio sobre a questão da aplicação, ou não, do artigo 75.ºA, n.ºs 5 e 6, da LTC sempre implicaria a falta ou insuficiência de fundamentação da Decisão Sumária e, como tal, a sua nulidade, nos termos do artigo 668.º, n.º 1, alínea b), do CPC.
40. Como escreve Antunes Varela, a falta de fundamentação implica que haja falta absoluta, não se basta com a deficiente, incompleta ou não conveniente fundamentação. Ora, da Decisão Sumária não consta qualquer tipo de exposição que enuncie as razões de facto e/ou de direito pelas quais o Tribunal não considerou convidar a Recorrente, ora Reclamante, a corrigir o seu requerimento.
41. Deste modo, não tendo o Tribunal fundamentado a Decisão Sumária, verifica-se na decisão a nulidade prevista no artigo 668.º, n.º 1, alínea b), do CPC, que se deixa arguida para todos os efeitos legais.
42. Nestes termos, a Decisão Sumária é nula por omissão de pronúncia, nos termos do n.º 2 do artigo 660.º do CPC, aplicável subsidiariamente ao processo constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 69.º da LTC ou, caso assim não se entenda, o que não se concede, é nula por falta de fundamentação, por não ter indicado as razões de facto e/ou de direito que serviram para fundamentar a decisão de não proceder ao convite, nos termos do artigo 668.º, n.º 1, alínea b), do CPC.
43. Ainda que assim não se entenda, o que se coloca por razões de patrocínio, sempre estaria a Decisão Sumária ferida de irregularidade processual, pelos motivos supra desenvolvidos.
44. Assim, e salvo o devido respeito, o requerimento de recurso de constitucionalidade respeitou todos os elementos exigidos pelo n.º 2 do artigo 75.º-A da LTC, pelo que deveria o mesmo ser admitido. Caso assim não se entenda sempre se dirá que deveria a Recorrente ser convidada a promover o seu aperfeiçoamento nos termos do n.ºs 5 e 6 do artigo 75.°-A da LTC.
IV. DA INVOCAÇÃO DA INTERPRETAÇÃO INCONSTITUCIONAL DO ARTIGO 6.º DA LEI N.° 18/2003
45. Foi considerado, na Decisão Sumária, proferida nos presentes autos, não tomar conhecimento do Recurso interposto para este Alto Tribunal pela Recorrente.
46. Com todo o respeito, e que é muito, por este Venerando Tribunal, não podemos concordar com a afirmação expressa na Decisão Sumária, no sentido de que durante o processo em apreço nunca foi suscitada a inconstitucionalidade do artigo 6.º, n.º 3, alínea b), da Lei n.º 18/2003, a qual foi integrada no objeto do Recurso.
47. Na nossa perspetiva, salvo melhor, foi sempre evidenciado pela AdC, ao longo do processo, que o artigo 6.º da Lei n.º 18/2003 constitui a norma cuja interpretação, sendo controvertida, caberia, em último lugar, ao TJUE – como decorre do Recurso interposto pela AdC para o TRL e peças subsequentes –, o que foi vedado pelo TRL, ao não admitir o reenvio prejudicial pedido pela AdC, assim importando em interpretação violadora da CRP, como se passa a expor.
48. Em nossa opinião, é inconstitucional a interpretação da norma constante do artigo 6.º, n.º 3, alínea b), da Lei n.º 18/2003, e o conceito de infraestruturas essenciais aí referido, por violação do direito ao juiz legal ou natural (artigo 32.º, n.º 9, da CRP) – enquanto manifestação do direito à tutela jurisdicional efetiva (artigos 20.º, n.º 1, e 202.º, n.º 2, da CRP) –, na medida em que essa interpretação deveria ter sido efetuada, em última instância, pelo TJUE, integrado no sistema judiciário português por força da receção constitucional dos Tratados Europeus ou em conformidade com a sua jurisprudência.
49. A interpretação seguida pelo TRL de rejeição do reenvio prejudicial, no qual se pedia ao TJUE a interpretação do mencionado artigo 6.º da Lei n.º 18/2003, assume diversos sentidos no plano da violação de várias normas da CRP.
50. Note-se que o artigo 6.º da Lei n.º 18/2003 constitui expressão, concretizada normativamente, do artigo 81.º, alínea f), da CRP, nos termos do qual incumbe prioritariamente ao Estado assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir a equilibrada concorrência entre as empresas, a contrariar as formas de organização monopolista e a reprimir os abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral.
51. A esta norma da CRP é atribuído por Jorge Miranda e Rui Medeiros o seguinte significado: “[...] o princípio da concorrência é assumido como valor objetivo-positivo da organização económica, ou seja, como garantia-institucional da ordem económica [...]. De garante de direitos subjetivos, que pressupostamente assegurariam a livre concorrência, passa o Estado a defensor ativo da concorrência para o que lhe compete ditar regras que assegurem o estado de concorrência [...]. Mercê da citada cultura da concorrência’, do desenvolvimento e aprofundamento da união e integração europeias e do processo de globalização da economia, o Estado Social dos nossos dias tende a revestir a forma de Estado Regulador’, inclusive através de entidades administrativas independentes […]”.
52. A interpretação errónea – a que procedeu o TCL e o TRL – do artigo 6.º da Lei n.º 18/2003, conducente à não aplicação desta norma no caso concreto, ao impedir que a instância autorizada para a última interpretação da mesma norma o fizesse, implica, desde logo, defraudar o princípio imposto pelo mencionado artigo 81.º, alínea f), da CRP.
53. A questão poderia, assim, colocar-se como uma divergência interpretativa entre a visão sustentada pela AdC (de verificação de um abuso de posição dominante previsto no artigo 6.º da Lei n.° 18/2003 e no artigo 81.º, alínea f), da CRP) e a visão do TCL e TRL (de inexistência de abuso de posição dominante), caso os conceitos jurídicos de cuja interpretação depende a resposta (condenação ou absolvição) a dar ao litígio em concreto não oferecessem dúvida e fosse idêntica a visão dos mesmos pela AdC e pelas mencionadas doutas instâncias, colocando-se a questão como se tratando da verificação factual, de aplicação do direito ao caso concreto.
54. Acontece que não são esses, em nossa opinião, salvo melhor, os contornos do litígio concreto, como resulta da Sentença do TCL e do Acórdão do TRL, pelo seguinte:
55. Ambas as instâncias judiciais centraram as suas decisões no conceito de infraestruturas essenciais, integrante do artigo 6.º da Lei n.º 18/2003, não tendo, no entanto, procedido à interpretação correta do referido conceito, nem permitindo que a instância autorizada em último grau a proceder à interpretação do direito da União Europeia o fizesse.
56. A razão pela qual está em causa, no caso em apreço, a necessidade de atender ao direito da União Europeia prende-se, desde logo, com a origem e especificidades do artigo 6.º da Lei n.º 18/2003.
57. Como amplamente demonstrado no Recurso interposto pela AdC para o TRL, o legislador, na elaboração do artigo 6.º da Lei n.º 18/2003, usou a técnica legislativa dos exemplos-padrão, através da conjugação de uma cláusula geral com uma tipificação exemplificativa.
58. O n.º 1 do artigo 6.º contém uma cláusula geral proibitiva, ao estabelecer que “É proibida a exploração abusiva, por uma ou mais empresas, de uma posição dominante no mercado nacional ou numa parte substancial deste, tendo por objeto ou como efeito impedir, falsear ou restringir a concorrência”, que inclui conceitos indeterminados normativos (“exploração abusiva”, “posição dominante”) carecidos de preenchimento valorativo.
59. O n.º 3 do artigo 6.º contém uma enumeração exemplificativa de situações típicas, sendo que a não taxatividade dessa enumeração decorre inequivocamente do uso da expressão “designadamente” na estatuição “pode ser considerada abusiva, designadamente”.
60. Tais situações típicas correspondem a “exemplos-padrão”, pelos quais se pretende determinar e concretizar o conceito indeterminado “exploração abusiva” constante da cláusula geral.
61. É certo que esta técnica legislativa permite a construção aberta do tipo, cuja plasticidade proporciona a adaptação dos conceitos à evolução dos fins do direito da concorrência, em cada momento histórico, permitindo ao intérprete um exercício valorativo com vista à aplicação da norma ao caso concreto.
62. Daqui decorre que o aplicador da norma pode decidir que o preenchimento do tipo também se verifica num caso não expressamente previsto nessa enumeração.
63. Na verdade, a combinação da cláusula geral com os exemplos-padrão visa abarcar na respetiva estatuição casos não expressamente previstos na norma, mas que apresentem o mesmo grau de desvalor e uma estrutura valorativa idêntica à de um dos exemplos-padrão, decorrente da cláusula geral.
64. Porém, este exercício valorativo encontra-se norteado por diversos parâmetros interpretativos, entre os quais: (i) a ratio legis da cláusula geral; (ii) os elementos da prática decisória e jurisprudenciais desenvolvidos pelo direito da União Europeia sobre a norma proibitiva dos abusos de posição dominante (artigo 102.º do TFUE5), sendo o artigo 6.º da Lei n.º 18/2003 a transposição, para o direito português, dessa norma do direito da União Europeia.
65. Saliente-se que o TCL, em vários arestos, tem também caracterizado as normas proibitivas de comportamentos restritivos da concorrência, constantes da Lei n.º 18/2003, como regras idênticas às normas em branco, para cuja interpretação é crucial atender ao direito da União Europeia.
66. Veja-se, a título de exemplo, o exposto na Sentença proferida pelo 1.º Juízo do TCL em 29.4.2011, num recurso de impugnação de uma decisão condenatória da AdC, a respeito do artigo 5.º da Lei n.º 18/2003: “[o] legislador optou por consagrar a norma em branco e concretizá-la com alguns exemplos – as alíneas do n.º 1 [referindo-se ao n.º 1 do artigo 5.º da mencionada lei] [....]. A fonte deste preceito é, claramente, e de forma quase repetitiva, o já citado artigo 85.º (atual artigo 81.º) do Tratado, que tem sido objeto de intenso labor por parte da Comissão, do TPI e do TJC, o qual terá, evidentemente, que ser tido em conta na interpretação e aplicação do n.º 2. Pode afirmar-se com segurança que, com as devidas adaptações, é, no caso, às orientações da Comissão e decisões desta e dos Tribunais Comunitários que deve ir buscar-se a integração da norma. Os conceitos são os mesmos e têm sido intensamente trabalhados e estudados e valem para o nosso direito interno como para o direito comunitário” [p. 35].
67. A respeito do artigo 6.º da Lei n.º 18/2003, entendeu o mesmo Tribunal, na mencionada Sentença, na p. 54, que “[a] densificação do conceito de posição dominante, como aliás de quase todos os conceitos neste ramo do direito, tem vindo a ser feita ao longo dos anos pela jurisprudência comunitária [...]“.
68. O mesmo se pode ler na p. 141, último parágrafo, da Sentença proferida nos presentes autos.
69. Mais: estando em causa, nos presentes autos, a violação do artigo 82.º do Tratado das Comunidades Europeias (adiante, “TCE”), o apelo aos mencionados elementos do direito da União Europeia não constitui uma opção do intérprete, mas uma verdadeira obrigação, atenta a exigência, inclusivamente com sede constitucional, do princípio da aplicação uniforme do direito da União Europeia.
70. Efetivamente, em primeiro lugar, impõe o n.º 4 do artigo 8.º da CRP que as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.
71. Ou seja, cabe ao direito da União Europeia (e não ao direito nacional) a definição dos termos em que este direito se aplica no ordenamento jurídico português.
72. Em segundo lugar, impõe o Regulamento n.º 1/2003, no respetivo artigo 16.º, a aplicação uniforme do direito da concorrência da União Europeia.
73. Idêntico princípio é estabelecido na Comunicação da Comissão sobre a cooperação da Comissão e os tribunais dos Estados-Membros, que estipula que quando aplicam as regras comunitárias da concorrência, os tribunais nacionais estão vinculados pela jurisprudência dos tribunais comunitários, bem como pelos regulamentos da Comissão.
74. Como indicam João Mota de Campos e João Luiz Mota de Campos, “[a] ordem jurídica constitucional instituída no ato das Comunidades Europeias está profundamente marcada pelos princípios da autonomia, da aplicabilidade direta, da primazia e da interpretação uniforme do direito comunitário. A natureza constitucional de tais princípios não pode ser posta em dúvida. Trata-se, com efeito, de princípios que, regendo as relações da ordem jurídica comunitária com a ordem jurídica interna dos Estados-membros e com o direito Internacional, são da mesma natureza dos que, na ordem constitucional destes últimos, respeitam às relações do ordenamento interno com o direito internacional”.
75. Ora, a Sentença do TCL, embora tendo considerado aplicável o artigo 82.º do TCE, interpretou-o de forma totalmente contraditória com os critérios estabelecidos na prática decisória da Comissão Europeia e na jurisprudência do TJUE sobre o abuso de posição dominante.
76. O mesmo se dizendo relativamente ao artigo 6.º da Lei n.º 18/2003, que transpõe, como referimos, o artigo 82.º do TCE para o ordenamento jurídico português.
77. Na verdade, a compreensão do conceito de infraestrutura essencial é fulcral para a solução do litígio, implicando resolver as questões prejudiciais controvertidas, nomeadamente, de saber a quem competia a prova da viabilidade da replicação da estrutura; a questão de saber que elementos estão incluídos no juízo de essencialidade da infraestrutura; e a questão de saber se a origem pública da infraestrutura em causa influenciaria o modo de aplicar o teste da essencialidade.
78. O mecanismo do reenvio prejudicial visa, justamente, garantir a aplicação uniforme do direito da União Europeia que, no caso, constitui a referência norteadora da interpretação do conceito de infraestruturas essenciais contido no artigo 6.º da Lei n.º 18/2003.
79. Desta forma, no caso em apreço, a denegação do reenvio prejudicial tendente a obter a correta interpretação do artigo 6.º da Lei n.º 18/2003, viola o princípio do juiz natural ou legal consagrado no artigo 32.º, n.º 9, da CRP, na medida em que é este o intérprete último do artigo 82.º do TCE, pois só ele pode garantir a aplicação uniforme do direito da União Europeia.
80. Tudo o que acima afirmámos aplica-se ao Acórdão do TRL proferido nos presentes autos, sendo que os argumentos aqui expostos foram sendo reiterados pela AdC no Recurso interposto desse Acórdão, bem como nas subsequentes peças processuais, a saber, o requerimento de arguição de nulidades e reclamação interposto junto do TRL e o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
81. Se é certo que nesta última peça consta referência literal expressa ao mencionado artigo 6.º da Lei n.º 18/2003, esta norma esteve sempre presente na argumentação defendida pela AdC (iniciando-se na interposição de Recurso para TRL) sobre a relevância constitucional da incorreta interpretação do artigo 6.º da Lei n.º 18/2003.
82. O pedido, deduzido pela AdC, de reenvio prejudicial radicou sempre na interpretação, que carece de ser efetuada pelo juiz comunitário, enquanto juiz natural ou legal, do mencionado artigo 6.º da Lei n.º 18/2003.
83. Aliás, é doutrina assente que as questões que configuram o reenvio prejudicial obrigatório colocam-se não só quando a norma em causa na resolução do litígio é uma norma de direito da União Europeia, mas também quando o ato aplicável é nacional, mas encontra fundamento numa norma europeia (por exemplo, a transposição de uma diretiva ou atos administrativos fundados em decisões europeias) e – como é o caso dos presentes autos – quando o bloco normativo nacional relevante para a decisão da questão é inspirado nas normas ou princípios de direito da União Europeia.
84. Sendo o direito da concorrência nacional fortemente inspirado pelo direito europeu da concorrência, é a este direito que deve ser reconhecida primazia na definição dos conceitos relevantes e na metodologia de apuramento da existência de práticas restritivas da concorrência, nas quais se inclui o abuso de posição dominante.
85. Verifica-se, na verdade, uma “homogeneização da prática jurídico- construtiva das várias figuras contratuais no espaço nacional”, nas palavras de Miguel Gorjão Henriques.
86. Neste contexto, solicita-se ao TJUE não que interprete o direito nacional, mas que defina o alcance dos princípios e dos critérios de aplicação do direito da União (artigo 82.º do TCE) vertidos no direito nacional (artigo 6.º da Lei n.º 18/2003).
87. Cumpre referir, ademais, que a desconformidade das atuações de instâncias judiciais nacionais com o direito da União Europeia deve ser solucionada pelo direito nacional, como verdadeiro fundamento da garantia de tal conformidade.
88. No nosso entendimento, o direito constitucional nacional soluciona tal desconformidade através do princípio do juiz natural ou legal.
89. Só o entendimento aqui defendido é, em nossa opinião, consentâneo com o princípio da efetividade, segundo o qual os Estados-Membros têm a obrigação de garantir a aplicação efetiva do direito da União.
90. Nos presentes autos, este entendimento concretiza-se na questão de saber se a norma constante do artigo 6.º, n.º 3, alínea b), da Lei n.º 18/2003, tal como interpretada pelo TRL (segundo o qual cabe à AdC demonstrar a inexistência de alternativas técnicas às infraestruturas essenciais), é inconstitucional por violação do direito ao juiz natural ou legal.
91. Cremos que a resposta a esta questão só pode ser positiva.
92. E, por este motivo, independentemente de referência literal expressa ou implícita nas peças processuais apresentadas pela AdC anteriormente ao requerimento de interposição de recurso para este Alto Tribunal, a norma cuja interpretação constitucional se questiona foi sempre o artigo 6.º da Lei n.º 18/2003.
93. Por outro lado, o direito à tutela jurisdicional efetiva consiste, segundo o Tribunal Constitucional, no “direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional”.
94. O direito ao juiz legal ou natural decorre deste direito, mais amplo, à tutela jurisdicional efetiva previsto no artigo 20.º da CRP: este preceito sai violado caso o artigo 6.º da Lei n.º 18/2003 não possa ser interpretado pela única instância legalmente autorizada para a interpretação última do direito da União Europeia, e que é o TJUE.
95. Na verdade, na expressão “interpretação dos Tratados” constante da alínea a) do artigo 267.º do TFUE, inclui-se todo o direito da União Europeia.
96. Como comenta Maria Eugénia Nazaré Ribeiro, “[n]os termos do art. 267.º TFUE, o TJUE é competente para decidir, a título prejudicial, sobre a «interpretação dos Tratados» e sobre a «interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União» (incluindo, nomeadamente, todas as disposições dos Tratados, os anexos, os protocolos, os atos modificativos, os Tratados de Adesão, os acordos internacionais concluídos pela União, os princípios gerais do direito da União, os acórdãos do TJ) [...]“.
97. Deste modo, o TJUE, quando confrontado com um pedido de reenvio prejudicial sobre a interpretação de uma disposição positivada do direito da União Europeia, não pode deixar de tomar em consideração a jurisprudência do mesmo Tribunal sobre a questão, jurisprudência essa que, no entender da AdC, foi ignorada, nos presentes autos, pelo TCL e pelo TRL, não obstante ter sido invocada pela AdC, muito especialmente a respeito do conceito de infraestruturas essenciais.
98. Ainda segundo a Autora supra referenciada, “[c]omo resulta da jurisprudência, os órgãos jurisdicionais referidos são obrigados a cumprir o seu dever de reenvio a menos que concluam que a questão não é pertinente ou que a disposição do direito da União em causa foi já objeto de uma interpretação por parte do Tribunal de Justiça ou que a correta aplicação do direito da União se impõe com tal evidência que não dá lugar a qualquer dúvida razoável, devendo a verificação desta hipótese ser avaliada em função das caraterísticas próprias do direito da União, das dificuldades particulares de que a sua interpretação se reveste e do risco de surgirem divergências jurisprudenciais no interior da União (v., nomeadamente, Ac. do TJ de 6 de outubro de 1982, Cilfit e o., 283/81, Recueil, p. 3415)”.
99. Especialmente relevante a este respeito é o Acórdão do TJUE, de 12.6.2008, Gourmet Classic, C-458/0616 onde se pode ler o seguinte (refletindo jurisprudência consolidada): “Nos termos do artigo 234.º, segundo e terceiro parágrafos, CE, quando seja suscitada perante um órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros uma questão de interpretação do Tratado CE ou dos atos derivados adotados pelas instituições da Comunidade Europeia, esse órgão jurisdicional pode ou, tratando-se de um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, deve, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal de Justiça que se pronuncie sobre ela (v. acórdãos de 8 de novembro de 1990, Gmurzynska-Bscher, C-231/89, Colect., p. I-4003, n.º 17, e de 9 de fevereiro de 1995, Leclerc-Siplec, C-412/93, Colect., p. I-179, n.º 9). [Considerando 19]. O artigo 234.º CE destina-se a evitar divergências na interpretação do direito comunitário, cuja aplicação cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais, e tem por fim assegurar àquele direito, em quaisquer circunstâncias, a produção dos mesmos efeitos em todos os Estados- Membros (v., neste sentido, acórdão de 16 de janeiro de 1974, Rheinmühlen-Düsseldorf, 166/73, Colect., p. 17, n.º 2) [Considerando 20]. Segundo jurisprudência assente, o processo previsto no artigo 234.º CE é um instrumento de cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais (acórdãos de 18 de outubro de 1990, Dzodzi, C297/88 e C-197/89, Colect., p. I-3763, n.º 33; de 12 de março de 1998, Djabali, C-314/96, Colect., p. I-1149, n.º 17; e de 5 de fevereiro de 2004, Schneider, C-380/01, Colect., p. I-1389, n.º 20) [Considerando 21]. No âmbito desta cooperação, cabe ao órgão jurisdicional, que é o único a ter um conhecimento direto dos factos do processo principal e que deve assumir a responsabilidade pela decisão a tomar, apreciar, tendo em conta as especificidades desse processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão como a pertinência das questões que coloca ao Tribunal de Justiça (v. acórdãos de 16 de julho de 1992, Meilicke, C-83191, Colect., p. I-4871, n.º 23; Leclerc-Siplec, já referido, n.º 10; e de 18 de março de 2004, Siemens e ARGE Telekom, C-314/01, Colect., p. I-2549, n.º 34) [Considerando 22]. Em particular, a obrigação de reenvio prevista no artigo 234.º, terceiro parágrafo, [Tratado]CE insere-se no âmbito da colaboração entre os órgãos jurisdicionais nacionais incumbidos da aplicação das normas comunitárias e o Tribunal de Justiça, colaboração esta instituída com o objetivo de garantir a correta aplicação e a interpretação uniforme do direito comunitário no conjunto dos Estados-Membros. Esta obrigação tem por objetivo, nomeadamente, evitar que se estabeleça em qualquer Estado-Membro uma jurisprudência nacional discordante das regras do direito comunitário (v. acórdãos de 4 de novembro de 1997, Parfums Christian Dior, C-337/95, Colect., p. I-6013, n.º 25; de 22 de fevereiro de 2001, Gomes Valente, C-393/98, Colect., p. I-1327, n.º 17; de 4 de junho de 2002, Lyckeskog, C-99/00, Colect., p. I-4839, n.º 14; e de 15 de setembro de 2005, Intermodal Transports, C-495/03, Colect., p. I-8151, n.ºs 29 e 38) [Considerando 23]. Por conseguinte, desde que as questões submetidas pelo juiz nacional incidam sobre a interpretação de uma disposição de direito comunitário, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a pronunciar-se (acórdãos Meilicke, já referido, n.º 24; LeclercSiplec, já referido, n.º 11; e de 18 de novembro de 1999, X e Y, C-200/98, Colect., p. I-8261, n.º 19)” [Considerando 24].
100. Não se ignora, evidentemente, que existem circunstâncias nas quais um órgão jurisdicional nacional está dispensado de proceder ao reenvio, a saber: a falta de pertinência da questão; tratar-se de uma questão já resolvida pelo TJUE (teoria do ato clarificado); ou tratar-se de ato “objetivamente claro”.
101. Estas circunstâncias não se verificam no caso concreto, nem o TRL as invocou como fundamento da denegação do reenvio prejudicial.
102. Em conclusão, a correta interpretação e aplicação ao caso concreto do artigo 6.º da Lei n.º 18/2003 fica defraudada se não se aceitar o reenvio prejudicial pedido pela AdC, o qual radica nesta norma, como resulta das peças processuais subscritas pela AdC nos presentes autos, incluindo o Recurso para o TRL e a posterior arguição de nulidades e reclamação, saindo violados os artigos 32.º, n.º 9, 20.º, n.º 1 e 202.º, n.º 2, todos da CRP.
Termos em que se requer a V. Exas. se dignem deferir a presente Reclamação, incluindo no que toca à correção e suprimento das invocadas nulidades ou irregularidades, decidindo-se em consequência tomar conhecimento do Recurso interposto pela AdC.
2. O Ministério Público e a recorrida A., SA pronunciaram-se no sentido do indeferimento da reclamação.
3. A reclamação centra-se em quatro ordens de fundamentos: em primeiro lugar, é formulado um pedido de retificação por erro material; em segundo, arguí-se a nulidade, por omissão de pronúncia, da decisão reclamada; em terceiro, sustenta-se que a inconstitucionalidade do artigo 6.º da Lei n.º 18/2003, de 11 de junho, apenas poderia ter sido suscitada após a decisão da Relação face à reclamação que teve por objeto a omissão de pronúncia quanto ao reenvio prejudicial que havia sido requerido; e, por último, discorre-se quanto ao objeto propriamente dito do recurso de constitucionalidade, consubstanciado na alegada interpretação inconstitucional do artigo 6.º da Lei n.º 18/2003.
4. Quanto ao pedido de retificação material deduzido, assinale-se que, tendo embora razão quanto a alguma equivocidade ou incompletude da narrativa relativa ao incidente processual a que se refere, qualquer retificação em sentido próprio seria desprovida de interesse prático. Efetivamente, a ora recorrente reclamou do acórdão da Relação de 20 de dezembro de 2010, arguindo uma nulidade por omissão de pronúncia e aduzindo razões no sentido da obrigatoriedade do reenvio prejudicial. Foi nessa intervenção processual que suscitou uma questão de inconstitucionalidade, mas do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE). A Relação, por acórdão de 6 de março 2012, considerou verificada e supriu a nulidade. Mas indeferiu o pedido de reenvio. E fê-lo com o fundamento essencial de que “(…) Em suma: a A., SA não foi absolvida da contraordenação porque o Tribunal do Comércio de Lisboa ou esta Relação tivessem divergido da AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA quanto a qualquer questão de direito, em especial quanto aos requisitos de que dependia a violação do artigo 102.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. A A., SA apenas foi absolvida porque a AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA não provou, no plano dos factos, que os ditos requisitos estivessem preenchidos. Esta circunstância é, por si só, suficiente para tornar absolutamente impertinentes e supérfluas as três questões ditas prejudiciais que a ora Recorrente AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA pretende que sejam submetidas ao Tribunal de Justiça da União Europeia (nos termos do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia)”.
Como se vê, para o que interessa nesta fase processual, a pretendida retificação é irrelevante, uma vez que a nova narrativa não altera .os pressupostos da decisão proferida.
5. Passemos agora à reclamação propriamente dita.
Deve começar por notar-se que, estando em causa uma decisão liminar de não conhecimento do objeto do recurso de constitucionalidade, por inverificação dos respetivos pressupostos processuais, é só isso que importa analisar. O que significa que é inútil tudo o que a reclamante alega acerca da inconstitucionalidade do artigo 6.º da Lei n.º 18/2003, do valor do direito da União Europeia em face dos direitos dos Estados membros e do princípio da aplicação uniforme do mesmo. Estamos numa fase anterior, em que o que se discute é a cognoscibilidade do recurso. Não compete a este Tribunal dizer se o tribunal “a quo” decidiu erradamente ao não proceder ao reenvio, face à realidade processual e ao direito da União Europeia. Apenas lhe cabe apreciar a inconstitucionalidade da norma de que fez aplicação para assim decidir, mas isso se estiveram reunidos os pressupostos e os requisitos necessários.
6. Sustenta a reclamante que o artigo 75.º-A, n.ºs 5 e 6 da LTC vincula o juiz à formulação de convite à correção do requerimento de interposição do recurso, pelo que a decisão reclamada, tendo esse passo processual sido omitido, enferma de nulidade.
Este raciocínio – independentemente de indagação, em abstrato, sobre a obrigatoriedade do convite e sobre as consequências da sua preterição – parte do errado pressuposto de que o não conhecimento resultou de uma deficiência suscetível de suprimento. Efetivamente, o convite ao aperfeiçoamento apenas tem lugar quando se trate de sanação de imperfeições relativas aos requisitos do requerimento de recurso, designadamente, por o mesmo ser omisso em algum ou alguns dos seus elementos essenciais. Já não serve quando o não conhecimento se funda na não verificação dos pressupostos insupríveis do recurso interposto, como era o caso. E, seguramente, não serve para convidar a parte interessada a alterar o objeto de um recurso cujos pressupostos se não verificam para um outro cujos pressupostos poderiam verificar-se. Mesmo quando obrigatório – o que não é o caso – é sobre o recorrente e não sobre o Tribunal que recai o ónus de identificar o objeto do recurso.
Assim sendo, não havia lugar ao convite a que se refere o artigo 75.º-A da LTC, pelo que se indefere a arguição de nulidade
7. A recorrente argumenta que apenas lhe foi possível suscitar, perante a Relação de Lisboa, a inconstitucionalidade do artigo 267.º do TFUE pois só perante aquele Tribunal a questão se colocava naqueles moldes na medida em que o mecanismo do reenvio prejudicial só se apresenta como obrigatório para os tribunais superiores. Desde modo, adianta a reclamante, “foi perante este [Tribunal superior] que a questão foi suscitada e, tendo havido omissão de pronúncia quanto à questão do suscitado reenvio, como o próprio Tribunal da Relação de Lisboa veio a reconhecer, a sua invocação deve ser considerada atempada, pois que, pela sua própria natureza, não o podia ter sido antes.” E, mais adiante, acrescenta que “(…) a questão conexiona-se com outra relativamente à qual o poder de jurisdição do tribunal a quo se não havia esgotado com a anterior decisão e, de tal forma, que esse tribunal ainda podia reexaminar, por via da reclamação, essa outra questão. “O que efetivamente aconteceu.”
Importa compreender o que se decidiu porque só assim é possível construir um discurso jurídico racionalmente fundado.
Ora, a razão determinante para que o recurso não tenha prosseguido consistiu em que o seu objeto (em sentido material: a norma cuja apreciação de inconstitucionalidade se pretende) é a norma do artigo 6.º, n.º 3, alínea b), da Lei n.º 18/2003 e, relativamente a essa norma, não foi suscitada qualquer questão de constitucionalidade normativa, podendo e devendo sê-lo. Se a recorrente pretendia ver recusada a aplicação dessa norma ou de um critério de decisão dela extraído com fundamento em inconstitucionalidade, dispôs de indesmentível oportunidade de chamar o Tribunal da Relação a apreciar essa questão. Como se diz na decisão sumária, “quer a sentença de 1ª instância, quer o acórdão da Relação que a confirmou, versaram sobre os pressupostos de aplicação da referida norma e a prova respetiva, pelo que, ao suscitar a questão da necessidade do reenvio prejudicial, mas pelo menos no momento em que arguiu a nulidade por omissão de pronúncia em que já conhecia o entendimento da Relação, a recorrente poderia arguir perante o tribunal da causa a inconstitucionalidade que agora quer ver apreciada pelo Tribunal Constitucional”
É ao recorrente que incumbe definir o objeto (material) do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade e é relativamente ao objeto assim definido que hão de verificar-se os pressupostos do recurso interposto. Para isso é indiferente saber se o recorrente suscitou a inconstitucionalidade de qualquer outra norma no momento processual adequado se essa norma não integra o objecto do recurso. Ora, o certo é que a recorrente suscitou a inconstitucionalidade de uma norma do TFUE, tendo optado, posteriormente, quando interpôs o recurso de constitucionalidade, por sujeitar a apreciação de constitucionalidade uma outra norma, aliás, de natureza, conteúdo e fonte totalmente diversa.
Aliás, da própria suscitação de inconstitucionalidade do artigo 267.º do TFUE se retira que, pelo menos nesse momento, a recorrente poderia ter suscitado a inconstitucionalidade da norma que agora quer ver apreciada tal como o fez relativamente a essa outra. Mais uma razão para concluir que a inconstitucionalidade normativa efetivamente integrada no presente recurso de fiscalização concreta não foi devidamente suscitada durante o processo, tendo, no entanto, assistido à recorrente a possibilidade efetiva de o fazer. E, assim sendo, a reclamação não pode deixar de improceder.
8. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação apresentada e condenar a recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 25 de junho de 2012.- Vítor Gomes – Ana Guerra Martins – Gil Galvão.