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Proc. nº 58/00
1ª Secção Consº Vítor Nunes de Almeida
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
I – RELATÓRIO
1. – J... propôs contra A... e mulher, R..., uma acção de denúncia do arrendamento, na forma sumária, com fundamento na necessidade do locado para sua habitação.
Por decisão de 30 de Abril de 1999, o Tribunal Cível da Comarca do Porto julgou a acção improcedente, absolvendo os réus do pedido.
Inconformados com tal decisão, o Autor apelou para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 14 de Dezembro de 1999, decidiu negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Ainda inconformado, o Autor e recorrente interpôs recurso de constitucionalidade ao abrigo da alínea b) do nº1, do artigo 70 da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo que se apure se a norma da alínea a), nº1, do artigo 69º do RAU na interpretação de que a necessidade constitui requisito autónomo para além dos requisitos do artigo 71º, nº1, do RAU, viola o artigo 44º, nº1, da Constituição (direito de deslocação e de fixação de residência).
2. – Neste Tribunal, quer o recorrente quer os recorridos apresentaram alegações, tendo o primeiro concluído as suas pela forma seguinte:
'PRIMEIRA O preceito da alínea a) do nº 1 do artigo 69º do RAU, na interpretação dada pelo Tribunal a quo, no sentido de constituir um requisito autónomo da denúncia do arrendamento para habitação do senhorio, em acumulação com os requisitos do nº1 do artº 71º do RAU, viola, entre outros, o artº 44º, nº1 da Constituição da República (e o seu artº 18º, nº1), ao conferir os tribunais a apreciação das razões da decisão dos senhorios de fixarem residência no local do arrendado ou de se deslocarem para o local do arrendado. SEGUNDA Se se entender que o referido preceito é susceptível de interpretação no sentido de se entender que o senhorio só precisa de invocar a necessidade do arrendado e provar os requisitos do nº1 do artº 71º do RAU, para obter a denúncia do arrendamento, deve fixar-se esse sentido como sendo aquele que está conforme á Constituição.'
Pelo seu lado, os recorridos não formularam conclusões, mas defenderam a decisão recorrida e invocaram ainda a manutenção do decidido pelo facto de o arrendamento já durar há mais de 20 anos.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II- FUNDAMENTOS
3. – A questão que vem suscitada nos presentes autos consiste em saber se a norma do artigo 69º, nº1, alínea a) do RAU, que prevê a possibilidade de denúncia pelo senhorio do contrato de arrendamento para o termo do prazo ou da sua renovação, quando necessite do prédio para sua habitação, interpretada no sentido de que esta necessidade constitui um requisito autónomo a acrescer aos previstos no nº1 do artigo 71º do mesmo RAU viola o direito de deslocação e de fixação de residência previsto no nº1 do artigo 44º da Constituição.
Importa apurar se a norma foi aplicada nos autos com a interpretação que o recorrente considera inconstitucional.
A este respeito, escreveu-se na decisão recorrida:
'Sustenta o apelante que face à facticidade apurada a acção devia ter sido julgada procedente. E, na sua longa e douta alegação, defende, citando doutrina vária, que a ‘necessidade do prédio’ referida no artigo 69º do RAU não é um requisito autónomo da denúncia do arrendamento, a colocar a par dos requisitos referidos no art. 71º, nº1 do mesmo diploma, mas sim, uma consequência que flui do mero facto de se provarem esses requisitos do art. 71º. A questão não é nova, tendo sido já muito debatida. Mas ocorre que é hoje doutrina predominante e jurisprudência – que temos por uniforme – no sentido de que a necessidade do prédio (que deve ser real, séria, actual ou futura, não eventual, mas iminente, traduzidas em razões ponderosas, é, efectivamente, um requisito da denúncia que depende da alegação de factos concretos dos quais se possa concluir que o senhorio precisa da casa para a sua habitação, requisito esse que se cumula com os referidos nas alíneas a) e b) do art. 71º do R.A.U.. Diríamos mesmo que a prova da necessidade da casa é a condição primeira para justificar o exercício do direito de denúncia do arrendamento, ou, como se escreve no Ac. Rel. Évora, de 23/04/98, a necessidade da habitação é 'o macro-requisito ou requisito prévio dos demais, a causa de pedir da denúncia, sendo os demais meras condições de exercício do direito.'
Este simples trecho é suficiente para ficar claro que a decisão recorrida adoptou, com efeito, a interpretação normativa que o recorrente considera violadora da Constituição e que constitui o objecto do presente recurso.
Como o recorrente suscitou nas alegações da apelação para a Relação a questão da constitucionalidade de tal interpretação normativa, estão reunidos os requisitos necessários ao conhecimento do recurso de constitucionalidade.
A este respeito, escreveu-se na decisão recorrida:
'Ao decidir pela improcedência não teve, a Mmª Juíza em conta o direito constitucional do Apelante de deslocação e escolha da sua residência? A sentença recorrida não negou procedência à denúncia do arrendamento com o fundamento de que o A. Vivendo nos Açores não necessita de regressar ao Continente. Se o tivesse feito, não teríamos dúvida de que o julgado violava o direito constitucional – consagrado no nº1 do artigo 44º da Constituição da República Portuguesa – de livre deslocação e fixação do cidadão em qualquer parte do território nacional. Mas não foi esse o fundamento da improcedência da acção, ainda que a parte final da motivação pudesse fazer crer que também pesou no espírito da Exma Juíza, para negar a verificação do requisito da necessidade do arrendado, a circunstância de o Autor já residir nos Açores há vinte anos, sem que isso perturbe a sua actividade profissional e as suas relações familiares. Poderia, então, contrapor-se que, não obstante o referido, o A. é livre de, querendo, abandonar os Açores e vir fixar residência na cidade do Porto. Sem dúvida que lhe assiste esse direito. E a sentença recorrida, manifestamente, não lho coarcta. Uma coisa é o direito de livre deslocação e fixação do Autor no território nacional e outra, bem diferente, a exigência, que o mesmo faz, de que o Tribunal decrete a denúncia de um contrato de arrendamento relativo a um prédio sito na cidade do Porto. Ali, bastaria munir-se de 'armas e bagagens' e deslocar-se para onde melhor entendesse; aqui, cumpria-lhe provar os requisitos legais de que depende a denúncia do arrendamento, sendo um deles, como se referiu, a 'necessidade do prédio', implicando a alegação e prova de que o impetrante pretende, efectivamente, a curto prazo, regressar ao Porto, para aqui fixar a sua residência. Podia o regresso ao Porto obedecer a um mero capricho seu, mas a procedência da pretensão da denúncia tinha necessariamente que passar pela prova de que o Autor pretende vir fixar residência no Porto. Assim, não se vê que a sentença recorrida tenha violado o direito constitucional do A. previsto no art. 44º. Nº1, da Cons. Rep. Port..'
4. – Importa, portanto, analisar o teor da norma cuja constitucionalidade vem questionada e, bem assim, fazer uma síntese do entendimento doutrinal e jurisprudencial que prevalentemente era adoptado, uma vez que não existia uniformidade quanto a tal entendimento.
O artigo 69º, nº 1 do RAU (Regime do Arrendamento Urbano
– aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro), tem a seguinte redacção:
'Artigo 69º Casos de denúncia pelo Senhorio
1 .- Sem prejuízo dos casos previstos no artigo 89º-A, o senhorio pode denunciar o contrato para o termo do prazo ou da usa renovação nos casos seguintes: a. Quando necessite do prédio para sua habitação (...).' O preceito corresponde parcialmente ao artigo 1096º do Código Civil, sendo a sua actual redacção a decorrente do Decreto-Lei nº 278/93, de 10 de Agosto.
O contrato de arrendamento para habitação era, no regime do Código Civil (CC), obrigatória e automaticamente renovado no final do respectivo prazo e das sucessivas renovações, a menos que o inquilino o denunciasse. A renovação automática e obrigatória mantém-se, salvo quanto aos contratos de arrendamento em que se fixar um prazo de duração efectiva, prazo este que não pode ser inferior a 5 anos (artigo 1054º do CC; artigos 10º,68º a
73º, e 98º, nº1, do RAU).
O senhorio só pode denunciar o contrato de arrendamento em casos excepcionais: o artigo 69º concretiza uma das excepções previstas e, na parte com relevo para os autos, o preceito estabelece a possibilidade de denúncia do arrendamento pelo senhorio quando ele necessitar do prédio para sua habitação.
De acordo com o preceituado no artigo 71º do RAU – que estabelece os requisitos do direito de denúncia - , este direito depende do senhorio ser proprietário, comproprietário ou usufrutuário do prédio há mais de
5 anos, a menos que o tenha adquirido por sucessão (caso em que não há prazo) e de não ter na área das comarcas de Lisboa ou Porto e limítrofes ou na respectiva localidade, casa própria ou arrendada que satisfaça as suas necessidades de habitação própria.
A denúncia do contrato pelo senhorio deve ser feita em acção judicial com um mínimo de antecedência de seis meses em relação ao fim do contrato, só obrigando ao despejo três meses após a decisão definitiva (artigo
70º do RAU).
A denúncia para habitação do senhorio dependia da verificação cumulativa dos requisitos do artigo 71º do RAU e da prova da necessidade da casa para sua habitação. Mas mesmo que todos estes elementos estivessem adquiridos, o certo é que mesmo assim o despejo podia não ser decretado: com efeito, o artigo 106º do RAU estabelece limitações ao direito de denúncia do senhorio que paralisam esse direito.
Não interessa agora explanar todo o regime do direito de denúncia do senhorio. Importa, sim, referir – como aliás é salientado na decisão recorrida – que a questão de considerar a necessidade de habitação do senhorio como um requisito autónomo foi uma questão muito debatida na doutrina e na jurisprudência. No Acórdão nº 174/92 (in Diário da República, IIª Série, de 18 de Setembro de 1992), apreciando o problema de modo exaustivo e completo, referiu-se também que 'já no domínio da Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1948 – que reintroduziu no nosso ordenamento jurídico o direito de o senhorio denunciar o contrato de arrendamento quando necessitasse da casa para habitação, deste modo ressuscitando um velho preceito das ordenações – se entendia dominantemente que o senhorio tinha de fazer prova, antes de mais, do requisito da necessidade da casa (...)'. No referido acórdão se dá também conta dos defensores da tese oposta que entendiam que, uma vez verificados, a um tempo, os três requisitos apontados (nº1 do artigo 1098º do CC), 'a lei considera feita a prova de necessidade da casa' (cf. Sá Carneiro, Revista dos Tribunais, anos 66 e 69, respectivamente, págs. 374 e 253), citando também jurisprudência neste sentido.
Pode, portanto, concluir-se que a doutrina e jurisprudência dominantes apontam no sentido de os requisitos do nº1 do artigo
71º do RAU não bastarem, por si só, para assegurar a situação de facto de necessidade do prédio para habitação tutelada pelo artigo 69º, nº1, alínea a) do mesmo diploma.
Tal como acima se referiu, é a interpretação da alínea a) do nº1 do artigo 69º do RAU que impõe ao senhorio, que pretenda denunciar o contrato de arrendamento para o termo do prazo ou da sua renovação, a prova da necessidade do prédio para sua habitação, para além da provas dos requisitos do nº1 do artigo 71º do RAU, que o recorrente considera violadora do artigo 44º, nº1, da Constituição da República.
Sobre esta específica questão se debruçou já o Acórdão deste Tribunal nº 174/92 (já acima citado), tendo-o feito em termos que são perfeitamente transponíveis para o caso dos autos, com a simples ressalva de que não está, agora, em causa a norma do Código Civil, mas antes uma norma similar do RAU e, na parte relevante, de conteúdo praticamente idêntico.
Escreveu-se no Acórdão nº 174/92:
'O artigo 44º, nº1, preceitua como segue:
I – A todos os cidadãos é garantido o direito de se deslocarem e fixarem livremente em qualquer parte do território nacional. Consagra-se aqui o chamado direito de deslocação, que é um direito bifronte, pois que, de um lado, compreende o direito de deslocação propriamente dito, ou seja, o direito de cada um se movimentar livremente dentro do território nacional, sem necessidade de qualquer licença, autorização, salvo-conduto, visto ou passaporte. É a chamada 'liberté d’aller et de venir'. E compreende, por outro lado, o direito de residência, isto é, o direito de escolher livremente o local para viver. Ninguém pode, pois, ser impedido de se deslocar seja para que região ou local for nem de aí fixar residência. E, do mesmo passo, ninguém pode ser obrigado a residir numa certa região ou num determinado local nem a confinar as suas deslocações ao âmbito dessa região ou desse local. Pois bem: que a norma em causa, com o sentido com que foi aplicada pelo acórdão recorrido, não violava o direito de deslocação no seu sentido mais estrito – ou seja, no sentido de 'liberté d’aller et de venir' – é coisa que, por tão óbvia, não carece de qualquer demonstração. A norma sub judice também não violava o preceito constitucional aqui considerado, no ponto em que ele consagra o direito que cada um tem de estabelecer ou mudar de residência dentro do território da comunidade política nacional De facto, fazendo a prova de que tinha necessidade real da casa arrendada para nela habitar – ou seja, de que pretendia realmente, aí instalar a sua habitação, por não dispor, na localidade, de outra para o efeito - , que o mesmo é dizer que não queria despejar o arrendatário apenas para ter a casa devoluta para arrendar a outro locatário ou para a manter desocupada, o senhorio obteria o despejo pretendido, desde que, claro é, simultaneamente, tivesse feito prova dos requisitos do nº1 do artigo 1098º do Código Civil, que – repete-se- eram
«requisitos adicionais, reforçativos ou complementares» daquela necessidade, e não requisitos substitutivos ou exoneratórios desse elemento básico fundamental
(este modo de dizer é de Antunes Varela, Revista citada, p. 115). Sendo assim, então, não seria por falta de casa para habitar que o senhorio deixaria de poder mudar a sua residência de um ponto para o outro do território nacional. Vale isto por dizer que o facto de a norma da alínea a) do nº1 do artigo 1096º do Código Civil ser interpretada no sentido de – a mais do que a prova dos requisitos do nº1 do artigo 1098º do Código Civil – exigir a alegação e prova da necessidade da casa para habitação do senhorio, não impedia a mudança de residência de um local para outro do território nacional, nem tornava o exercício do correspondente direito particularmente oneroso. De facto, exigir a prova da necessidade da casa não era fazer uma exigência excessiva ou desproporcionada; tratava-se, antes, de exigir a prova de um facto, com vista a evitar fraudes e abusos – o que era uma exigência a todos os títulos razoável.'
A simples substituição da referência aos artigos 1096º e
1098º do Código Civil pelos artigos 69º e 71º do RAU, permite transpor o entendimento constante do trecho transcrito para o caso dos autos.
Resulta, assim, manifesto que a norma do artigo 69º, nº1, alínea a) do RAU, que prevê a possibilidade de denúncia pelo senhorio do contrato de arrendamento para o termo do prazo ou da sua renovação, quando necessite do prédio para sua habitação, interpretada no sentido de que esta necessidade constitui um requisito autónomo a acrescer aos previstos no nº1 do artigo 71º do mesmo RAU não viola o direito de deslocação e de fixação de residência previsto no nº1 do artigo 44º da Constituição.
Tem, portanto, de improceder o presente recurso. III – DECISÃO:
Nos termos que ficam expostos, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma da alínea a), do nº1, do artigo 69º do RAU, no segmento relativo à necessidade do prédio para habitação do senhorio, e, em consequência, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
15 unidades de conta.
Lisboa, 27 de Setembro de 2000 Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa