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Processo nº 595/99 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. M... recorre, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão da Relação de Lisboa, de 31 de Agosto de
1999, para que este Tribunal aprecie a constitucionalidade da norma que se extrai dos artigos 363º e 412º, nº 4, do Código de Processo Penal, segundo a qual está 'a cargo da recorrente a transcrição dos depoimentos gravados no julgamento'.
O acórdão recorrido confirmou o despacho do Juiz da 5ª Vara Criminal de Lisboa, de 9 de Julho de 1999, que indeferiu o pedido para que a secretaria judicial transcrevesse os suportes magnéticos de gravação dos depoimentos produzidos na audiência de julgamento, a que a recorrente foi submetida perante o tribunal colectivo.
Neste Tribunal, a recorrente alegou, formulando as seguintes conclusões:
1º No presente recurso vem-se arguir a inconstitucionalidade das normas dos arts. 363º e 412º nº 4 do C.P.P. se interpretadas no sentido de estar a cargo da recorrente a transcrição dos depoimentos gravados em audiência de julgamento, quando o Tribunal tenha procedido à gravação da prova, por violação do disposto no art. 32º nº 1 da C.R.P..
2º A situação que se configura nos presentes autos emerge do facto de em requerimento subsequente à audiência de discussão e julgamento realizada em 1ª Instância, a recorrente ter solicitado precisamente ao Tribunal de acordo com o disposto no art. 363º e 412º nº 4 do C.P.P., se procedesse à transcrição dos depoimentos gravados em julgamento a fim de poder proceder à impugnação de matéria de facto.
3º O Tribunal 'a quo' indeferiu a pretensão da recorrente com o fundamento que a transcrição dos depoimentos gravados em sede de audiência estava a cargo da recorrente, o que foi posteriormente confirmado pelo Tribunal da Relação de Lisboa que, a propósito da questão da inconstitucionalidade referida em 1 se veio a pronunciar em termos de não se verificar a referida inconstitucionalidade, considerando para tanto, que não vislumbrava sensível diminuição dos direitos de defesa do arguido, pelo facto de ter de proceder à transcrição dos depoimentos gravados em sede de audiência.
4º Contudo é de salientar, em primeira análise, que se verifica de forma incontornável a obrigação do Tribunal proceder à documentação em acta, por transcrição, dos depoimentos gravados em audiência, como resulta das disposições conjugadas dos arts. 363º, 412º nº 4 e 101º nº 2 do C.P.P..
5º Resultando essa obrigação da letra da lei, colocar sobre recorrente que pretenda impugnar matéria de facto, a obrigação ou o ónus de proceder à transcrição da prova que foi gravada em sede de audiência de julgamento é desde logo diminuir ou tornar inconsequente a garantia que o próprio processo penal
'oferece' e que se traduz no facto de essa obrigação (transcrição da prova gravada) pertencer ao próprio Tribunal, pelo que se afigura notória a violação do disposto no art. 32º nº 1 da Constituição.
6º Por outro lado, esse ónus a cargo do recorrente, significa para o mesmo, entre outras situações equacionáveis, a obrigação de custear suportes magnéticos para proceder a re-gravação (de todo inverosímel pensar-se que o recorrente pode proceder a transcrição directamente na secretaria judicial quando se fala de dezenas de cassetes audio com duração de 90 minutos cada), o perigo de nessa transcrição se falhar alguma passagem, o que poderá ter consequências imprevisíveis, já que se trata de uma re-gravação e por último, o facto de tal se traduzir, no fundo, num encurtamento do prazo para a interposição de recurso.
7º com efeito, essa missão do recorrente de 'secretariar' a tramitação da transcrição dos suportes magnéticos, que é necessariamente longa (gravação, audição e transcrição) vem no fundo diminuir o prazo de estudo para apresentação da motivação, o que afronta também o disposto no art. 32º nº 1 da Constituição da república Portuguesa. Nestes termos, dever-se-á declarar a inconstitucionalidade dos arts. 363º e 412º nº 4 do C.P.P. se interpretados no sentido de estar a cargo da recorrente a obrigação de proceder à transcrição de depoimentos gravados em sede de audiência de julgamento, quando o Tribunal tenha procedido à gravação da prova, por violação do disposto no art. 32º nº 1 da Constituição da República Portuguesa. O Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal concluiu como segue a sua alegação:
1º - O direito ao recurso contra decisões penais condenatórias, ínsito no princípio constitucional das garantias de defesa, não implica que ao arguido tenha que ser reconhecida uma irrestrita possibilidade de genérica impugnação das decisões sobre a matéria de facto, proferidas por tribunais colectivos – sendo perfeitamente conformes à Constituição os regimes que fazem recair sobre o arguido-recorrente determinados ónus, tendentes a delimitar claramente o âmbito de tal recurso e a fundamentá-lo em termos concludentes, com vista a obviar a impugnações sem base séria e de natureza puramente dilatória.
2º - Tal direito ao recurso basta-se com a gravação, por sistema sonoro, das audiências finais e da prova nelas produzida, não implicando que os serviços judiciais devam proceder oficiosamente à transcrição, em escrito dactilografado, incluído na própria acta da audiência, de todos os depoimentos nela prestados.
3º - Não viola o aludido direito ao recurso a interpretação normativa, acolhida na decisão recorrida, que se traduz em cominar ao arguido-recorrente o ónus de proceder à transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos realmente produzidos em audiência e em que se funda para sustentar fundamentadamente que o colectivo cometeu um erro na apreciação e valoração de tais provas.
4º - Na verdade, o recurso sobre a matéria de facto só pode considerar-se suficientemente e concludentemente fundamentado se o recorrente, na motivação do recurso, proceder a uma concreta especificação e referenciação dos depoimentos realmente produzidos em audiência e a uma análise crítica da respectiva valoração pelo julgador.
5º - Termos em que deverá improceder o presente recurso.
2. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
4. O artigo 363º do Código de Processo Penal é um preceito que a reforma de 1998
(Lei nº 59/98, de 25 de Agosto) deixou intocado. Dispõe como segue: Artigo 363º (Documentação de declarações orais – Princípio geral) As declarações prestadas oralmente na audiência são documentadas na acta quando o tribunal puder dispor de meios estenotípicos, ou estonográficos, ou de outros meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral daquelas, bem como nos casos em que a lei expressamente o impuser.
Este artigo 363º foi submetido à apreciação deste Tribunal que, no seu acórdão nº 253/92 (publicado no Diário da República, II série, de 27 de Outubro de
1992), sublinhou: A norma em causa contém, assim, um princípio geral, válido para a audiência de julgamento em 1ª instância. Tal princípio é o de que as declarações prestadas na audiência - que há-de decorrer com observância da regra da oralidade (cf. artigos 96º, 360º, 363º e
364º) - devem ser registadas ('documentadas na acta', diz o artigo), quando o tribunal puder dispor de meios técnicos idóneos para assegurar a sua reprodução integral. Deste artigo 363º, conjugado com o artigo 364º, resulta, pois, que, sendo o julgamento feito por um tribunal colectivo ou de júri, nunca a prova produzida na audiência é reduzida a escrito: ou é registada pelo recurso a meios técnicos que permitam assegurar a sua reprodução integral, ou não o é. Escrita é que nunca. As coisas já, porém, se passam diversamente, quando o julgamento é feito pelo juiz singular. Nesse caso, com efeito, se o tribunal não dispuser de meios técnicos adequados para assegurar a reprodução integral das declarações prestadas oralmente na audiência, mas o Ministério Público, o defensor ou o advogado do assistente, até ao início das declarações do arguido a que se refere o artigo 343º, declararem que não prescindem da sua documentação (que o mesmo é dizer que não prescindem de recurso quanto à matéria de facto: cf. artigos 389º, nº 2, e 428º, nº 2), o juiz ditará para a acta 'o que resultar [dessas] declarações'. Ou seja: nesse caso, o juiz fará registar, na acta da audiência, uma súmula da prova aí produzida oralmente (cf. artigo 364º, nº 3).
No dito aresto, anotou-se também o seguinte: Aquele registo de prova não tem, porém, no sistema do Código de Processo Penal vigente - que não está aqui em causa - a finalidade de permitir ao tribunal de recurso o controle do julgamento do facto, feito pelo tribunal recorrido. O tribunal de recurso [ou seja, no caso, o Supremo Tribunal de Justiça: cf. artigo 432º, alínea c), do Código de Processo Penal], em regra, só conhece de matéria de direito (cf. artigo 433º); e, mesmo quando conhece de matéria de facto, só pode servir-se do texto da decisão recorrida, e nunca do registo de prova que, acaso, tenha sido feita na 1ª instância. Na verdade, mesmo que o recurso se funde em insuficiência da matéria de facto para a decisão, contradição insanável da fundamentação ou erro notório da apreciação da prova - casos em que o Supremo Tribunal de Justiça pode conhecer de matéria de facto [cf. artigo 410º, nº 2, alíneas a), b) e c), do citado Código] - tais vícios hão-de resultar 'do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum' (cf. citado artigo 410º, nº 2). Quando o Supremo Tribunal de Justiça, em recurso interposto de um acórdão final de um tribunal colectivo com fundamento em alguma das situações enunciadas nas alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 410º, conclui pela sua verificação (e, assim, pela impossibilidade de decidir a causa: cf. artigo 426º), o que faz é ordenar o reenvio do processo, ou seja, ordenar se proceda à renovação da prova, em novo julgamento, a efectuar pelo tribunal de 1ª instância, 'de categoria e composição idênticas às do tribunal que proferiu a decisão recorrida, que se encontrar mais próximo' (cf. artigos 426º e 436º). Não pode, assim, substituir-se ao tribunal de 1ª instância na apreciação directa da prova, nem realizar, ele próprio, diligências de prova [cf., neste sentido, CUNHA RODRIGUES
'Recursos', in O Novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1988, p. 394). E, para concluir pela verificação de alguma das ditas situações - repete-se - não pode servir-se de quaisquer elementos constantes no processo, maxime de registos de prova que hajam sido feitos na audiência de julgamento em 1ª instância. O vício por cuja existência o Supremo vier a concluir há-de resultar do próprio texto do acórdão recorrido, 'por si ou conjugado com as regras de experiência comum'
(cf., neste sentido, MAIA GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado, 4ª edição, Coimbra, 1991, p. 540). Quando o julgamento é feito por um tribunal colectivo, o registo das declarações produzidas oralmente na audiência é, pois, um meio de controlo da prova posto ao serviço desse tribunal. Com esse registo, o que se pretende é assegurar que o tribunal colectivo, com base nas declarações prestadas na audiência, venha a dar como provado o que realmente se provou e como não provados os factos de que se não logrou fazer prova [cf., neste sentido, MAIA GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado, cit., p. 486; e ainda os acórdãos deste Tribunal nºs 234/93
(publicado no Diário da República, II série, de 2 de Junho de 1993), 639/93 (por publicar), 398/94 (publicado no Diário da República, II série, de 26 de Outubro de 1994), e 482/95 (por publicar)]
O Supremo Tribunal de Justiça sempre interpretou o mencionado artigo 363º no sentido de que 'a documentação por meios técnicos adequados exclui o recurso à escrita comum, quer com computador, quer com máquinas de escrever'. E isto, porque a 'redução a escrito das declarações ao ritmo do ditado do juiz e do bater das teclas do dactilógrafo' redundaria 'na preterição do princípio da oralidade' e envolveria 'prolongamentos processuais que o actual Código de Processo Penal, imbuído do espírito de celeridade processual, quis afastar' (cf. o acórdão de 6 de Março de 1996, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano IV, tomo 3, 1996, página 165). Não é, de resto, exacto que – como afirmou a recorrente na motivação do recurso
– a Relação de Lisboa se tenha orientado no sentido de que, 'quando exista gravação da prova, por meios técnicos, que assegurem a reprodução integral, esses depoimentos devem ser documentados na acta por transcrição'.
É certo que o acórdão que a recorrente cita – o acórdão de 10 de Dezembro de
1996, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XXI, tomo V, 1996, página
157 -, decidiu que devem ser transcritos na respectiva acta os depoimentos prestados na audiência de julgamento, 'ainda que constem de gravação magnetofónica audiovisual ou audio simples'. Mas isso apenas quando, como era o caso, a audiência tenha decorrido perante o tribunal singular, e tenha sido feita, oportunamente, a declaração de que se não prescinde da documentação da prova: nessa hipótese, aplicável era o artigo 364º, nº 1, do Código de Processo Penal, na versão então vigente, e não o artigo 363º aqui sub iudicio.
A jurisprudência acabada de citar foi tirada num quadro legal assim caracterizado:
(a). das decisões finais do tribunal colectivo, recorria-se directamente para o Supremo Tribunal de Justiça, que, em regra, só conhecia de matéria de direito
[cf. os anteriores artigos 432º, alínea c), e 433º do Código de Processo Penal];
(b). no tocante à matéria de facto, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça só podia ter por fundamento a sua 'insuficiência' 'para a decisão', a
'contradição insanável da fundamentação' ou o 'erro notório na apreciação da prova' [cf. o artigo 410º, nº 2, alíneas a), b) e c), do citado Código];
(c). o Supremo Tribunal de Justiça, ao julgar o recurso, só podia concluir pela existência de qualquer destes vícios atinentes ao facto, a partir 'do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum'
(cf. o citado artigo 410º, nº 2), e não socorrendo-se do registo da prova levado a cabo no julgamento da 1ª instância.
5. Com a reforma de 1998, dos acórdãos finais do tribunal colectivo, só se recorre directamente para o Supremo Tribunal de Justiça, quando o recurso visar
'exclusivamente o reexame da matéria de direito' [cf. o artigo 432º, alínea d)]. Se o recurso visar matéria de facto, há-de ele interpor-se para o respectivo tribunal de Relação (cf. artigo 427º). Perante este tribunal, pode haver reapreciação da prova, independentemente de, no caso, se verificar algum dos vícios referidos no nº 2 do artigo 410º (cf. artigo 430º, nº 2) – ou seja: independentemente de existir 'insuficiência para a decisão da matéria de facto provada', 'contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão' ou 'erro notório na apreciação da prova' [cf. as alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 410º]. Estes vícios podem constituir fundamento de recurso para a Relação. Esta pode, no entanto, conhecer da matéria de facto com maior amplitude
(cf. o artigo 428º, nº 2).
Se o recurso versar matéria de facto, na respectiva motivação, o recorrente há-de especificar, entre o mais, o seguinte:
(a). os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
(b). as provas que impõem decisão diversa da recorrida;
(c). as provas que devem ser renovadas [cf. artigo 412º, nº 3, alíneas a), b) e c)].
A propósito do recurso versando sobre matéria de facto, prescreve o nº 4 do mesmo artigo 412º - que é o outro preceito que a recorrente submete à apreciação deste Tribunal – o seguinte: Artigo 412º (Motivação do recurso e conclusões)
4. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.
Daqui decorre que, nos recursos interpostos dos acórdãos finais do tribunal colectivo, versando matéria de facto, a Relação – contrariamente ao que antes fazia o Supremo Tribunal de Justiça – vai, ela própria, reapreciar a prova produzida na audiência de julgamento da 1ª instância. Serve-se, para tanto, dos suportes técnicos em que essa prova tenha sido gravada e, bem assim, da transcrição das provas que, no entender do recorrente, imponham 'decisão diversa da recorrida', nos 'pontos de facto' que ele 'considera incorrectamente julgados'. O legislador, porém – contrariamente ao que fez para o processo civil, em cujo artigo 690º-A, nº 2, prescreveu que é ao recorrente que incumbe, 'sob pena de rejeição do recurso, proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda' -, não esclareceu a quem cabe o ónus de proceder à transcrição dos depoimentos gravados: se ao próprio recorrente, se aos serviços judiciais.
O acórdão recorrido interpretou os artigos 363º e 412º, nº 4, do Código de Processo Penal, no sentido de que, após a reforma de 1998, continua a não haver lugar à transcrição da gravação magnética da prova produzida na audiência de julgamento com intervenção do tribunal colectivo. Essa transcrição – diz – deve circunscrever-se 'às concretas provas que, no entender do recorrente, impõem decisão diversa da recorrida' e é da responsabilidade do próprio recorrente. De facto – pondera – 'só ele – nunca a secretaria – está em condições de a efectuar, pois só ele pode determinar, com precisão, o que deve ser transcrito'. Em defesa desta tese, o aresto argumenta com o facto de 'a transcrição de gravações, tarefa morosa e fastidiosa', redundar 'em enorme desperdício de tempo e de meios humanos se fosse efectuada por sistema: a decisão poderá nem ser objecto de recurso, ou este ser restrito à matéria de direito, e, mesmo no caso de recurso sobre matéria de facto, a discordância pode limitar-se – e limitar-se-á em regra – a muito demarcados segmentos de prova'. E invoca o disposto no já citado artigo 690º-A do Código de Processo Civil – preceito introduzido pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro. No processo civil, incumbe, de facto, ao recorrente, que, no recurso, impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, especificar, obrigatoriamente, sob pena de rejeição, 'quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados' e, bem assim, 'quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida'
[cf. citado artigo 690º-A, nº 1, alíneas a) e b)]. E cabe-lhe também proceder à transcrição desses meios probatórios.
Pois bem: o acórdão recorrido teve por 'evidente que o legislador quis consagrar na reforma do processo penal, em matéria de recurso sobre a matéria de facto e quando haja gravação da prova produzida perante tribunal colectivo, solução idêntica à que o Código de Processo Civil sancionara, surgindo assim a regulamentação efectuada neste em tal matéria como subsidiária para a integração das lacunas do processo penal'.
Nesta conclusão não está a Relação desacompanhada, pois que idêntica é a opinião de GERMANO MARQUES DA SILVA, que escreve: Tem suscitado dificuldades de aplicação a matéria do registo da prova, uma das principais alterações agora introduzidas, sobretudo a transcrição das gravações. As dificuldades serão, estou em crer, superadas logo que se compreenda plenamente que o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância. Sendo assim, como me parece, as transcrições das gravações serão sempre limitadas, apenas aquelas que na perspectiva do recorrente ou recorrido forem importantes para a decisão. Por isso que, ainda que o espírito da lei não fosse esse, segundo creio, é aplicável subsidiariamente o disposto no Código de Processo Civil (cf. Aplicação das Alterações ao Código de Processo Penal, publicado no Forum Iustitiae, ano 1º, nº 0, págs. 21 e 22).
6. Não cumpre a este Tribunal decidir se esta interpretação da lei processual penal é ou não a melhor. O que lhe compete é decidir se uma interpretação dos artigos 363º e 412º, nº 4, do Código de Processo Penal, segundo a qual os depoimentos prestados na audiência de julgamento perante o tribunal colectivo, e aí gravados, não têm que ser transcritos na acta, cabendo, antes, àquele que pretenda impugnar o julgamento da matéria de facto em via de recurso fazer a transcrição das provas que, em seu entender, impõem uma decisão diversa daquela da que recorre, viola ou não o princípio das garantias de defesa.
A resposta – adianta-se já – é negativa.
Uma das garantias de defesa no processo penal é o direito ao recurso (cf. artigo
32º, nº 1, da Constituição). Com o recurso, não se pretende, porém, um novo julgamento da matéria de facto, pois – como se advertiu no acórdão nº 124/90 e se repetiu, entre outros, no acórdão nº 322/93 (publicados no Diário da República, II série, de 8 de Fevereiro de 1991 e de 29 de Outubro de 1993, respectivamente) – 'tratando-se de matéria de facto, há razões de praticabilidade e outras (decorrentes da exigência da imediação da prova) que justificam não poder o recurso assumir aí o mesmo âmbito e a mesma dimensão que em matéria de direito: basta pensar que uma identidade de regime, nesse capítulo, levaria, no limite, a ter de consentir-se sempre a possibilidade de uma repetição integral do julgamento perante o tribunal de recurso'. Ora, 'uma repetição integral da prova perante o tribunal de recurso, se fosse praticada por sistema, seria, desde logo e como facilmente se compreende, absolutamente impraticável. Mas, a mais do que isso, revelar-se-ia de todo inconveniente': desde logo, porque – como chama a atenção CUNHA RODRIGUES ('Recursos', in O Novo Código de processo Penal, página 393) – 'há cada vez mais razões para olhar com cepticismo os segundos julgamentos montados sobre cenários já utilizados e com prévio ensaio geral'. Ao que acresce que a leitura ou a audição pelo tribunal de recurso de toda a prova produzida e gravada perante o tribunal colectivo – para além de se tornar pouco menos que insuportável – 'acabaria por fazer com que a prova se perdesse como prova, justamente porque lhe faltava a força da imediação' (cf. citado acórdão nº 322/93): seria, na verdade, uma prova temporalmente mais distanciada dos factos e apreciada já 'em segunda mão' [cf., a propósito, também o acórdão nº 401/91 (publicado no Diário da República, I série A, de 8 de Janeiro de 1992)].
Pois bem: se a prova produzida na audiência de julgamento perante o tribunal colectivo foi gravada e o arguido, que pretenda impugnar em via de recurso a decisão da matéria de facto, pode utilizar essas gravações para o efeito de demonstrar que certos pontos de facto foram incorrectamente julgados [cf. artigo
412º, nº 3, alínea a)], bastando que especifique as provas que, em seu entender, impõem decisão diversa da recorrida [cf. artigo 412º, nº 3, alínea b)] e que proceda à transcrição das passagens da gravação em que se fundamenta (cf. artigo
412º, nº 4), isso é suficiente para se poder concluir que o recurso cumpre os objectivos exigidos por um processo justo e leal (a due process of law). Ora, um recurso assim constitui suficiente garantia de defesa – uma garantia de defesa no sentido do nº 1 do artigo 32º da Constituição. Para se ver que assim é, chega ponderar mais o seguinte: se o tribunal mandasse transcrever todas as provas produzidas – e gravadas – na audiência, podia estar a fazer trabalho inútil: bastava que não houvesse recurso da matéria de facto. Mas mais do que isso: tal não dispensava o recorrente de indicar as provas e as passagens da transcrição que a Relação devia reapreciar, uma vez que – repete-se
– é a ele que cumpre especificar os pontos de facto que considera mal julgados e, bem assim, as passagens da gravação (e/ou da transcrição) em que fundamenta esse seu juízo.
Impor-se ao recorrente o ónus de transcrever as pertinentes passagens da gravação da prova em que se baseia para extrair a conclusão da existência de erro no julgamento da matéria, de facto, não priva, pois, o arguido do direito de recorrer, nem tão-pouco torna o exercício deste direito particularmente oneroso. E, assim, não afecta o direito ao recurso, que, constituindo, embora, no processo penal, uma importante garantia de defesa, não é, todavia, um direito irrestrito tal que o legislador não possa condicionar mediante a imposição de certos ónus ao recorrente.
Antes de concluir, transcrevem-se algumas passagens da alegação do Ministério Público, que são particularmente impressivas: Esta ampla impugnabilidade da decisão de facto, proferida pelo colectivo, não pode, todavia, tornar ilegítima a imposição ao arguido-recorrente de determinados ónus, no que respeita à delimitação do âmbito do recurso e à respectiva fundamentação – surgindo, aliás, tais ónus legitimidados pela necessidade de obviar a um 'banalização' da impugnação da decisão proferida colegialmente sobre a matéria de facto, sem base séria e com objectivos puramente dilatórios. Assim, é evidentemente legítimo, face ao princípio constitucional das garantias de defesa, cominar ao arguido-recorrente o ónus de especificar claramente o
âmbito e os motivos da sua dissidência em relação ao decidido na 1ª instância – apontando e especificando quais os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e quais as provas que, na sua óptica, foram erradamente valoradas pelo julgador. Para além disto, importa notar que – a nosso ver – nada na Constituição impõe que se proceda à transcrição, no tribunal 'a quo' e na própria acta da audiência de julgamento, dos depoimentos prestados: é que o 'direito ao recurso', ínsito no nº 1 do artigo 32º - e que, como se referiu, não é ilimitado, não envolvendo, por força da Constituição, uma irrestrita impugnabilidade das decisões de facto dos tribunais colectivos – seria perfeitamente compatível com a inexistência da referida 'transcrição', em suporte documental escrito, da prova registada em suporte magnético, competindo, porventura, à Relação proceder à audição das gravações realizadas, para apurar da existência ou inexistência do alegado – e necessariamente excepcional – 'erro na apreciação da prova'. Não se pretende com isto afirmar que, do ponto de vista pragmático, não seja preferível facultar à Relação, não apenas as fitas magnéticas sonoras, que incorporam o registo da prova, como também a transcrição, em suporte documental escrito, dos passos da gravação relevantes para o julgamento da matéria do recurso.
[...] Ora, se partirmos destes pressupostos – segundo os quais a Constituição não garante um irrestrito direito de impugnação da decisão proferida pelo colectivo sobre a matéria de facto, nem impõe que, havendo recurso para a 2ª instância, se deva necessariamente proceder à transcrição oficiosa e integral, na própria acta da audiência, do registo da prova, realizado tecnicamente por gravação sonora -
é evidente e inquestionável que não viola o aludido direito ao recurso o entendimento de que cabe ao arguido o ónus – não obviamente de proceder à transcrição, em suporte documental escrito, da gravação de toda a audiência – mas de realizar tal transcrição relativamente aos concretos e específicos pontos da matéria de facto que pretenda impugnar. Afigura-se-nos, aliás, que tal encargo mais não representa do que impor ao recorrente o normal ónus de fundamentar, em termos concludentes, o recurso que interpôs: é que, bem vistas as coisas, tal ónus de motivar ou fundamentar, em termos concludentes, um recurso que visa precisamente demonstrar e convencer que ocorreu determinado erro na valoração das provas só pode considerar-se satisfatoriamente cumprido se o recorrente começar por demonstrar, na sua alegação, quais foram as provas relevantes e qual foi o resultado probatório delas emergente. Na verdade, pretender impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto sem proceder a uma expressa e concreta referenciação das provas realmente produzidas em audiência e a uma análise crítica da sua valoração pelo julgador – tendo em conta o teor efectivo e completo dos depoimentos produzidos
– não traduzirá seguramente exercício fundado e adequado do 'direito ao recurso', que não comporta a possibilidade de vagas, genéricas e indemonstradas imputações de erros de julgamento à decisão do tribunal colectivo incidente sobre a matéria de facto.
7. Conclui-se, assim, que as normas sub iudicio, interpretadas como o foram e atrás se indicou, não violam o princípio das garantias de defesa. E, por isso, não são inconstitucionais.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). negar provimento ao recurso;
(b). condenar a recorrente nas custas, com quinze unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 21 de Dezembro de 1999 Messias Bento Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (votei a decisão de não inconstitucionalidade, mas não posso acompanhar as considerações constantes do ponto 6. sobre a função do registo da prova; essas considerações, todavia, não me parecem necessárias no
âmbito deste recurso). Luís Nunes de Almeida