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Proc. nº 571/00
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1. BP veio reclamar para a conferência da decisão sumária de 16 de Outubro de 2000 (a fls. 2734 e seguintes), que, por não considerar verificados os pressupostos processuais exigidos no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº
28/82, decidiu não tomar conhecimento do recurso por ele interposto para o Tribunal Constitucional O reclamante formulou as seguintes conclusões na reclamação apresentada:
'I. O recorrente, no recurso para a Relação de Coimbra, alegou que o artigo 420º do Código Penal é inconstitucional, por a norma passar a violar o artigo 29º nº 1 da Constituição, ao ser interpretada como a primeira instância a interpretou. II. Nas conclusões das alegações de recurso, escreveu que «torna o artigo 420º do Código Penal inconstitucional, se o mesmo for interpretado como sendo punida por corrupção passiva a conduta ‘relacionado com o cargo exercido’ e não somente a conduta que implique violação dos deveres do cargo, por, com essa interpretação, por violar o estabelecido no artigo 29º nº 1 da Constituição da República. III. Foi, expressamente, colocada em causa a estrita inconstitucionalidade da norma, quando esta é interpretada como foi. IV. No requerimento de interposição de recurso, escreveu-se que a norma cuja inconstitucionalidade se pede que seja declarada é a constante do nº 1 do artigo
420º do Código Penal de 1982, aplicada segundo a interpretação que, no tipo legal em causa, o que é relevante para a existência do crime de corrupção «é que o acto subornado tenha sido realizado pelo funcionário que [...] apenas o levou a cabo na actuação de meros poderes de facto», não sendo exigível, para haver crime, que o dito «acto subornado» seja praticado através da violação de deveres do seu cargo, como se encontra escrito na lei; igualmente se escreveu que a disposição da constituição violada é o artigo 29º nº 1 da Constituição. V. A lei Orgânica do Tribunal Constitucional não exige qualquer formalidade particular para a alegação da inconstitucionalidade, limita-se a exigir que a questão da inconstitucionalidade «haja sido suscitada durante o processo» devendo, depois, no requerimento de recurso, alegar-se a norma da constituição que foi violada. VI. Isto posto, não se escreva que «não tendo sido suscitada pelo recorrente, de modo processualmente adequado, uma questão de inconstitucionalidade normativa, não se encontram verificados os pressupostos processuais de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional». Porque foi suscitada uma questão de inconstitucionalidade, nos termos da alínea b) do artigo 70º nº 1 da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional. O recorrente, processualmente, fez tudo o que a lei lhe exigia e exige para o recurso ser recebido e ser apreciado de mérito. Não houve qualquer erro do recorrente na identificação e interposição do seu recurso, ao contrário do que se refere na parte final da decisão sujeita a reclamação. VII. A alínea b) do nº 1 do citado artigo 70º não descreve qualquer formalismo específico para se alegar a inconstitucionalidade da norma. Para que a inconstitucionalidade da norma esteja alegada basta que a mesma conste das alegações, conste das conclusões das alegações e seja inteligível, o que, salvo melhor opinião, que deverá ser demonstrada, sucede com as alegações do recorrente. VIII. A alínea b) do nº 1 do citado artigo 70º não proíbe o recorrente da decisão da primeira instância de, no recurso para o Tribunal da Relação – porque a Relação era competente para conhecer desses vícios da decisão – além da alegação da inconstitucionalidade da norma, decorrente da forma como a mesma era aplicada, imputar à decisão recorrida outros vícios, outras irregularidades. Tal como sucedeu. IX. O facto do recorrente, no recurso para a Relação, ter atribuído à decisão recorrida outros vícios, além da inconstitucionalidade da norma, designadamente o da ilegalidade e ofensa de normas do Código Penal, nada retira à alegação de inconstitucionalidade e não pode ser usado como fundamento da rejeição do recurso. A menos que se procure um pretexto para não receber o recurso.'
2. Notificado para se pronunciar sobre a reclamação apresentada, o Ministério Público respondeu que:
'1 – Está presentemente definido na jurisprudência constitucional – embora de forma não unânime, mas por larga maioria, na esteira do acórdão nº 674/99 – que não constitui questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para suportar um recurso de fiscalização concreta, a análise de uma possível inconstitucionalidade do processo interpretativo seguido pelo tribunal «a quo» no preenchimento dos elementos da fattispecie de um tipo legal, em áreas, como o processo penal, constitucionalmente submetidos ao princípio da legalidade.
2 – E traduzindo tal processo interpretativo realização de uma interpretação alegadamente extensiva ou de cariz analógico dos elementos do tipo.
3 – Tal jurisprudência encontra, aliás, apoio, como decorre do citado acórdão, na doutrina mais recente acerca da idoneidade do objecto da fiscalização concreta – Rui Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade.
4 – Na verdade, tal processo interpretativo, seguido pelo tribunal «a quo» mostra-se absolutamente indissociável das circunstâncias específicas do caso concreto – sendo a conclusão ou resultado interpretativo obtido pelo tribunal insusceptível de vocação para uma aplicação generalizante – o que implica que a possível e alegada inconstitucionalidade – a ter existido – é exclusivamente de imputar, de forma directa, à própria decisão judicial impugnada.
5 – É esta jurisprudência que naturalmente deverá aplicar-se à dirimição do caso dos autos, sendo certo que, na sua argumentação, o reclamante nada aduz de inovatório, que não tenha sido já ponderado pelo Tribunal Constitucional, nomeadamente na posição que fez vencimento no citado acórdão nº 674/99.
6 – Pelo que deverá, em conformidade, improceder a presente reclamação.'
3. Como sublinha o Ministério Público na resposta à reclamação deduzida por BP – e como se dizia já na decisão sumária reclamada –, o Tribunal Constitucional tem considerado, embora não por unanimidade, que não constitui questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de ser apreciada em recurso de fiscalização concreta, a análise de uma possível inconstitucionalidade do processo interpretativo seguido pelo tribunal a quo no preenchimento dos elementos definidores de um determinado tipo legal, em domínios em que vigora o princípio da legalidade.
Na verdade, tem entendido este Tribunal que uma interpretação alegadamente extensiva ou analógica dos elementos do tipo, em matéria penal (ou fiscal), feita pelo tribunal a quo, é indissociável das circunstâncias do caso e, por isso, a eventual inconstitucionalidade é de imputar à decisão judicial e não à norma aplicada.
Disse o Tribunal Constitucional no acórdão nº 674/99 (Diário da República, II Série, nº 47, de 25 de Fevereiro de 2000, p, 3856 ss), onde se discute amplamente esta questão e se faz uma análise da jurisprudência anterior sobre a matéria:
'[...] Ora, tal questão – por não respeitar a uma inconstitucionalidade normativa, mas antes a uma inconstitucionalidade da própria decisão judicial – excede os poderes de cognição do Tribunal Constitucional, uma vez que, entre nós, não se encontra consagrado o denominado recurso de amparo, designadamente na modalidade do amparo contra decisões jurisdicionais directamente violadoras da Constituição. De todo o modo, mesmo que se entendesse que este Tribunal ainda era competente para conhecer das questões de inconstitucionalidade resultantes do facto de se ter procedido a uma constitucionalmente vedada integração analógica ou a uma
«operação equivalente», designadamente a uma interpretação «baseada em raciocínios analógicos» (cfr. declaração de voto do Consº Sousa e Brito ao citado Acórdão nº 634/94, bem como o já mencionado Acórdão nº 205/99), o que sempre se terá por excluído é que o Tribunal Constitucional possa sindicar eventuais interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade. Aliás, se assim não fosse, o Tribunal Constitucional passaria a controlar, em todos os casos, a interpretação judicial das normas penais (ou fiscais), já que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (ou fiscal)
[...]. Ora, um tal entendimento – alargando de tal forma o âmbito de competência do Tribunal Constitucional – deve ser repudiado, porque conflituaria com o sistema de fiscalização da constitucionalidade, tal como se encontra desenhado na Lei Fundamental, dado que esvaziaria praticamente de conteúdo a restrição dos recursos de constitucionalidade ao conhecimento das questões de inconstitucionalidade normativa [...].'
4. A reclamação agora apresentada não contém argumentos novos que levem a alterar esta jurisprudência. Aliás, dentro da perspectiva adoptada maioritariamente por este Tribunal, que acaba de ser referida, o teor da reclamação vem confirmar, com transcrições de peças constantes do processo e com novas afirmações, que está a ser impugnada a aplicação ao caso da norma do artigo 420º, nº 1, do Código Penal de 1982, isto
é, a operação de subsunção, e, consequentemente, a própria decisão judicial que condenou o ora reclamante pela prática de um crime de corrupção passiva previsto e punível por aquela norma.
Assim:
'[...]
16. Sucede que, a norma do artigo 420º do Código Penal de 1982, só se tornou inconstitucional no exacto momento em que foi interpretada como se no seu texto estivesse escrito conduta relacionada com o cargo exercido em vez de: conduta que implique violação dos deveres do cargo. E isto pela simples razão que, se o preceito for lido, constata-se que no mesmo se encontra escrito: violação dos deveres do cargo e não conduta relacionada com o cargo.
17. Ora, o preceito constitucional citado, artigo 29º nº 1, exige que a conduta alegadamente criminosa seja punida antes dos factos serem praticados. A Relação de Coimbra e o tribunal de primeira instância ao substituírem a noção de violação dos deveres do cargo pela expressão conduta relacionada com o cargo, realidade totalmente diferente, quer se queira quer não se queira, usaram uma norma do Código Penal para punir uma conduta que não era punida pela lei penal, consistindo o modo técnico de alcançar esse desiderato, pura e simplesmente, na transformação da norma base da decisão numa norma inconstitucional, numa norma em branco.
[...]
19. Antes da norma ser submetida à interpretação que fez com que uma conduta não punida penalmente fosse punida a norma não era inconstitucional. A norma passou a ser inconstitucional no exacto momento em que foi interpretada e aplicada, como sucedeu na decisão do Tribunal de Coimbra e no acórdão da Relação de Coimbra.
[...].'
5. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide confirmar a decisão sumária reclamada, de 16 de Outubro de
2000, que não tomou conhecimento do recurso. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 5 de Dezembro de 2000- MARIA Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida