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Processo n.º 598/98
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto
Acórdão na 2ª Secção do Tribunal Constitucional I. Relatório
1. Em de Junho de 1996, M..., intentou, no Tribunal do Trabalho de Lisboa, acção declarativa, emergente do contrato individual de trabalho, com processo sumário, contra a P..., S.A., para que lhe fosse reconhecido e pago o direito ao subsídio de refeição durante as licenças de maternidade ocorridas entre 25 de Fevereiro e
16 de Junho de 1995 e 15 de Maio e 12 de Agosto de 1997, desde logo invocando a inconstitucionalidade do disposto na parte final do artigo 9º do Decreto-Lei n.º
136/85, de 3 de Maio. Por sentença de 16 de Março de 1998 do 4º Juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa foi a acção julgada procedente, tendo-se, designadamente, considerado o seguinte a propósito da questão de constitucionalidade suscitada:
'A Autora alega que com a sua conduta a Ré viola o artigo 13º da C.R.P- que consagra o princípio da igualdade. Também entende que o artigo 9º do DL n.º 136/85, de 3 de Maio, é inconstitucional por se encontrar em insanável contradição com o artigo 13º da C.R.P.. Invoca para tanto o disposto no DL n.º 135/85, de 3 de Maio. Este contém o regime aplicável aos trabalhadores da administração pública central, regional e local, dos Institutos Públicos, dos serviços públicos, dos serviços públicos com autonomia administrativa e financeira e demais pessoas colectivas de direito público. Este diploma, ao contrário do DL n.º 136/85, de 3 de Maio, determina expressamente que na situação de licença de maternidade as mulheres trabalhadoras mantêm o abono do subsídio de refeição (vide artº 7º). Ora o artigo 9º do DL 136/85 estatui que:
‘as licenças, dispensas e faltas previstas nos artigos 9º, 10º,11º,13º e 23º da Lei n.º 4/84, de 5 de Abril, não determinam perda de quaisquer direitos, sendo consideradas, para todos os efeitos, como prestação efectiva de trabalho, salvo quanto à remuneração’. No caso concreto não vislumbramos por parte da Ré ou dos AE tidos como aplicáveis qualquer discriminação em razão ao sexo. Na realidade, não se provou que a Ré pague subsídio de refeição aos seus trabalhadores do sexo masculino durante o período de licença de paternidade. Mas e quanto às trabalhadoras a que se destina o DL n.º 135/85? Haverá a supra referida inconstitucionalidade? Entendemos afirmativamente.
É certo que o princípio da igualdade não exige uma parificação absoluta.
‘Impõe, sim, que a disciplina jurídica seja igual quando são uniformes as condições objectivas das hipóteses reguladas, e desigual quando falte tal uniformidade.’ Esta ideia encontra-se expressa pelo recurso a fórmulas diversas, mas próximas e complementares entre si, nomeadamente a de tratamento igual para aquilo que é essencialmente igual, e desigual para aquilo que é essencialmente desigual; regulação igual para o que for substancialmente igual; normas comuns a todas as situações que objectivamente não requeiram ou não consintam regras diferentes, e vice-versa; tratamento semelhante aos que se acham em situações semelhantes... Além destas imagens, a jurisprudência recorre também à ideia da analogia
(susceptibilidade de aplicação analógica, e analogia relevante) – vide neste sentido Martim de Albuquerque, da Igualdade, Introdução à Jurisprudência, pág.
333. In caso, é manifesto que o regime laboral da Autora – para quem vigora o regime de contrato individual de trabalho – não é igual ao das trabalhadoras às quais se destina o DL n.º 135/85. No entanto, salvo o devido respeito por opinião diversa, não vislumbramos qual o motivo pertinente, o fundamento, a justificação racional da diferença de tratamento no tocante ao subsídio de alimentação em face do estatuído na CRP e na Lei n.º 4/94.
É que a situação de maternidade que a Constituição visou proteger é igual para todas as mulheres qualquer que seja o seu regime laboral. Assim, afigura-se-nos que a norma em causa enferma de inconstitucionalidade material por violação do princípio da igualdade contido no artigo 13º da CRP. E em simultâneo também nos parece sustentável que se esteja perante um caso de inconstitucionalidade material (por omissão) em relação ao disposto no artigo
68º, n.º 3 da CRP; embora o facto de o artigo 9º do DL n.º 136/85 não referir expressamente o direito ao recebimento de subsídio de refeição durante a licença de maternidade não signifique a sua exclusão ou que o mesmo não seja devido. Tal como refere o Prof. Jorge Miranda ‘algumas omissões parciais implicam, desde logo, inconstitucionalidade por acção, por violação do princípio da igualdade, sempre que acarretam um tratamento mais favorável ou desfavorável prestado a certas pessoas, e não a todas as que, estando em situação idêntica ou semelhante, deveriam também ser contempladas do mesmo modo pela lei.
É então que, reagindo contra o arbítrio, mais se propicia a intervenção dos Tribunais a declararem inconstitucionais as normas legais que contenham essas omissões ou, eventualmente, a estenderem ou a reduzirem o seu âmbito’ - Manual de Direito Constitucional, Tomo II, 3ª edição, pág. 522. Daí que a nosso ver, salvo o devido respeito por opinião diversa, se deva afastar a aplicação ao caso concreto por inconstitucionalidade material do disposto no artigo 9º do DL n.º 136/85, de 3 de Maio, no tocante ‘à remuneração’.'
2. De tal decisão foi interposto, pelo magistrado do Ministério Público em funções no referido Juízo, o recurso obrigatório previsto no n.º 3 do artigo 72º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo
70º da mesma lei. Nas alegações produzidas neste Tribunal, concluiu assim o Exmº. Procurador-Geral Adjunto aqui em funções:
'1º A norma constante do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 136/85, de 3 de Maio, ao estabelecer – em consonância, aliás, com o preceituado no artigo 18º da Lei n.º
4/84, de 5 de Abril – que as faltas ao trabalho, decorrentes do exercício da licença de maternidade por trabalhadoras sujeitas ao regime do contrato individual de trabalho não determinam perda de quaisquer direitos, salvo quanto
à remuneração, não implica violação do princípio da igualdade, nem de qualquer outro preceito ou princípio da Lei Fundamental.
2º Na verdade – e em consequência de, no âmbito do sector privado, a protecção social dos trabalhadores estar cometida às entidades que integram o sistema de segurança social – é plenamente justificado e adequado que tal direito à remuneração não seja exercitável, durante o período de licença, no confronto da entidade patronal, sendo antes exigível, sob a forma de prestações pecuniárias típicas dos regimes de segurança social, das entidades e instituições a que está cometida a protecção social dos trabalhadores.
3º Estando cometida ao Estado a protecção social dos funcionários e agentes ao seu serviço, integrados na função pública, tem naturalmente de ser a Administração a custear as prestações típicas dos regimes de protecção social, não representando
– perante tal situação – qualquer discriminação em favor dos trabalhadores da função pública a circunstância de a lei lhes outorgar, no confronto do Estado, direito à remuneração por inteiro, durante o período de licença de maternidade.
4º Termos em que deverá proceder o presente recurso, em consonância com o juízo de constitucionalidade da norma desaplicada.' Por sua vez, a Autora encerrou as suas alegações desta forma:
'A - A circunstância de, no âmbito do sector privado, a protecção social estar cometida às entidades que integram e asseguram o sistema de segurança social não desobriga essa entidades – e o legislador que sobre tal matéria estatui – de acatar integralmente o preceito constitucional contido no art.º 68º, n.º 3, segundo o princípio da igualdade contemplado no art.º 13º, também da C.R.P.; B - Porquanto a situação de maternidade, que a Constituição visou especialmente proteger, é igual para todas as mulheres, independentemente do seu regime laboral; C - Especial protecção que, expressamente, se traduz no direito à retribuição e
à manutenção de quaisquer regalias, como se estivessem ao serviço; D - Não sendo assim expressamente contemplado no art.º 9º do Dec.-Lei 136/85, diferentemente do expressamente estatuído no art.º 7º do dec. lei 135/85, aquele preceito viola, por omissão, a disposição constitucional; E - Não merece censura a sentença que desaplicou tal norma por inconstitucionalidade material, consequentemente deve improceder o presente recurso e ser confirmado o juízo de inconstitucionalidade formulado.'
3. Corridos os vistos legais cumpre apreciar e decidir, começando por delimitar o objecto do recurso ponderando a objecção suscitada nas referidas alegações do Ministério Público:
'2.2. Posto isto, afigura-se que a única questão que faria sentido debater nestes autos consistiria em saber se as normas que atribuem às trabalhadoras do sector privado certo montante a título de subsídio de maternidade, ‘maxime’ os artigos 31º do Decreto-Lei n.º 136/85 e o artigo 9º do Decreto-Lei n.º 154/88, que lhe sucedeu – se interpretados em termos de não integrarem em tal subsídio o montante do subsídio de refeição atinente ao período de duração daquela licença
– violam o referido princípio da igualdade (já que, como se referiu, no âmbito da função pública, a lei afirma expressamente que a remuneração devida integra o abono do subsídio de refeição). Não é, porém, pertinente analisar tal questão de constitucionalidade no caso dos autos, por duas razões:
– em primeiro lugar, tratando-se do recurso fundado na alínea a) do n.º do artigo 70º da Lei n.º 28/82, é evidente que o seu objecto nunca poderia ir além da apreciação da constitucionalidade da norma cuja aplicação foi recusada – sendo certo que tal recusa se circunscreve claramente ao segmento final da norma constante do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 136/85;
– em segundo lugar, porque tal questão está, afinal, precludida, face
à solução dada ao litígio – e que consistiu em a decisão recorrida ter seguido
(fls. 143) a corrente que entende que, quando pago com regularidade, o subsídio de refeição integra o conceito de retribuição – matéria que, como é evidente, não cumpre apreciar no âmbito deste recurso.' II. Fundamentos A) Objecto do recurso
4. É a seguinte a redacção do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 136/85, de 3 de Maio:
'Artigo 9º
(Regime das faltas, licenças e dispensas) As licenças, dispensas e faltas previstas nos artigos 9º, 10º, 11º, 13º e 23º da Lei n.º 4/84, de 5 de Abril, não determinam perda de quaisquer direitos, sendo consideradas, para todos os efeitos, como prestação efectiva do trabalho, salvo quanto à remuneração.' Tal norma constitui praticamente uma reprodução do disposto no artigo 18º da Lei n.º 4/84, de 5 de Abril (que estabeleceu o regime jurídico da protecção da maternidade e paternidade), com excepção da referência ao artigo 23º dessa lei, que dispõe para 'Outros casos de assistência à família':
'Artigo 18.º
(Regime das faltas e das dispensas) As faltas ao trabalho previstas nos artigos 9º [sobre licença por maternidade],
10º [assistência a menores deficientes], 11º [adopção] e 13º [assistência a menores doentes] não determinam perda de quaisquer direitos, sendo consideradas, para todos os efeitos, como prestação efectiva do trabalho, salvo quanto à remuneração.' Por sua vez, o artigo 34º, n.º 1, do referido Decreto-Lei n.º 136/85 prevê o montante do subsídio de maternidade, como igual ao valor da remuneração média considerada para efeitos de cálculo do subsídio de doença, sem que isso prejudique a atribuição de subsídios de montante fixo, legalmente fixado (n.º
2). Segundo o artigo 7º do Decreto-Lei n.º 135/85, de 3 de Maio, que regulamentou, no âmbito da Administração Pública, aquela Lei n.º 4/84:
'As licenças a que se referem os artigos 9º, 10º e 11º da Lei n.º 4/84, de 5 de Abril, e os artigos 2º e 3º do presente diploma são consideradas, para todos os efeitos legais, como prestação efectiva de trabalho, designadamente para efeitos de antiguidade e abono do subsídio de refeição.'
5. Uma vez que o juízo de inconstitucionalidade formulado pelo tribunal recorrido se refere ao inciso final daquela primeira norma, há, preliminarmente, que apurar qual o sentido desse juízo de inconstitucionalidade. Este, em abstracto, não se dirige à inexistência de qualquer prestação a que a trabalhadora tenha direito durante o período de licença de maternidade, pois tal prestação é assegurada, no âmbito do sector privado, pelas entidades que integram o sistema de segurança social, através do subsídio de maternidade. Assim, tal juízo poderia dirigir-se à natureza da prestação, à entidade responsável pelo seu pagamento e, ou, ao seu quantitativo (na perspectiva, designadamente, de uma desigualdade, tanto para mais, como para menos – embora o caso tenha sido suscitado pela diminuição da remuneração, e, portanto, só essa interessando discutir). Quanto à entidade responsável pelo pagamento da 'remuneração', cessando a prestação de trabalho à entidade empregadora, a manutenção dos direitos do trabalhador decorrentes dessa prestação de trabalho constitui uma imposição que, em sede de direito privado, não terá de estender-se ao pagamento pela entidade patronal da remuneração do trabalhador; muito menos parece poder tingir-se de inconstitucionalidade uma transferência de responsabilidades da entidade empregadora para uma outra entidade, transferência, essa, aliás, que não tem que interferir com a posição do trabalhador. Quanto à natureza da prestação, com a cessação da prestação do trabalho, o subsídio de maternidade é concedido 'na presunção da perda de remuneração decorrente da prestação de trabalho', destinando-se, justamente, 'a compensar essa perda' (Artigo 4º do Decreto-Lei n.º 154/88, de 29 de Abril, que revogou o Capítulo III do Decreto-Lei n.º 136/85, de 3 de Maio). Ou seja: tendo em conta que, durante a licença de maternidade, as trabalhadoras abrangidas pelo sistema de segurança social perdem a contraprestação retributiva do seu trabalho por parte da entidade empregadora, passando a auferir um subsídio de maternidade pago pelo sistema de segurança social, dúvidas não restam de que as faltas ao trabalho por motivo de licença por maternidade, não determinando perda de outros direitos, podem levar à mudança da entidade responsável pelo pagamento à trabalhadora e a uma alteração na natureza da prestação monetária recebida por esta, que passa a visar compensar a perda de remuneração decorrente da prestação de trabalho. Resta, portanto, como sentido possível do juízo de inconstitucionalidade, a determinação do seu montante em medida menor do que o da remuneração. Porém, a interpretação que foi dada à forma de cálculo do montante do subsídio de maternidade não torna possível extrair um tal sentido da norma. Como notou o Ministério Público no Tribunal Constitucional, o que estava em causa na situação dos autos era, tão-só, apurar se o montante pago a título de subsídio de refeição devia, ou não, integrar o montante pago a título de subsídio de maternidade, sendo que tal dependia das normas que regulam o pagamento deste subsídio no caso de trabalhadoras abrangidas pelo regime jurídico do contrato individual de trabalho, e não do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 136/85, de 3 de Maio, que se refere, como excepção à regra da manutenção de direitos, à remuneração – a toda a remuneração.
6. Desaplicadas pela decisão do 4º Juízo do Tribunal de Trabalho de Lisboa foram, igualmente, as cláusulas dos Acordos de Empresa vigentes nos períodos em que decorreram as duas licenças de maternidade referidas em 1, na parte em que tais cláusulas excluíam a percepção do subsídio de refeição para as trabalhadoras em licença de maternidade. E foram-no com fundamento em desconformidade com normas constitucionais, como resulta de vários passos da decisão ('Mas obviamente que um AE não derroga um preceito constitucional'; os usos da empresa 'também não podem contrariar as normas da Lei Fundamental.'). Isto, embora tais normas de regulamentação colectiva das relações de trabalho não venham indicadas no requerimento de interposição de recurso (e, também por isso, delas se não pudesse conhecer), não pudessem, sequer, justificar a interposição deste em cumprimento do disposto no n.º 3 do artigo 72º da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro (como foi o caso), nem pudessem constituir, a se, objecto de controlo da constitucionalidade (cfr., sobre isto, os Acórdãos n.ºs
637/98 e 697/98, ainda inéditos, que remetem para os Acórdãos n.ºs 172/93 e
209/93, publicados no Diário da República, II Série, de 18 de Junho de 1993 e de
1 de Junho de 1993 e também no 24º volume dos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1993, pág. 451 a 476 e 537 a 547). As cláusulas dos Acordos de Empresa efectivamente desaplicadas pela decisão recorrida com fundamento em desconformidade constitucional estão, pois, excluídas da apreciação deste Tribunal.
7. Posto isto, há-de dizer-se que resulta perfeitamente claro da decisão recorrida qual o sentido da inconstitucionalidade expressamente imputada à norma do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 136/85, e qual o seu fundamento. Como decorre da transcrição efectuada supra (ponto 1), o que é tido por inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, é o facto de as trabalhadoras a que fosse aplicável o Decreto-Lei n.º 135/85 terem uma diferença de tratamento no tocante ao subsídio de alimentação em relação àquelas outras a que fosse aplicável o Decreto-Lei n.º 136/85. Chegada a este ponto, a decisão recorrida interroga-se sobre a necessidade de aplicar a estas o regime previsto no Decreto-Lei n.º 135/85, concluindo que não se torna necessário fazê-lo porquanto a Autora nunca podia ser prejudicada, fizesse o subsídio de refeição parte da remuneração ou não. Mas concluindo que fazia – 'atento o disposto no art. 82º da LCT, seguimos a corrente que entende que quando pago com regularidade – como era o caso – pois o direito ao mesmo decorria da legislação colectiva, o subsídio de refeição integra o conceito de retribuição.' Na medida em que a norma do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 136/85 é uma norma de princípio que não se refere a qualquer outra prestação 'sucedânea' (prevendo apenas, na parte que ora interessa, o afastamento do direito à remuneração), que o direito das trabalhadoras ao subsídio de maternidade se concretiza em outras normas, e que as normas de cálculo do montante do subsídio de maternidade foram aplicadas numa acepção que exclui um tal sentido, dir-se-ia que o presente caso
é, como os decididos pelos Acórdãos n.ºs 206/92 e 350/92, publicados no Diário da República, II Série, de 12 de Novembro de 1992 e de 16 de Março de 1993 (cfr. também o Acórdão n.º 462/94, publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Novembro de 1994) um caso de falsa recusa de aplicação de normas. Parafraseando aqueles arestos dir-se-ia que tudo se passava como se o Tribunal de Trabalho de Lisboa, na sua sentença de 16 de Março de 1998, se tivesse limitado a afirmar que não atenderia ao disposto na parte final do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 136/85 se o subsídio de refeição não fosse considerado parte integrante na retribuição.
8. Entende-se, porém, ao contrário do que se verificava nas decisões citadas, que não se está no presente caso 'perante um simples obiter dictum ou em face de uma simples opinião ad ostentationem em matéria de inconstitucionalidade'. Na verdade, se bem que se não possa conhecer da constitucionalidade das cláusulas dos Acordos de Empresa (pelos motivos já expostos), certo é que a recusa da sua aplicação na decisão recorrida por directa inconstitucionalidade teve, também, de passar pela recusa do sentido 'diferenciador' da parte final do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 136/85 – caso contrário tais acordos estariam cobertos pelo sentido desta norma legal enquanto esta afasta a manutenção do direito à remuneração. É verdade que a desconformidade das cláusulas dos Acordos de Empresa é referenciada directamente à Constituição, como já se viu. Mas não é menos verdade que sem o afastamento, por inconstitucionalidade, da parte final do artigo 9º daquele diploma, não se poderia invocar uma directa inconstitucionalidade das cláusulas dos Acordos de Empresas. Por outro lado, a expressa imputação de inconstitucionalidade ao artigo 9º do Decreto-Lei n.º 136/85 entendido no sentido de não se manter o direito a uma integral remuneração (designadamente, que inclua o subsídio de maternidade), e a consequente recusa de aplicação da norma com esse sentido, foram, segundo a decisão recorrida, a razão para se decidir a condenação da Ré no pagamento deste subsídio de alimentação. Pode dizer-se, pois, em suma, que uma das dimensões aplicativas da norma impugnada foi afastada pela decisão recorrida com fundamento em inconstitucionalidade – a parte final dessa norma, que permitiria sustentar os Acordos de Empresa enquanto estes excluem a manutenção de um direito à integral remuneração. Há, portanto, que tomar conhecimento do recurso, tendo como objecto a apreciação da conformidade constitucional da parte final do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 136/85, enquanto exclui o direito à remuneração integral, abrangendo o subsídio de refeição, sem que o pagamento deste esteja assegurado por forma 'sucedânea' (designadamente, incluído no subsídio de maternidade). B) Questão de constitucionalidade
9. A decisão recorrida afastou, com boas razões, qualquer violação do princípio da igualdade em razão do sexo, mas concluiu 'que o regime laboral da Autora – para quem vigora o regime individual de trabalho – não é igual ao das trabalhadoras às quais se destina o DL n.º 135/85', enquanto que 'a situação de maternidade que a Constituição visou proteger é igual para todas as mulheres qualquer que seja o seu regime laboral.' Todavia, este argumento prova demais: se a situação de maternidade é igual para todas as mulheres, então o tratamento conferido a todas devia ser igual, incluindo os quantitativos percebidos nessa situação. Como, evidentemente, não é uma igualdade formal que está em causa, há que atender a índices de diferenciação material. Um desses índices é a situação laboral da parturiente: ter ou não ter actividade profissional determina uma primeira diferenciação, e ter ou não ter uma actividade por conta de outrem determina outra diferenciação. Para quem exerce uma actividade laboral por conta de outrem, fazê-lo para a administração pública (em sentido lato) ou para o sector privado introduz outra diferenciação, traduzida em dois regimes diferentes – o da função pública e o do contrato individual de trabalho –, com todas as diferenças inerentes a esses regimes, globalmente considerados: diferentes jurisdições, diferentes regras quanto à constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego, diferentes regras contributivas e regimes de assistência na doença e reforma, diferentes entidades responsáveis pelo pagamento dessas prestações. Por outro lado, a regulamentação legislativa das relações laborais de direito privado através de normas imperativas, destinadas a proteger a trabalhadora durante o período da maternidade, reveste-se de um sentido evidentemente distinto do da regulamentação da situação das trabalhadoras da administração pública central, regional e local (e, mesmo, dos institutos públicos, serviços públicos, serviços públicos com autonomia administrativa e financeira e demais pessoas colectivas de direito público). Neste último caso, o Estado não se limita a impor um determinado nível de protecção, mas, além disso, compromete-se (ou compromete os seus serviços ou entes personalizados aos quais reconhece poderes públicos) a assegurar um determinado nível de protecção, que não se vê porque não há-de poder ser mais elevado do que aquele que se impõe aos particulares assegurar. Ora, nada impede que o Estado, ali onde entenda que o pode e deve fazer, preveja para os seus trabalhadores regalias suplementares, que não impõe que os particulares assegurem, como pode ser o caso do pagamento de subsídio de refeição durante o período de licença de maternidade, incluído no respectivo subsídio (isto, independentemente de saber se a solução preferível, mesmo de iure condito, é a de considerar que se mantém o direito ao subsídio de refeição). Na verdade, o Estado não está, no caso do Decreto-Lei n.º 135/85, a actuar apenas como regulamentador de relações de trabalho alheias, estabelecidas entre particulares aos quaqis impõe a garantia de determinadas prestações. Está a prever o regime jurídico das relações de trabalho na própria Administração Pública, bem podendo visar, com a concessão de regalias suplementares que não impõe aos particulares, por exemplo, finalidades de incentivo acrescido dos seus trabalhadores, ou de protecção social acrescida associada à prestação de trabalho para o Estado (ou, ainda, de protecção, ainda que mediata, da dignidade das respectivas funções e do estatuto de trabalhador da função pública – embora tal interesse pareça menos próximo do ponto de regulamentação em causa nos presentes autos).
10. Pretender fazer valer uma igualdade formal em matéria de uma regalia específica ou norma específica, desconsiderando todo o universo de diferenças que a justifica, bem como o sentido da própria regulamentação globamente considerada que a impõe (diverso, como se disse, perante relações de direito privado e no domínio público), seria desconsiderar o próprio sentido do princípio da igualdade, que exige o tratamento diferenciado do que é diferenciado tanto quanto exige o tratamento igual do que é igual. Sendo certo, aliás, que a igualação de uma circunstância pode, no conjunto, agravar a desigualdade – basta que tal igualização se faça a favor da parte mais favorecida em todas as outras circunstâncias, menos naquela. E, evidentemente, não é possível uma comparação exaustiva de todos os pontos de desigual tratamento entre trabalhadoras do sector público e trabalhadoras do sector privado, sendo da mesma forma inadequado escamotear essas diferenças por convocação de uma igualdade específica de circunstâncias. Até porque, então, mais razões haveria para pretender operar uma igualização de todos os distintos regimes privados e de todas as especificidades dos regimes públicos, bem como entre aqueles e estes. Em suma: recusa-se que o contraste entre a redacção do artigo 7º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 135/85 e a do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 136/85 seja censurável por se dever reivindicar, a propósito da licença de maternidade, uma paridade de toda e qualquer solução imposta nas relações de trabalho privadas e asseguradas pelos empregadores públicos. A situação das parturientes vinculadas ao regime da função pública e a das vinculadas ao regime do contrato individual de trabalho é diferente, tal como diverso é o sentido da regulamentação e garantia dos seus direitos nas relações de direito privado e perante empregadores públicos (v., sobre estas diferenças, recentemente, Ana Fernandes Neves, Relação jurídica de emprego público. Movimentos fractais. Diferença e repetição , Coimbra, 1999, esp. págs. 49 e segs.). Ora, sendo as situações laborais em causa diversas, evidente se torna a inadequação da invocação do princípio da igualdade – que, aliás, levaria, no limite, à uniformidade de regime. III. Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a. Não julgar inconstitucional a parte final do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 136/85, de 3 de Maio, na parte em que determina que não se mantenha o direito à remuneração sem que o subsídio de alimentação esteja incluído no subsídio de maternidade; b. Em consequência, conceder provimento ao recurso, determinando a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta. Lisboa, 7 de Dezembro de 1999 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma Luís Nunes de Almeida