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Processo n.º 39/00
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto Acordam em conferência no Tribunal Constitucional: I. Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, em que figuram como recorrentes M..., AV..., J... e JS..., e como recorrido o Ministério Público, o Relator proferiu decisão sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade, porquanto a
'referência da desconformidade constitucional à decisão – sem sequer a referir à norma do n.º 2 do artigo 291º do Código de Processo Penal ou sem se individualizar de forma clara a interpretação do n.º 1 do mesmo artigo 291º que pretendem ver apreciada – não configura uma forma adequada, por perceptível, de suscitação da questão de constitucionalidade normativa durante o processo'. E acrescentou-se ainda 'que a norma do n.º 1 do artigo 291º do Código de Processo Penal, indicada no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade – além de não impugnada quanto à sua constitucionalidade, durante o processo e por forma adequada – não foi, sequer, aplicada na decisão recorrida', pelo que 'também por isso não se poderia conhecer do presente recurso'.
2. Inconformados, os recorrentes reclamaram para a conferência, nos termos do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, sustentando, em síntese,
'que o recurso, oportunamente interposto para este Tribunal, detém os requisitos legais e necessários para ser apreciado o seu objecto', porquanto
'[...]
4. no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal diz-se
‘Pretende-se ver apreciada a constitucionalidade das normas do artigo 291°, n.ºs
1 e 2, do Código de Processo Penal, na redacção dada pela Lei n.° 59/98, de 25 de Agosto: o na parte em que confere o carácter de irrecorrível ao despacho mencionado no n° 1 do referido artigo; o na parte em que restringe a repetição, em sede de instrução, dos actos e diligências de prova praticados no inquérito; o e ainda à interpretação das referidas normas com o sentido que lhe foi dado pela douta decisão em crise, isto é, considerando que a inquirição, requerida em sede de instrução, de testemunhas já ouvidas em sede de inquérito, corresponde à repetição de actos e diligências de prova praticados no inquérito. As normas indicadas e a sua interpretação no sentido que consta da douta decisão recorrida, violam, salvo o devido respeito, o disposto no artigo 32°, n° 5, da Constituição da República, e ainda o princípio constitucional do contraditório e o princípio constitucional da igualdade de armas processual’.
5. Sendo este o objecto do recurso interposto, é certo que a inconstitucionalidade normativa teria de ser suscitada durante o processo, dúvidas não restando que tal só poderia ter acontecido na reclamação apresentada pelos ora reclamantes em 04.05.1999 e relativa ao douto despacho de fls. 900.
6. No referido douto despacho de fls. 900, o Meretíssimo Juiz a quo indeferiu as requeridas inquirições das testemunhas indicadas, ao abrigo do disposto no artigo 291°, n.º 2 do C. P.P. com os fundamentos de já terem sido inquiridas no decurso do inquérito, com observância das formalidades legais e se afigurar assim desnecessário às finalidades de instrução a repetição de tais diligências probatórias.
7. Ou seja, e com o devido respeito por entendimento diverso, o Meretíssimo Juiz a quo, no despacho de fls. 900, aplicou a norma contida no artigo 291°, n° 2, do Código de Processo Penal, mas também a norma contida no n° 1, da referida disposição legal, pois só esta permite indeferir, por despacho irrecorrível, os actos requeridos que não interessarem à instrução, o que se reconduz, tão só, ao teor da douta decisão de fls. 900.
8. De outro modo, teríamos de concluir que, prevendo a lei a existência de despacho irrecorrível e a possibilidade de reclamação de tal despacho quando a decisão fosse expressamente fundamentada no n° 1, do artigo 291°, já possibilitaria o recurso ordinário se o fundamento operasse nas específicas condições do n.º 2 do citado artigo, o que não parece ser a interpretação correcta da lei.
9. Consignando a lei que o juiz pratica todos os actos necessários à realização das finalidades da instrução – artigo 290°, n° 1, do C.P.P. – eles abrangem os referidos no n° 2, do artigo 291°, só podendo ser indeferidos os que não interessarem à instrução, porquanto desnecessários à realização das finalidades da instrução, com fundamento, que será sempre implícito, mesmo que não mencionada a norma, no artigo 291°, n° 1, do C.P.P..
10. Ora, na reclamação apresentada pelos ora reclamantes do douto despacho de fls. 900, estes dizem, além do mais, que: ‘A não realização das diligências, indeferidas no douto despacho que antecede, levará, com o devido respeito, à violação do disposto no artigos 290°, n° 1, e 291°, n° 1, do Código de Processo Penal, pois são actos necessários à comprovação judicial da decisão que deduziu acusação, violando, a sua omissão, ainda o disposto no artigo 32°, n° 5, da Constituição da República, o princípio constitucional do contraditório e o princípio da igualdade de armas processual.’
11. Entendem os ora reclamantes ter sido suscitada de modo perceptível, (embora, reconheça-se, o pudesse ter sido de modo mais claro se o objectivo da reclamação não fosse obter o reparo da decisão mas antes abrir a possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional...) junto do Tribunal a quo, a questão da inconstitucionalidade, pois: a. é dito que a omissão das diligências indeferidas viola o disposto no artigo 32°, n° 5, da Constituição da República, o princípio constitucional do contraditório e o princípio da igualdade de armas processual; b. o indeferimento de tais diligências foi fundamentado, de modo implícito, no artigo 291°, n° 1, do Código de Processo Penal, que na sua referência normativa convoca o artigo 290°, n° 1, do mesmo diploma: a realização das finalidades de instrução; c. a aplicação do disposto nos artigos 291°, n.º 1 e 290°, n.º 1, do C.P.P. no sentido de indeferir as requeridas diligências probatórias por se entender não serem actos necessários à instrução viola o disposto no artigo 32°, n° 5, da Constituição da República, o princípio constitucional do contraditório e o princípio da igualdade de armas processual.
12. Mas, mesmo que assim não fosse, terá de ter-se em conta qual é a decisão recorrida no presente recurso, a qual como se infere do requerimento de interposição de recurso, é o douto despacho de fls. 925, proferido em 29.05.1999 que incidiu sobre a reclamação.
13. O douto despacho de fls. 925 aplica, no entendimento dos ora reclamantes, o artigo 291°, n° 1, do Código de Processo Penal, e aplica a referida norma no sentido de a mesma permitir o indeferimento da reinquirição de testemunhas já inquiridas, com o fundamento de que tal apenas serviria para protelar o andamento da instrução, fundamento esse claramente explicitado no artigo 291º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
14. Ou seja, a norma contida no artigo 291º, n.º 2, do C.P.P., reconduz-se sempre, na sua utilização, à aplicação da norma do artigo 291º, n.º 1, pois a repetição de diligências de prova praticadas no inquérito só poderá ser indeferida por não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo, nos termos previstos no artigo 291º, n.º 1, e por referência ao comando geral do artigo 290º, n.º 1, do C.P.P..
16. Como se infere do seu teor, a invocação na douta decisão recorrida do fundamento de as diligências requeridas ‘servirem apenas para protelar o andamento do processo’ é inovadora.
17. Como tal, ao aplicar, pela primeira vez, de modo implícito, esse segmento da norma do artigo 291º, n.º 1, do C.P.P., no douto despacho de fls. 925, o Tribunal a quo fá-lo no preciso momento processual em que esgota o seu poder jurisdicional, por tal decisão ser irrecorrível e não passível de nova reclamação.
18. Os ora reclamantes só poderiam, pois, suscitar a inconstitucionalidade normativa, em tal caso, no requerimento de interposição de recurso.
19. Assim, tendo o recurso interposto cumprido os pressupostos e requisitos legais para o seu conhecimento, não se verificam os pressupostos do artigo
78°-A, n° 1, da Lei do Tribunal Constitucional para ter sido proferida a decisão sumária ora reclamada.'
3. O Exm.º representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se, no sentido de que:
'1º A presente reclamação é manifestamente improcedente, já que se não mostram preenchidos os pressupostos do recurso de fiscalização concreta interposto com base na alínea b) do n° 1 do artigo 70° da Lei n° 28/82.
2° Assim, desde logo, não se mostra suscitada, em termos processualmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, nomeadamente na peça processual expressamente referenciada pelos ora reclamantes: a reclamação deduzida contra o despacho do juiz de instrução de fls. 900, que rejeitou a repetição de diligências probatórias já realizadas no curso do inquérito.
3° Na verdade - e sendo claramente perceptível que o n° 2 do artigo 291 ° do Código de Processo Penal, por evidentes razões de tutela do valor da celeridade processual, só em circunstâncias excepcionais consente na repetição, na fase de instrução, de actos e diligências já praticados no decurso do inquérito - cumpria aos ora reclamantes ter confrontado expressamente o tribunal a quo com a questão da concreta interpretação de tal norma que consideravam ter sido feita pelo tribunal e que reputavam de violadora das garantias de defesa.
4° Não bastando obviamente afirmar, de forma tabelar, genérica e infundamentada, que a omissão de realização de certas diligências requeridas violava o princípio constitucional do contraditório e da igualdade de armas, para se considerar aberta a via do dito recurso de fiscalização concreta, fundado na alínea b) do n° 1 do artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional.
5° Acresce que - a nosso ver - a questão da irrecorribilidade do despacho que, nos termos do n.º 2 do artigo 291º do Código de Processo Penal, indeferiu a pura e simples repetição de diligências já efectuadas no inquérito não se mostra sequer colocada nos autos em termos concludentes e adequados.
6º Na verdade, se os ora reclamantes consideravam inconstitucional tal limitação do direito ao recurso, deveriam ter procurado reagir contra o referido despacho judicial na ordem dos Tribunais Judiciais, questionando-o precisamente com base na alegada colisão com o disposto no artigo 32° da Constituição da República Portuguesa – interpondo, para tal, o respectivo recurso e reagindo, pelos meios adequados, à decisão que o não admitisse com tal fundamento legal.
7°
É que não faz sentido - por não ser comportamento processual adequado e concludente - pugnar pela pretensa inconstitucionalidade da existência de um limite legal à recorribilidade de certo despacho quando se não procurou sequer exercitar tal direito ao recurso, interpondo-o no prazo legal.
8° Em tal quadro processual. sempre seria inútil a pronúncia do Tribunal Constitucional sobre tal questão, já que um eventual juízo de inconstitucionalidade não faria obviamente renascer o prazo em que seria lícito impugnar, pelas vias normais, o despacho proferido pelo juiz de instrução sobre a não repetição das diligências de prova requeridas.' Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
4. Na decisão sob reclamação entendeu-se que não foi suscitada atempadamente perante o tribunal recorrido, antes de o seu poder jurisdicional sobre a matéria estar esgotado, uma questão de constitucionalidade normativa, por forma a poder desencadear a intervenção do Tribunal Constitucional, para reexame da decisão sobre essa questão de constitucionalidade normativa. Os reclamantes entendem, diversamente, que a questão de constitucionalidade foi suscitada de modo perceptível e adequado. Consultando os autos, verifica-se, porém, que as razões que invocam para tal conclusão não podem considerar-se procedentes. Assim, como se salientou na decisão sumária, 'durante o processo', isto é, antes do esgotamento do poder jurisdicional do tribunal a quo para prolação da decisão recorrida, os recorrentes salientaram que 'a não realização das diligências, indeferidas no douto despacho que antecede, levará, com o devido respeito, à violação do disposto nos artigos 290º, n.º 1, e 291º, n.º 1, do Código de Processo Penal', 'pois são actos necessários à comprovação judicial da decisão que deduziu a acusação, violando, a sua omissão, ainda o disposto no artigo 32º, n.º 5, da Constituição da República, o princípio constitucional do contraditório e o princípio da igualdade de armas processual'. É certo, pois, que, como afirmam na presente reclamação, foi 'dito que a omissão das diligências indeferidas viola o disposto no artigo 32°, n° 5, da Constituição da República, o princípio constitucional do contraditório e o princípio da igualdade de armas processual'. Mas tal não significa, porém, imputar uma inconstitucionalidade a uma (ou mais) norma(s), mas antes imputá-la à própria decisão judicial recorrida. Tal conclusão não é afectada pela afirmação de que 'o indeferimento de tais diligências foi fundamentado, de modo implícito, no artigo 291°, n° 1, do Código de Processo Penal, que na sua referência normativa convoca o artigo 290°, n° 1, do mesmo diploma: a realização das finalidades de instrução.' Na verdade – e mesmo desconsiderando o facto de as decisões (quer a de 1ª instância, quer a do Tribunal da Relação) invocarem expressamente o n.º 2, e não o n.º 1 do artigo
291º do referido Código (a que nos referiremos no número seguinte) –, o que é certo é que a imputação de uma desconformidade inconstitucional a uma decisão ou resultado decisório, como a que teve lugar, não pode considerar-se bastante, como suscitação de inconstitucionalidade do(s) fundamento(s) normativo(s) em que tal decisão se baseou (aliás, apenas de forma implícita, segundo os reclamantes). A inconstitucionalidade pode, efectivamente, residir no acto decisório, e não na norma aplicada na decisão. Não pode, pois, considerar-se que os reclamantes tenham durante o processo suscitado de forma clara e perceptível uma questão de constitucionalidade referida às normas cuja apreciação sub specie constitutionis pretendem agora obter do Tribunal Constitucional. O que os ora reclamantes – que reconhecem, aliás, que poderiam ter suscitado a questão de forma mais clara se tivessem como objectivo abrir a possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional – fizeram durante o processo, foi, isso sim, suscitar a ilegalidade e a inconstitucionalidade da decisão concreta, sem porém, sustentarem a desconformidade constitucional de uma norma, ou de uma sua interpretação, devidamente enunciada. Como se salientou na decisão sob reclamação, 'é, aliás, elucidativo que a decisão recorrida não faça qualquer referência à questão de constitucionalidade das normas que os recorrentes pretendem agora ver apreciadas, apenas concluindo
– não obstante não ter a norma do n.º 2 do artigo 291º do Código de Processo Penal sequer sido mencionada pelos recorrentes na reclamação de fls. 912 e segs.
– que ‘o art.º 291º n.º 2 do C.P.P. só permite a repetição das diligências praticadas no decurso do inquérito quando não forem observadas as formalidades legais ou tal repetição se torne indispensável às finalidades da instrução.’ '
5. Nem se diga, aliás, que apenas na decisão do Tribunal da Relação, de fls.
925, foi invocado que 'a reinquirição de testemunhas já inquiridas, com o fundamento de que tal apenas serviria para protelar o andamento da instrução'. Na verdade, mesmo concedendo à lógica dos ora reclamantes que o n.º 1 do artigo
291º do Código de Processo Penal também teria sido aplicado em tal decisão, essa afirmação não significa que apenas então foi aplicado o artigo 291º, n.º 1, mas tão-só que tal fundamento foi então explicitado. Ainda seguindo a lógica dos reclamantes – segundo a qual 'a norma contida no artigo 291º, n.º 2, do C.P.P., reconduz-se sempre, na sua utilização, à aplicação da norma do artigo 291º, n.º 1, pois a repetição de diligências de prova praticadas no inquérito só poderá ser indeferida por não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo, nos termos previstos no artigo 291º, n.º 1' – , a aplicação de tal norma do n.º 1 do artigo
291º teria já ocorrido também na decisão de 1ª instância, e já então existiria o
ónus de imputar a ela, e não apenas à decisão, a desconformidade com a Lei Fundamental. O facto de apenas na decisão de 2ª instância se invocar, além do artigo 291º, n.º 2, do citado Código, que as diligências requeridas eram indeferidas por se entender que apenas serviriam para protelar o andamento da instrução torna-se, assim, nessa lógica, irrelevante para o reconhecimento de um
ónus dos recorrentes de suscitar, logo após a decisão de 1ª instância, a questão de inconstitucionalidade, fosse da norma do artigo 291º, n.º 2, do Código de Processo Penal, fosse (se se entendesse que ela foi implicitamente aplicada com este n.º 2) da norma do seu n.º 1. Não pode considerar-se, pois, que os ora reclamantes tenham cumprido o ónus de suscitar de forma clara e perceptível, durante o processo, a questão de constitucionalidade normativa que agora pretendem ver apreciada.
6. A decisão sumária reclamada invocou ainda, como fundamento adicional para o não conhecimento do recurso, o facto de a decisão recorrida ter aplicado o n.º 2 do artigo 291º e não o seu n.º 1. Em face da conclusão alcançada quanto ao fundamento para não tomar conhecimento do recurso consistente na falta de suscitação, durante o processo, de qualquer questão de constitucionalidade normativa, torna-se porém, desnecessário dilucidar este ponto. Antes há que concluir, logo por aquele fundamento, que não pode tomar-se conhecimento do recurso, e que a decisão sob reclamação merece ser confirmada. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se: a. Indeferir a presente reclamação, e, confirmando a decisão sumária reclamada, não tomar conhecimento do recurso de constitucionalidade; b. Condenar os reclamantes em custas, fixando em 15 unidades de conta a taxa de justiça. Lisboa, 25 de Outubro de 2000 Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa