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Processo n.º 90/12
1ª Secção
Relator: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente a União Indiana e são recorridos o Ministério Público e A., foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 11 de janeiro de 2012.
2. Por acórdão de 27 de janeiro de 2005, o Supremo Tribunal de Justiça autorizou a extradição do recorrido A. para a União Indiana.
Alegando a violação das garantias prestadas pelo Estado requerente a Portugal, designadamente a violação do princípio da especialidade, este recorrido solicitou, junto do Tribunal da Relação de Lisboa, a sua imediata devolução às autoridades portuguesas.
Por despacho do relator, de 18 de maio de 2007, aclarado em 12 de junho de 2007, o tribunal declarou-se incompetente para ordenar a devolução do extraditado e indeferiu o requerido. Segundo este despacho, a alegada violação, a confirmar-se, apenas poderia justificar a responsabilização do Estado requerente no plano internacional, a qual não depende da atuação de qualquer tribunal português, e a utilização pelo extraditado dos meios de defesa adequados previstos no direito da União Indiana, sendo sintomática a inexistência de qualquer norma interna portuguesa que legitime a atuação pretendida.
Interposto recurso desta decisão, o Supremo Tribunal de Justiça acordou, em 13 de dezembro de 2007, em revogar o despacho recorrido, devendo ser substituído por outro em que se tome posição sobre a alegada violação do princípio da especialidade, ordenando-se, sendo o caso, a apresentação da prova pertinente, procedendo-se à audição da União Indiana, e decidindo-se em consequência. É a seguinte a fundamentação do decidido:
«Quanto a este último [princípio da especialidade], começou por se ver nele o interesse da proteção da soberania dos Estados. O facto de se ir para além daquilo que o Estado requisitado houvera autorizado e concedido, significava, por parte do Estado requisitante, o desprezo pelas condições impostas pelo Estado solicitado, e, nessa medida, por este mesmo. Daí que tal desrespeito pudesse ser tido como ofensa à própria soberania do Estado solicitado. O interesse na proteção da soberania foi depois combinado, ou até completamente substituído, pela proteção dos interesses do próprio extraditado. A ponto de o princípio da especialidade ser situado no âmbito dos direitos do homem. Nesta abordagem humanista do princípio, a especialidade seria até regra a observar em obediência ao costume internacional, e que vale mesmo na falta de disposições convencionais que a ela aludam. Houve até quem radicasse o princípio na al. a) do nº 3 do artº 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (cf. Anna Zaïri in “Le Principe de la Specialité de l’Extradition au Regard des Droits de l’Homme”, L.G.D.J., 1992, pág. 19 e segs., apud Mário Mendes Serrano in “Cooperação Internacional Penal I, Extradição. Transferência de Pessoas Condenadas”, C.E.J., pag.40).
O princípio da especialidade pretende afastar os “chamados pedidos fraudulentos”, em que se invoca um facto para fundamento da extradição e se acaba por julgar o extraditado por outro que se não invoca. Assim, segundo este princípio, entre nós consagrado no artº 16º da Lei 144/99, que seguiu de perto o disposto no artº 14º da Convenção Europeia de Extradição, ratificada por Portugal, o Estado que obteve a entrega de um acusado ou de um condenado não pode proceder, sem o consentimento do Estado que extradita, por factos anteriores diferentes daqueles pelos quais foi concedida a extradição, nem sujeitar o extraditado a pena ou medida diferentes daquelas pelas quais a extradição foi concedida. O nº 2 do artº 16º consagra o princípio com amplitude, proibindo, para além do mais, a simples perseguição por factos diferentes daqueles que presidiram à extradição. E não é nada de estranhar que o respeito pelo princípio da especialidade tenha sido arvorado em direito fundamental do extraditado, muito ligado ao princípio do acusatório, porque o extraditando, aquando da discussão da possibilidade da sua extradição, tem que ter acesso a um contraditório amplo. Tem que ter a possibilidade de se defender, face à factualidade que fundamenta o pedido, sem poder ser apanhado completamente de surpresa, já depois, quanto a procedimentos crime por factos ausentes do pedido de extradição.
5) A cooperação entre Portugal e os demais Estados rege-se, neste domínio, pelos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado português e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições da Lei 144/99, para além das do C.P.P. (artº 3ºda referida lei). O nosso ordenamento não prevê qualquer consequência específica para a violação do princípio da especialidade por parte do Estado requerente da extradição. E isto, a nosso ver, devido à especificidade do relacionamento entre dois Estados soberanos, como é o caso na extradição, o que, no fundo, redunda na constatação das características inerentes ao ramo de direito que é o direito internacional público.
Só que, nem por isso Portugal fica privado, enquanto Estado soberano solicitado, de reagir ao que se apure ter sido uma violação do princípio da especialidade. Antes do mais, e em termos gerais, pela via político-diplomática. Por essa via, o Estado português, através da Procuradoria Geral da República na qualidade de autoridade central, poderá pedir contas ao Estado relapso, solicitando-lhe a pertinente informação sobre a atuação dos seus tribunais, e no que toca ao que tiver sido alegado pelo extraditado. Depois, o Estado português poderá sempre invocar o desrespeito que tenha tido lugar, em futuros pedidos de extradição formulados pelo mesmo país, dificultando ou mesmo recusando novas extradições.
Não está excluída, à partida, a intervenção de instâncias de jurisdição internacional, ou de tribunais internos do Estado inadimplente que o requerente acione.
Resta aludir às possibilidades de reação dos tribunais internos portugueses.
6) Somos assim conduzidos a apreciar a bondade da decisão recorrida, e à luz do recurso interposto.
Este S.T.J., sem querer inviabilizar a extradição de AA, procurou no entanto rodeá-la de garantias, a prestar pelo Estado solicitante, que afastassem a eventualidade de o extraditado vir a sofrer tratamento, na União Indiana, incompatível com os direitos do extraditado e os princípios de cooperação, vigentes entre nós.
Entre essas garantias conta-se a do respeito pela regra da especialidade, da parte da União Indiana. E também neste particular foram prestadas garantias solenes ao Estado português.
Se, de facto, o Estado requisitante não cumpriu aquilo a que se comprometera, não podem as instâncias judiciárias portuguesas considerar-se completamente estranhas à situação.
Ora, a primeira questão que interessará apurar, é a de se saber se, realmente, houve ou não violação da garantia prestada, nos termos da qual só haveria procedimento contra o extraditado pelos factos apresentados como fundamento da extradição.
Depois, uma vez concluído que o extraditando está a ser “perseguido, detido, julgado, ou sujeito a qualquer outra restrição de liberdade por facto ou condenação anteriores à sua saída do território português, diferentes dos determinados no pedido de cooperação” (cf. artº 16º nº2 da Lei 144/99 de 31 de agosto), e não abrangidos por qualquer ampliação do pedido, então o Tribunal da Relação de Lisboa deverá daí tirar as devidas consequências.
Pelo menos, declarará resolvida a autorização concedida, de extradição, o que terá o significado de ter que se considerar a presença do recorrente, em território da União Indiana, ilegal.
Esta declaração deverá depois ser devidamente encaminhada para as instâncias do poder político, através da autoridade central em matéria de cooperação judiciária penal internacional, que é a Procuradoria Geral da República, a fim de, pela via diplomática, o Estado português tomar a atitude que for considerada mais conveniente».
3. Em cumprimento deste acórdão, o Tribunal da Relação de Lisboa acordou, em 14 de setembro de 2011, em resolver a autorização concedida para a extradição de A., por violação do princípio da especialidade tal como é entendido pelo ordenamento jurídico português. Com relevo para a presente decisão, lê-se neste acórdão, quanto à «determinação das consequências da violação verificada», o seguinte:
“Esta lei [Lei n.º 144/99, de 31 de agosto], tal como foi dito no despacho do relator e reafirmado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, não prevê, em termos gerais (…), «qualquer consequência específica para a violação do princípio da especialidade por parte do Estado requerente da extradição».
Isto não obsta a que, em caso de violação, o Estado português, para além de poder, eventualmente, vir a suscitar «a intervenção de instâncias de jurisdição internacional» (…) e de poder extrair do caso as devidas consequências políticas, não possa vir a reagir pela via político-diplomática, para o que será relevante o juízo formulado pelas instâncias judiciárias portuguesas, que não podem «considerar-se completamente estranhas à situação». Tal juízo, em caso de comprovada violação do princípio da especialidade, tal como ele é entendido pelo ordenamento jurídico português, deve, de acordo com o Supremo Tribunal de Justiça, fundamentar, pelo menos, a decisão de considerar ilegal o julgamento pelos novos crimes e de resolver a autorização concedida para a extradição”.
4. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação e a União Indiana interpuseram recurso desta decisão. Na sequência de reclamação da decisão de não admissão do recurso da União Indiana, o mesmo foi admitido para permitir à formação de julgamento a decisão sobre o estatuto processual da reclamante, incluindo a legitimidade.
Pelo acórdão recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu-se pela rejeição do recurso interposto pela União Indiana, por inadmissibilidade legal, e pela improcedência do recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando a decisão recorrida.
A questão prévia da recorribilidade por parte da União Indiana, Estado requerente do pedido de extradição, foi apreciada e decidida nos seguintes termos:
«Nos termos do art.º 58.º, da Lei 144/99, de 31/8, subordinado à epígrafe “Interposição de recurso e instrução do recurso”, estipula-se no n.º 1, que o Ministério Público e o extraditando podem recorrer da decisão final no prazo de 10 dias.
Nos precisos termos do art.º 49.º n.º 3, de tal Lei, dispõe-se expressamente que só cabe recurso da decisão final, competindo o julgamento à Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça.
E a posição que é atribuída ao Estado requerente da extradição é a de mero participante”, (art.º 47.º n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31/8), e “tem em vista possibilitar ao Estado requerente o contacto direto com o processo (...), bem como fornecer ao tribunal os elementos que entenda solicitar”.
A posição do Estado requerente à luz do preceito em causa é a de cooperar e não dificultar o andamento dos autos, tal como resulta do segmento normativo retrocitado, restringindo a sua esfera interventiva à de trazer ao tribunal os elementos de que careça dentro desse espírito de colaboração.
Uma posição, pois, de subalternidade em relação ao requerido e ao Estado requerido.
Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei 251/VII (p. 1224), que esteve na origem da Lei n.º 144/99, afirma-se que:
«Nos artigos 47.º e 69.º prevê-se a representação do Estado requerente no processo de extradição, figura até aqui desconhecida do processo extradicional português, mas conhecida de legislações de outros países, como é o caso de Espanha. Trata-se de um mecanismo assente na reciprocidade, que possibilitará o acompanhamento mais direto do processo por aquele Estado e o fornecimento de informações solicitadas pelo tribunal, assim se refletindo também preocupações de maior celeridade e eficácia desta cooperação».
O art. 14.º da Lei 4/1985 (Lei da Extradição Passiva) do Reino de Espanha (hoje com a redação da Lei 13/2009, de 3 de novembro), diz apenas o seguinte:
«1. Dentro de los quince dias seguintes al período de instrucción, el Secretario judicial señalará la vista que tendrá lugar con intervención del Fiscal, del reclamado de extradición, asistido, si fuera necesario, de intérprete y del Abogado defensor. En la vista podrá intervenir, y a tal efecto será citado, el representante del Estado requirente cuando así lo hubiere solicitado y el Tribunal lo acuerde atendido el principio de reciprocidad, a cuyo fin reclamará, en su caso, la garantía necesaria a través del Ministerio de Justicia.»
A regulamentação mais desenvolvida desta matéria encontra-se no CPP italiano (logo na redação originária, de 1988), que nos seus arts. 702.º e 706.º dispõem o seguinte:
Art. 702.º - Intervenção do Estado requerente
1. Sob condição de reciprocidade, o Estado requerente tem a faculdade de intervir no processo perante o tribunal de recurso (Corte d’Appello) e o tribunal de cassação (Corte do Cassazione) fazendo-se representar por um advogado habilitado para o patrocínio perante as autoridades judiciárias italianas.
Art. 706.º - Recurso de Cassação
1. Contra a sentença do tribunal de recurso pode ser interposto recurso de cassação, também quanto ao mérito, pela pessoa interessada; pelo seu defensor, pelo procurador geral e pelo representante do Estado requerente.
Ora, o legislador português, que conhecia o modelo italiano, afastou-se claramente dele como resulta claramente do teor dos arts. 47.º, n.º 4, e 58.º.
Por outro lado a União Indiana ao requerer a extradição de A. não podia ignorar o direito interno português em matéria de extradição atribuindo-lhe aquele estatuto e, do mesmo modo que é da praxis em matéria de direito internacional penal o princípio do não inquérito, proibindo que no Estado requerido se questione a justeza do direito processual penal do Estado requerente (cfr. decisão do Supremo Tribunal de Justiça do Canadá, P.º Canadá vs Schmidt, 1987, 1SCR500), também a regra da reciprocidade, por razão idêntica, implica que o Estado requerente não questione as regras de direito processual inerentes ao âmbito e limites de intervenção consentido no processo de acordo com a nossa lei adjetiva.
Mas a norma do art.º 58.º da Lei n.º 144/99, de 31/8, rege, apenas, para o recurso da decisão final ordenando a extradição, é, porém, omisso quanto à admissibilidade dos recursos interpostos após essa fase processual, mas se a lei é bem expressa em vedar a legitimidade ao Estado requerente da decisão ordenando a extradição, por maioria de razão, manda a lógica, enquanto elemento interpretativo da lei (art.º 9.º, do CC) que essa proibição se imponha quanto a decisões da Relação proferidas após aquela fase, visto não respeitarem àquela fase crucial do processo.
Não há qualquer razão, de um ponto lógico-racional, sob pena de se cair em insanável contradição, que o legislador tenha vedado ao Estado requerente recorrer da decisão final, que é o ato processual por excelência e, depois, com relação a uma decisão interlocutória, incidental, o venha permitir, não fazendo sentido afirmar-se, como o faz a União Indiana, para justificar o apelo ao CPP como lei subsidiária, que se está numa fase posterior à entrega, de natureza não judicial.
Aliás, sublinhe-se marginalmente, a irrecorribilidade posterior à decisão final é, também, o regime fixado em matéria de mandado de detenção europeu – art.º 24.º n.º 1 b), da Lei n.º 65/2003, de 23/8, o que não deixa de espelhar o que é uma linha de coerência sistémica de coerência processual caracterizando o nosso direito interno vocacionado à cooperação internacional.
O processo de extradição comporta uma fase administrativa e uma fase judicial, nos termos dos art.ºs 47.º e 49.º e segs., respetivamente, iniciando-se a última mediante a apresentação do pedido e elementos documentais que o acompanharam ao Ministério Público junto do Tribunal da Relação competente.
A questão da violação pela União Indiana do princípio da especialidade é um incidente da entrega, regulada no art.º 60.º da Lei n.º 144/99, de 30/8 e em conexão com a extradição decretada, ainda dentro da fase judicial, tanto assim que a sua resolução é desencadeada ante a entidade judiciária; estar o direito ao recurso como que em letargia, até surtir agora, é argumento que não convence, salvo melhor entendimento.
Por outro lado, como é bom de ver, não é a maior ou menor extensão dos atos praticados no processo pelo Estado requerente que acaba por conduzir ao reconhecimento de sujeito processual, já que não perde a veste de mero participante, adquirindo, posteriormente, um estatuto parificado com o M.º P.º ou o extraditando, havendo, antes, uma “perpetuatio qualitatis”.
A sua posição é a de fornecer elementos que lhe sejam peticionados pelo tribunal, de auxiliá-lo, e não já aqueles que, de seu livre alvedrio, entenda dever praticar.
Nada tem, de resto, de ponderosa a intervenção no processo, oferecendo em 6.8.2007, resposta ao recurso admitido do acórdão da Relação, porque não é uma participação, ainda que mais ou menos alargada, consentida ou sob amiúde e incontrolada iniciativa, que lhe dá o direito adquirido de se transmutar em sujeito processual de pleno e autoproclamar-se com esse “nomen”.
Essa intervenção, se não consentida, não se reconduz à ofensa ao princípio da confiança, postulando a ideia de proteção dos cidadãos e da comunidade, na ordem jurídica e na atuação do Estado, implicando um mínimo de certeza e de segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhe são juridicamente confiadas (Ac. deste STJ, de 27.3.2007, Rec.º n.º 7A760), proibindo afetações arbitrárias ou desproporcionadamente gravosas com as quais o cidadão comum minimamente avisado, não pode razoavelmente contar – cfr., ainda, os Acs. do TC n.ºs 303/90, 625/98 e 160/100.
A União Indiana não podia, razoavelmente, ignorar o teor daquela norma limitativa da sua intervenção, porque é bem claro o preceito que assim a trata “ab initio”, não sendo, pois, colhida de surpresa, sem embargo de, na fase administrativa, a proibição não vigorar.
E nem se advogue, a fundar o recurso invocando a afetação de direitos (art.º 401.º n.º 1, do CPP) - que do lado da União Indiana não serão direitos fundamentais, de defesa, os que estão em causa, mas apenas os de garantia de praticabilidade em maior âmbito do seu “jus puniendi”, isto a considerar-se que ofendeu o princípio da especialidade, atitude a que, adiante, se dedicará reflexão.
Desde logo isso mesmo ressalta do art.º 400.º n.º 1, als. a) a 1), do CPP.
Não obstante o direito ao recurso se inserir no âmbito do direito de defesa, e uma das suas mais importantes manifestações limitando o poder do Estado de suprimir tribunais de recurso, porque o direito ao recurso não é um direito ilimitado, à luz da lei e da jurisprudência constitucional - cfr. o Ac .n.º 31/87, de 28.1.87, DR II série, de 1.4.87.
E essa restrição recurso tem uma amplitude que se analisa numa tríplice dimensão: não há um direito irrestrito ao recurso de todos os despachos e sentenças que afetem os interesses e direitos dos sujeitos e participantes processuais, admitindo-se, nas palavras daquele ac. n.º 31/87, que a faculdade de recorrer possa ser restringida ou limitada em certas fases do processo e que mesmo em relação a certos atos do juiz possa mesmo não existir; não há um direito irrestrito ao recurso com esgotamento de todas as instâncias previstas pela lei e, por fim, não há um direito à audiência de julgamento em recurso, como escreve Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, pág. 1036, 4.ª Ed., da UCP.
A União Indiana, in casu, não é detentora de quaisquer direitos fundamentais ou parcela de liberdade individual, afetados, decorrentes de tratado internacional, desrespeitados por Portugal, demandando, por isso mesmo, a utilização de correspondentes instrumentos para realização, em forma célere e ajustada, pela via de recurso, por isso que sendo resultante de uma Lei, como é a que vigora sob o n.º 144/99, de 31/8, a interpretação que veda o recurso da União Indiana, mera auxiliar processual, não se vê como esta interpretação, diversa da que é a sua, atropele qualquer direito constitucional e funde declaração de inconstitucionalidade, como propende a considerar, designadamente, por ofensa aos art.ºs 2.º, 7.ºn.º 1, 20.º n.º 4 e 32.º, da CRP, que, salvo melhor entendimento, não teve lugar.
A rematar dir-se-à que por decisão sumária deste STJ, de 21.12.2011, no P.º n.º 759/11.OYR.LSB. S1, foi rejeitado o recurso interposto pelos EUA da decisão final proferida na Relação num processo em que fora indeferido o pedido de extradição, que deduziram, com o fundamento em irrecorribilidade nos termos da lei.
Face ao exposto se rejeita, por ilegitimidade nos termos dos art.ºs 401.º n.º 1 e 414.º n.º 2, do CPP, inadmissível legalmente o recurso que interpôs e cuja admissão ordenada por despacho do Exm.º Sr. Juiz Cons.º, Vice Presidente deste STJ, não vincula, nos temos do art.º 405.º n.º 4, do CPP, este STJ funcionando, agora, diversa e colegialmente, como tribunal de recurso».
5. O presente recurso foi interposto desta decisão para apreciação da:
«norma extraída dos artigos 47.º, n.º 4, e 58.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, e do artigo 401.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, segundo a qual não tem legitimidade para recorrer de uma decisão condenatória que afeta os seus direitos o Estado Requerente de um processo de extradição já depois da entrega do Extraditado às autoridades desse mesmo Estado», na medida em que viola «o princípio do Estado de Direito, o princípio da interpretação conforme à Constituição, o princípio da tutela jurisdicional efetiva, o princípio do fair trial e o princípio da igualdade de armas, vertidos nos artigos 2.º, 18.º, n.os 1 e 2, e 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, bem como no artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem».
(…)
«norma extraída dos artigos 47.º, n.º 4, e 58.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, e do artigo 401.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, segundo a qual não tem legitimidade para recorrer de uma decisão condenatória que afeta os seus direitos o Estado Requerente de um processo de extradição que sempre interveio no referido processo a solicitação das competentes autoridades judiciais, designadamente respondendo a recursos interpostos por outros sujeitos processuais», na medida em que viola «os princípios da boa fé, da confiança e da segurança jurídica, inerentes ao Estado de Direito e corolários do princípio da tutela jurisdicional efetiva e do direito a um processo justo e equitativo, vertidos nos artigos 2.º e 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, bem como no artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem».
6. Notificada para alegar, a recorrente concluiu o seguinte:
«1. A Recorrente invoca a inconstitucionalidade de duas interpretações normativas retiradas da conjugação dos artigos 47.º, n.º 4 e 58.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99 e do artigo 401.º, n.º 1, alínea d), do CPP, a saber:
2. A interpretação dos artigos 47.º, n.º 4 e 58.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99 e do artigo 401.º, n.º 1, alínea d), do CPP, segundo a qual não tem legitimidade para recorrer de uma decisão condenatória que afeta os seus direitos o Estado Requerente de um processo de extradição já depois da entrega do Extraditado às autoridades desse mesmo Estado, a qual viola, nomeadamente, o princípio do Estado de Direito, o princípio da interpretação conforme à Constituição, o princípio da tutela jurisdicional efetiva, o princípio do fair trial e o princípio da igualdade de armas, vertidos nos artigos 2.º, 18.º, n.os 1 e 2, e 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, bem como no artigo 6.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; e
3. A interpretação dos artigos 47.º, n.º 4 e 58.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99 e do artigo 401.º, n.º 1, alínea d), do CPP, segundo a qual não tem legitimidade para recorrer de uma decisão condenatória que afeta os seus direitos o Estado Requerente de um processo de extradição que sempre interveio no referido processo a solicitação das competentes autoridades judiciais, designadamente respondendo a recursos interpostos por outros sujeitos processuais, a qual viola, também, os princípios da boa fé, da confiança e da segurança jurídica, inerentes ao Estado de Direito e corolários do princípio da tutela jurisdicional efetiva e do direito a um processo justo e equitativo, vertidos nos artigos 2.º e 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, bem como no artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
4. A dimensão normativa extraída dos referidos preceitos legais, ao determinar a ilegitimidade do Estado Requerente de um processo de extradição, já depois da entrega do Extraditado às autoridades desse mesmo Estado, para recorrer de uma decisão condenatória que afeta os seus direitos, viola, em primeira instância, o princípio da tutela jurisdicional efetiva, corolário direto da ideia de Estado de Direito;
5. Deste princípio decorre, entre o mais, que o legislador não pode limitar o direito ao recurso de forma arbitrária ou sem ter por finalidade a proteção de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos;
6. A interpretação normativa cuja inconstitucionalidade se submete a apreciação revela uma diferenciação arbitrária entre os estatutos processuais do Extraditado e do Estado Requerente, que não tem cabimento na fase processual em que nos encontramos e que não se conforma com o princípio da igualdade;
7. Estamos ainda perante uma restrição excessiva e desproporcional do direito ao recurso da União Indiana, a qual não é admissível à luz do princípio da proporcionalidade, a que deve obedecer qualquer restrição de um direito fundamental consagrado na Constituição da República Portuguesa, na medida em que infringe os três subprincípios contidos naquele princípio;
8. Em concreto, a solução normativa aplicada no presente caso revela-se desadequada, desnecessária e desproporcional, violando assim o disposto no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa;
9. As finalidades das normas sub judice que restringem o direito ao recurso do Estado Requerente, designadamente a proteção do caráter urgente do processo de extradição e a tutela da soberania do Estado Requerido, não encontram conexão com a fase processual em que se encontram os presentes autos, revelando-se particularmente desadequada e desnecessária a restrição daquele direito processual fundamental;
10. A isto acresce que, ao implicar a exclusão da tutela jurisdicional da Recorrente no âmbito de uma fase processual cujo desfecho a irá necessariamente afetar, falha manifestamente à solução normativa restritiva em causa a exigência subjacente ao terceiro subprincípio da proporcionalidade, isto é, o requisito da racionalidade ou justa medida.
11. Ainda, ao vedar o direito ao recurso do Estado Requerente de um processo de extradição, já depois da entrega do Extraditado às autoridades desse mesmo Estado, e ao conferir esse direito ao Ministério Público e ao Extraditado, a norma em causa restringe, de uma forma discriminatória, o direito de acesso aos tribunais por parte daquele Estado, assim violando, também por esta razão, o princípio da tutela jurisdicional efetiva;
12. Resulta ainda violado o princípio da igualdade de armas, na medida em que se verifica uma compressão excessiva deste princípio quando se concede o direito de recurso a todos os sujeitos processuais, salvo o Estado Requerente;
13. Nesta fase processual, aliás, cai o fundamento da desigualdade de armas que se verifica no processo de extradição;
14. Saindo igualmente postergado o princípio, do fair trial, vertido no artigo 6.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e no artigo 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, ao denegar-se injusta e infundadamente um direito processual básico como o é o de apresentar recurso de uma decisão condenatória;
15. A dimensão normativa que vedou o direito ao recurso da Recorrente, viola ainda o princípio constitucional da interpretação conforme à Constituição, ínsito no artigo 18.º, n.os 1 e 2, da Lei Fundamental, na medida em que, perante duas soluções admissíveis à luz das normas aplicáveis, o Tribunal a quo escolheu a interpretação mais restritiva dos direitos processuais fundamentais da Recorrente;
16. Pelo que em suma, a interpretação dos artigos 47.º, n.º 4 e 58.º, n.º 1, da Lei nº 144/99 e do artigo 401.º, n.º 1, alínea d), do CPP, segundo a qual não tem legitimidade para recorrer de uma decisão condenatória que afeta os seus direitos o Estado Requerente de um processo de extradição já depois da entrega do Extraditado às autoridades desse mesmo Estado, viola, nomeadamente, o princípio do Estado de Direito, o princípio da interpretação conforme à Constituição, o princípio da tutela jurisdicional efetiva, o princípio do fair trial e o princípio da igualdade de armas, vertidos nos artigos 2.º, 18.º, n.os 1 e 2, e 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, bem como no artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem;
17. Por outro lado, uma interpretação das normas em causa que nega o direito ao recurso a um Estado Requerente que sempre interveio no processo como verdadeiro sujeito processual, com o assentimento e a solicitação das próprias autoridades judiciárias competentes, é atentatória dos princípios da confiança, boa fé e segurança jurídica, inerentes ao Estado de Direito;
18. Com efeito, a postura assumida pelas mais altas instâncias dos Tribunais Portugueses ao longo do presente processo perante a União Indiana, fundou a séria expectativa que esta detinha de ver o seu recurso admitido, sendo que essa expectativa goza de proteção constitucional, em face da própria ideia de Estado de Direito;
19. Mais, uma tal mudança de posição, através da interpretação normativa cuja inconstitucionalidade ora se suscita, revela que a Recorrente não pode confiar numa justa e imparcial conformação do processo, resultando numa denegação do direito a um processo justo e equitativo, violando-se o princípio ínsito no artigo 6.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem;
20. Pelo que, em suma, a interpretação dos artigos 47.º, n.º 4 e 58.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99 e do artigo 401.º, n.º 1, alínea d), do CPP, segundo a qual não tem legitimidade para recorrer de uma decisão condenatória que afeta os seus direitos o Estado Requerente de um processo de extradição que sempre interveio no referido processo a solicitação das competentes autoridades judiciais, designadamente respondendo a recursos interpostos por outros sujeitos processuais, viola, também, os princípios da boa fé, da confiança e da segurança jurídica, inerentes ao Estado de Direito e corolários do princípio da tutela jurisdicional efetiva e do direito a um processo justo e equitativo, vertidos nos artigos 2.º e 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, bem como no artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem».
7. Notificados os recorridos, o Ministério Público apresentou alegações de onde se extrai o seguinte:
«47º
Ora, quanto à primeira questão de constitucionalidade suscitada, a Reclamação, apresentada pela ora Recorrente, refere as seguintes disposições (cfr. fls. 386 dos autos): 2º, 20º, nº 4 e 32º, nº1 da Constituição, enquanto o requerimento de recurso refere as seguintes (cfr. fls. 443 dos autos): 2º, 18º, nºs 1 e 2, e 20º, nº 4, da Constituição, bem como o art. 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Conclui-se, pois, que o art. 18º, nº 1 e 2 da Constituição, bem como o art. 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem não constavam da Reclamação, e o art. 32º, nº 1 da Constituição não consta do requerimento de recurso.
Relativamente à segunda questão de constitucionalidade suscitada, a Reclamação, apresentada pela ora Recorrente, refere as seguintes disposições (cfr. fls. 388 dos autos): 2º, 7º, nº 1, 20º, nº 4 e 32º, nº1 da Constituição, enquanto o requerimento de recurso refere as seguintes (cfr. fls. 446 dos autos): 2º, 20º, nº 4, da Constituição, bem como o art. 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Conclui-se, pois, que o art. 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem não constava da Reclamação, e os arts. 7º, nº 1 e 32º, nº 1 da Constituição não constam do requerimento de recurso.
Em suma, quanto a ambas as questões de constitucionalidade suscitadas, este Tribunal Constitucional apenas deverá apreciar a argumentação, apresentada pela ora Recorrente, relativa aos artigos 2º e 20º nº 4 da Constituição da República.
(…)
XIII. Da argumentação da ora recorrente
57º
Apreciemos, agora, a argumentação da ora Recorrente, à luz das considerações que foram sendo, sucessivamente, apresentadas ao longo das presentes contra-alegações.
Ressalta à vista, desde logo, a construção artificiosa dessa argumentação, designadamente ao considerar o Acórdão recorrido como uma “decisão condenatória”, quando a Recorrente nem sequer é sujeito processual do processo de extradição em curso.
Por outro lado, está suficientemente definido, pelo Supremo Tribunal de Justiça, desde logo, que há recurso no caso de eventual violação do princípio da especialidade, por parte do Estado requerente, mesmo depois de entregue o extraditado a esse Estado, e, depois, que o mesmo Estado não tem legitimidade para interpor recurso de uma tal decisão, uma vez que nunca teve, no processo de extradição, o estatuto de sujeito processual.
Tal limitação decorre diretamente da lei (art. 58º da Lei 144/99, em interpretação extensiva e conforme à Constituição), não se configurando nem como uma restrição arbitrária, nem desproporcionada, nem excessiva.
Grande parte das ordens jurídicas, aliás, nem sequer prevê a intervenção do Estado requerente no processo de extradição.
Por outro lado, a limitação decorre, naturalmente também, para proteção dos interesses e direitos processuais do extraditando, particularmente carecidos de tutela neste caso, como se comprova pela sujeição do processo de extradição às disposições da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
58º
Também se afigura, no mínimo, temerário falar na restrição do acesso a uma justiça plena e efetiva, relativamente à ora Recorrente, quando esta teve, designadamente através do Ministério Público, intervenção no processo, sempre que o entendeu necessário e conveniente, para prestar as informações relevantes para a apreciação do seu pedido.
Informações, essas, que foram sempre tidas em conta, designadamente, pelo Acórdão recorrido do Supremo Tribunal de Justiça, que lhes faz expressa referência.
Não se percebe, por isso, que mais informações a ora Recorrente pretenderia, ainda, prestar, para além de todas aquelas que já prestou, designadamente sobre a não violação do princípio da especialidade.
Sendo certo, aliás, que foram justamente todas essas informações, por si prestadas, que determinaram a resolução da anterior decisão de extradição de A., por parte, quer do Tribunal da Relação de Lisboa, quer do Supremo Tribunal de Justiça, por violação do princípio da especialidade.
59º
Ainda menos compreensíveis se apresentam os argumentos relativos a uma possível discriminação, no direito de acesso aos tribunais, por parte da ora Recorrente, dado que o Ministério Público pode interpor recurso no processo de extradição, mas ela não.
Ministério Público, de novo se sublinha, que frequentemente interveio no processo no interesse do Estado requerente.
Mas a razão para tal é simples e não envolve qualquer violação do princípio da igualdade de armas, que tem subjacente a ideia de estatutos processuais equivalentes. Com efeito, o Ministério Público – e o extraditando – são sujeitos processuais, o Estado Requerente não.
Este agiu, sempre, numa posição subordinada, para prestar as informações que, no seu próprio interesse, o tribunal devia conhecer, para poder decidir sobre a autorização da extradição.
Não se vê, pois, que limitação de direitos estará em causa, quando a ora Recorrente interveio sempre que o achou necessário, para defesa dos seus interesses e apresentação dos seus pontos de vista.
Sendo certo, por outro lado, ser difícil conceber que estamos, no caso da ora Recorrente, a falar na proteção de direitos fundamentais que lhe assistam, normalmente associados a pessoas individuais, como será o caso do extraditado.
60º
Como já por diversas vezes referido, a extradição de A. teve lugar em novembro de 2005, no seguimento de Acórdão da mais alta instância judicial portuguesa – o Supremo Tribunal de Justiça.
Acórdão, esse, devidamente levado ao conhecimento da União Indiana, e que definiu, assim, os termos em que a extradição teria lugar, bem como a circunstância (condição resolutiva) em que tal extradição poderia, eventualmente, ser resolvida.
Estas foram, pois, as “regras do jogo”, que vincularam - e vinculam – quer as autoridades portuguesas, quer as autoridades indianas, que com elas, voluntária e expressamente se conformaram, através de declarações sucessivas das suas mais altas instâncias, quer políticas, quer judiciais, juntas aos autos, e a que, quer o Acórdão da Relação de Lisboa, quer o Supremo Tribunal de Justiça, expressamente se referiram.
Estas, pois, também, as “regras do jogo”, que acabaram por impor, quer ao Tribunal da Relação de Lisboa, quer ao Supremo Tribunal de Justiça, como entidades que autorizaram a extradição de A., a solução para a violação do princípio da especialidade, que constaram, por parte da União Indiana, designadamente resolvendo a sua anterior decisão sobre a matéria.
Com efeito, o presente processo de extradição de A. só estará integralmente concluído, se e quando inteiramente cumpridas estiverem, também, as condições definidas para a sua execução.
61º
O princípio da especialidade, se inicialmente associado à proteção da soberania dos Estados, está, atualmente, estreitamente associado à defesa dos interesses e direitos fundamentais do próprio extraditado, como tal situado no âmbito da proteção dos direitos do homem e intimamente ligado ao princípio do acusatório.
Muito embora o ordenamento jurídico português não preveja consequência específica para a violação do princípio da especialidade, por parte do Estado requerente da extradição, nem por isso Portugal fica privado, enquanto Estado soberano solicitado, de reagir ao que se apure ter sido uma violação do princípio da especialidade.
Tal reação poderá ter lugar, designadamente, pela via político-diplomática, pela intervenção de instâncias de jurisdição internacional ou de tribunais internos do Estado inadimplente.
Pode, porém, ter igualmente lugar – e foi o que acabou por acontecer - através da reação dos tribunais internos portugueses, que se não podem alhear de uma possível violação do princípio da especialidade, por parte do Estado requerente da extradição.
Assim, quer o Tribunal da Relação de Lisboa, quer o Supremo Tribunal de Justiça, em face das informações prestadas pelo Estado ora Recorrente, foram forçados a declarar resolvida a autorização judicial concedida de extradição, o que tem como consequência ter de se considerar a presença do recorrente, em território da União Indiana, ilegal e, como tal, concluir-se, ser inevitável, a devolução do extraditado às autoridades portugueses.
O Estado requerente poderá, no entanto, requerer a ampliação do pedido de extradição ou formular um novo pedido, relativamente a factos diferentes daqueles pelos quais foi concedida a extradição.
XIV. Conclusões
62º
Por todo o exposto ao longo das presentes contra-alegações, crê-se, pois, que este Tribunal Constitucional deverá:
a) negar provimento ao recurso interposto pela União Indiana;
b) confirmar, nessa medida, o Acórdão recorrido, do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de janeiro de 2012».
O recorrido A. contra-alegou, concluindo, entre o mais, o seguinte:
«13. A União Indiana formula toda a sua argumentação no sentido de sustentar que o reconhecimento da sua ilegitimidade para apresentar recurso da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa redundaria no desamparo da posição do Estado Requerente.
14. Daí a invocação da violação dos princípios do Estado de Direito, da tutela jurisdicional efetiva, do fair trial, da igualdade de armas, da boa fé, da confiança e da segurança jurídica e do direito a um processo justo e equitativo.
15. A União Indiana enforma as suas Alegações numa petição de princípio: a de que, caso não seja admitida a recorrer da decisão proferida nos autos, os seus direitos não estarão acautelados, protegidos.
16. Na verdade, a posição processual que a Recorrente pretende abusivamente assumir compete ao Ministério Público a quem, como não poderia deixar de ser, é conferido direito ao recurso.
17. Às interpretações que o Supremo Tribunal de Justiça efetuou da citada disciplina legal não pode ser assacado qual vício de inconstitucionalidade na medida em que é ao Ministério Público que cabe a defesa da posição do Estado Requisitante no âmbito do processo de extradição por ser a quem compete promover o cumprimento do pedido de extradição (cfr. n.º2 do art.50º da citada Lei).
18. O facto de a União Indiana ter vindo a ser chamada a intervir no processo para se pronunciar acerca das posições tomadas pelo Extraditado não significa que lhe tenha sido conferido pelo Tribunal o estatuto de um verdadeiro sujeito processual pois tal intervenção inscreve-se ainda na esfera de ação de um coadjuvante tal como previsto pelo n.º1 do art.47º da Lei da Extradição.
19. Pelo que se impõe concluir que as interpretações que o Supremo Tribunal de Justiça efetuou das normas conjugadas dos artigos 47º, n.º4 e 58º, n.º1 da Lei n.º144/99 e do artigo 401º, n.º1, alínea d) do CPP não padecem das invocadas inconstitucionalidades,
20. Pois legalmente a posição do Estado Requisitante é acautelada pela representação do Ministério Público.
21. Não se podendo sustentar que a única interpretação conforme à Constituição seria aquela que admitisse como partes legítimas dois sujeitos processuais distintos que, na verdade, representariam a mesma posição, a mesma “parte”.
22. Labora ainda a União Indiana na mesma petição de princípio quando sustenta a violação dos princípios da igualdade de armas e do fair trial.
23. Ambos os princípios estão totalmente acautelados na interpretação normativa levada a cabo pelo Supremo Tribunal de Justiça pela simples razão de que a União Indiana (ou qualquer outro Estado Requerente, naturalmente) não é uma “parte” nos autos de Extradição.
24. A posição sustentada pela União Indiana revela, ademais, uma descabida desconfiança face à atuação do Ministério Público pois apenas assim se pode entender que a Recorrente considere que conceder-se ao Ministério Público o direito ao recurso e não o conceder a um coadjuvante do Ministério Público é violar o princípio da tutela jurisdicional efetiva...
25. Não é inconstitucional a interpretação das normas conjugadas dos artigos 47º, nº4 e 58º, n.º1 da Lei n.º144/99 e do artigo 401º, n.º1, alínea d) do CPP segundo a qual não tem legitimidade para recorrer de uma decisão condenatória que afeta os seus direitos o Estado Requerente de um processo de extradição já depois da entrega do Extraditando às autoridades desse mesmo Estado.
26. Não é inconstitucional a interpretação dos mesmos normativos legais segundo a qual não tem legitimidade para recorrer de uma decisão condenatória que afeta os seus direitos o Estado Requerente de um processo de extradição que sempre interveio no referido processo a solicitação das competentes autoridades judiciais, designadamente respondendo a recursos interpostos por outros sujeitos processuais».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. A recorrente requer a apreciação de duas questões de constitucionalidade:
a) A «norma extraída dos artigos 47.º, n.º 4, e 58.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, e do artigo 401.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, segundo a qual não tem legitimidade para recorrer de uma decisão condenatória que afeta os seus direitos o Estado Requerente de um processo de extradição já depois da entrega do Extraditado às autoridades desse mesmo Estado», por violação do «princípio do Estado de Direito, o princípio da interpretação conforme à Constituição, o princípio da tutela jurisdicional efetiva, o princípio do fair trial e o princípio da igualdade de armas, vertidos nos artigos 2.º, 18.º, n.os 1 e 2, e 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, bem como no artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem»; e
b) A «norma extraída dos artigos 47.º, n.º 4, e 58.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, e do artigo 401.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, segundo a qual não tem legitimidade para recorrer de uma decisão condenatória que afeta os seus direitos o Estado Requerente de um processo de extradição que sempre interveio no referido processo a solicitação das competentes autoridades judiciais, designadamente respondendo a recursos interpostos por outros sujeitos processuais», por violação dos «princípios da boa fé, da confiança e da segurança jurídica, inerentes ao Estado de Direito e corolários do princípio da tutela jurisdicional efetiva e do direito a um processo justo e equitativo, vertidos nos artigos 2.º e 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, bem como no artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem».
As disposições legais da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto – Lei da cooperação judiciária internacional em matéria penal – a que se reportam as normas que são objeto do presente recurso têm a seguinte redação:
«Artigo 47.º
Representação do Estado requerente no processo de extradição
1. O Estado estrangeiro que o solicite a Portugal pode ser admitido a participar na fase judicial do processo de extradição, através de representante designado para o efeito.
(…)
4. A participação a que se refere o n.º 1 tem em vista possibilitar ao Estado requerente o contacto direto com o processo, com observância das regras relativas ao segredo de justiça, bem como fornecer ao tribunal os elementos que este entenda solicitar.
Artigo 58.º
Interposição e instrução do recurso
1. O Ministério Público e o extraditando podem recorrer da decisão final no prazo de 10 dias.
(…)».
A disposição legal do Código de Processo Penal (CPP) a que se reporta uma das normas que é objeto do presente recurso tem a seguinte redação:
«Artigo 401.º
Legitimidade e interesse em agir
1. Têm legitimidade para recorrer:
a) O Ministério Público, de quaisquer decisões, ainda que no exclusivo interesse do arguido;
(…)».
As duas primeiras disposições legais inserem-se na fase judicial do processo de extradição, a qual é da exclusiva competência do tribunal da Relação, destinando-se a «decidir, com audiência do interessado, sobre a concessão da extradição por procedência das suas condições de forma e de fundo, não sendo admitida prova alguma sobre os factos imputados ao extraditando» (artigo 46.º, n.º s 1 e 2, da Lei n.º 144/99). Foram aplicadas no acórdão recorrido, na dimensão interpretativa especificada pela recorrente, já depois de ter sido decidida a extradição de A. e de o extraditado ter sido entregue ao Estado requerente, na falta de disposições legais específicas, entendendo-se que a questão da violação do princípio da especialidade é um incidente da entrega, regulada no artigo 60.º da Lei n.º 144/99 e em conexão com a extradição decretada, que integra ainda a fase judicial.
2. Decorre do requerimento de interposição de recurso e das alegações produzidas que a recorrente considera que a primeira norma viola o princípio do Estado de direito, o princípio da interpretação conforme a Constituição, o princípio da tutela jurisdicional efetiva, o princípio do fair trial e o princípio da igualdade de armas, vertidos nos artigos 2.º, 18.º, n.ºs 1 e 2, e 20.º, n.º 4, da Constituição da República Português (CRP), bem como no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; e que a segunda norma viola os princípios da boa-fé, da confiança e da segurança jurídica, inerentes ao Estado de direito e corolários do princípio da tutela jurisdicional efetiva e do direito a um processo justo e equitativo, vertidos nos artigos 2.º e 20.º, n.º 4, da CRP, bem como no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Como o requerimento de interposição de recurso é a peça processual que delimita o respetivo objeto, é de concluir que a recorrente abandonou a questão de saber se aquelas normas também violam os artigos 7.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP, questões que suscitou durante o processo (fl. 387 e s.).
O artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem é indicado no requerimento de interposição de recurso, não o tendo sido quando foi questionada a constitucionalidade daquelas normas durante o processo (fl. 387 e s.). Deve entender-se, porém, que tal não significa que a recorrente esteja a pôr uma questão de constitucionalidade diferente da que é posta por referência ao artigo 20.º, n.º 4, da CRP, uma vez que aquela disposição convencional é convocada apenas como um outro fundamento normativo do direito a um processo justo e equitativo (ou a um fair trial). Sendo que o disposto no artigo 6.º, n.º 1, daquela Convenção, “consagrando o direito dos cidadãos a que a sua causa seja examinada «equitativa e publicamente», «num prazo razoável», «por um tribunal independente e imparcial» não confere direitos diversos ou mais extensos do que os previstos na nossa Constituição, maxime no seu artigo 20.º”, o que faz com que não se justifique apreciar a eventual desconformidade entre a norma de direito interno e as disposições da Convenção (cf. Acórdão n.º 632/99, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, num entendimento que tem vindo a ser reiterado pelo Tribunal).
Por outro lado, o artigo 18.º, n.ºs 1 e 2, da CRP é convocado no requerimento de interposição de recurso para questionar a constitucionalidade da primeira norma, não o tendo sido durante o processo (fl. 387 e s.). É convocado enquanto disposição constitucional que consagra o princípio da interpretação conforme à Constituição (cf. fl. 445 dos presentes autos, pontos 101. e ss. das alegações e conclusão 15.), princípio que não é, porém, parâmetro de aferição da constitucionalidade de normas. O princípio da interpretação conforme à Constituição é tão-só um princípio geral de interpretação, “um instrumento hermenêutico de conhecimento das normas constitucionais que impõe o recurso a estas para determinar e apreciar o conteúdo intrínseco da lei” (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição7, Almedina, p. 1310). Apesar de a recorrente apelar ao artigo 18.º, n.ºs 1 e 2, da CRP, enquanto disposição que consagra o princípio da interpretação conforme à Constituição, tal não pode equivaler ao pedido de apreciação de uma questão constitucionalidade normativa, na medida em que não é por referência à norma em si que conclui pela violação do princípio, mas sim por referência ao modo como o tribunal recorrido interpretou os preceitos legais pertinentes. Segundo a recorrente, perante duas interpretações possíveis das disposições conjugadas dos artigos 47.º, n.º 4, e 58.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99 e 401.º, n.º 1, alínea d), do CPP, o Supremo Tribunal de Justiça optou por uma interpretação que não é conforme à Constituição. Por, no seu entender, tal dimensão interpretativa ser violadora do direito de acesso aos tribunais, bem como dos princípios da tutela jurisdicional efetiva, do fair trial e da igualdade de armas (cf. pontos 103. a 105. das alegações). É, por isso, irrelevante que, durante o processo, a recorrente não tenha convocado aquele princípio.
3. A recorrente alega que a «norma extraída dos artigos 47.º, n.º 4, e 58.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, e do artigo 401.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, segundo a qual não tem legitimidade para recorrer de uma decisão condenatória que afeta os seus direitos o Estado Requerente de um processo de extradição já depois da entrega do Extraditado às autoridades desse mesmo Estado» viola o princípio da tutela jurisdicional efetiva, corolário direto da ideia de Estado de Direito, de onde faz decorrer o direito ao duplo grau de jurisdição, uma das expressões do direito de acesso aos tribunais. E viola também o princípio do fair trial e da igualdade de armas, na medida em que se concede o direito ao recurso ao extraditado e ao Ministério Público.
A alegação de inconstitucionalidade da norma assenta no desrespeito do direito de acesso aos tribunais, na medida em que é vedada ao Estado requerente de um processo de extradição, já depois da entrega do extraditado, a possibilidade de recorrer de decisão que conclua pela violação do princípio da especialidade, acedendo a um segundo grau de jurisdição.
Importa notar, desde logo, que o direito de acesso aos tribunais que a todos é assegurado para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (artigo 20.º da CRP) não tem sido densificado no sentido de decorrer da norma constitucional um direito geral ao recurso, com o consequente dever de o legislador consagrar, em regra, um duplo grau de jurisdição. “A existência de limitações à recorribilidade funciona como um mecanismo de racionalização do sistema judiciário e por isso se aceita que o legislador disponha de liberdade de conformação quanto à definição dos requisitos e graus de recurso” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 399/2007 e jurisprudência aí citada, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Sem prejuízo de se dever entender que a CRP pressupõe a recorribilidade das decisões dos tribunais ao aludir a instâncias, estando, por isso vedado ao legislador “abolir o sistema de recursos in toto ou afetá-lo substancialmente através da consagração de soluções que restrinjam de tal modo o direito de recorrer que, na prática, se traduzam na supressão tendencial dos recursos” (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada2, Tomo I, Wolters Kluwer/Coimbra Editora, anotação ao artigo 20.º, ponto XXI. E, ainda, Lopes do Rego, “Acesso ao direito e aos tribunais”, Estudos sobre a jurisprudência do Tribunal Constitucional, Aequitas/Editorial de Notícias, 1993, p. 80 e s. Na jurisprudência constitucional Acórdãos n.ºs 638/98, 202/99 e 415/2001, disponíveis naquele sítio). Por outro lado, é questionável se o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º da CRP) é invocável enquanto parâmetro de aferição da conformidade constitucional de norma que dita a ilegitimidade de Estado requerente de um processo de extradição, já depois da entrega do extraditado, para recorrer de decisão judicial que conclua pela violação do princípio da especialidade. Está em causa a invocação de um direito fundamental por parte de uma pessoa coletiva pública, de direito internacional (um Estado estrangeiro), tratando-se de um direito, dirigido contra o Estado, que existe especificamente para a defesa dos direitos e dos interesses legalmente protegidos das pessoas.
4. Face ao preceituado no artigo 12.º, n.º 2, da CRP – as pessoas coletivas gozam dos direitos consignados na Constituição compatíveis com a sua natureza – o Tribunal tem entendido que o gozo do direito de acesso ao direito e aos tribunais é compatível com a natureza das pessoas coletivas privadas (é o que decorre dos Acórdãos n.ºs 539/97 e 174/2000 e, mais recentemente, 216/2010, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt. Na doutrina, Jorge Miranda/Rui Medeiros, ob. cit., anotação ao artigo 20.º, ponto IX, a propósito do direito à proteção jurídica). Em geral, decorre da jurisprudência constitucional que não há qualquer equiparação, ainda que formal, da personalidade coletiva à personalidade singular; que o ser ou não ser compatível com a natureza das pessoas coletivas depende, além da natureza da pessoa coletiva, da natureza de cada um dos direitos fundamentais, sendo incompatíveis aqueles direitos que não são concebíveis a não ser em conexão com as pessoas físicas – v.g. o direito à vida e o direito de constituir família; e que ainda que certo direito fundamental seja compatível com a natureza da pessoa coletiva, daí não se segue que a sua aplicabilidade nesse domínio se vá operar exatamente nos mesmos termos e com a mesma amplitude com que decorre relativamente às pessoas singulares – v. g. o direito ao sigilo da correspondência e à inviolabilidade do domicílio (cf. Acórdãos n.ºs 198/85, 539/97, 569/98, 593/2008, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Já o gozo de direitos fundamentais por parte de pessoas coletivas públicas gera controvérsia na doutrina e na jurisprudência, nacional e estrangeira, sendo uma questão particularmente pertinente em países, como a Alemanha e a Espanha, onde a fiscalização da constitucionalidade tem lugar por via da queixa constitucional ou do recurso de amparo (especificamente sobre este aspeto, Díaz Lema, “Tienen derechos fundamentales las personas jurídico-publicas?”, Revista de Administracion Publica, 1989, Num. 120, p. 87 e ss., e Iñaki Lasgabaster, “Derechos fundamentales y personas jurídicas de derecho publico”, Estudios sobre la Constitucion Española. Homenaje ao Profesor Eduardo Garcia de Enterria, tomo II, Civitas, Madrid, 1991, p. 651 e ss. Entre nós, não são propriamente convergentes as posições de Vieira de andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 19765, Almedina, p. 122 e ss., e de Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição7, Almedina, p. 422 e ss. E é mesmo divergente destas duas posições o entendimento de David Duarte, “A norma de universalidade de direitos e deveres fundamentais: esboço de uma anotação”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXXVI, p. 426 e ss.).
No acórdão n.º 496/2010 deste Tribunal conclui-se que nada obstará, porém, a que certas pretensões de defesa típicas de direitos (subjetivos) fundamentais (p. ex., os direitos fundamentais processuais, cujo reconhecimento às pessoas coletivas é generalizadamente aceite, mas que também podem ser vistos como princípios objetivos do procedimento, destinados a assegurar o correto cumprimento da função judicial num Estado de Direito) sejam absorvíveis pelo princípio do Estado de Direito e pelas garantias institucionais que limitam objetivamente a discricionariedade legislativa, já que as normas que estabelecem direitos fundamentais consagram também valores constitucionais objetivos que moldam a ordem jurídica e que o legislador tem de respeitar (disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Foi enquanto direito processual fundamental ao patrocínio judiciário que o Tribunal admitiu a titularidade por autoridade pública (Presidente de um instituto público) do direito a estar representado em juízo através de um intermediário, técnica e profissionalmente, qualificado. O direito ao patrocínio judiciário é, nos termos do n.º 2 do artigo 20.º da Constituição, um dos componentes do direito de acesso ao direito e aos tribunais, fórmula que é suscetível de abranger, não apenas os direitos subjetivos privados e individuais, mas também, outros interesses juridicamente protegidos, designadamente, os interesses prosseguidos pelos entes públicos (Acórdão n.º 91/2009, disponível no mesmo sítio). Especificamente sobre o direito de acesso aos tribunais, o Tribunal também já entendeu que o exercício da ação penal pelo Estado (através do Ministério Público) não é protegido pelo direito fundamental de acesso aos tribunais, previsto no artigo 20.º da Constituição, direito fundamental dirigido contra o Estado (Acórdão n.º 530/2001 e, no mesmo sentido, Acórdãos n.ºs 120/2002 e 160/2010, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Sem que deste entendimento se possa inferir que “em qualquer caso, as pessoas coletivas públicas estão excluídas do âmbito de proteção do direito de acesso aos tribunais” (Acórdão n.º 91/2009), uma vez que a pessoa coletiva pública em causa naquelas decisões é o Estado soberano no exercício de poderes de jurisdição penal, o que introduz uma especificidade incontornável (Marcelo Rebelo de Sousa/Melo Alexandrino, Constituição da República Portuguesa Comentada, Lex, Lisboa, 2000, em comentário ao artigo 12.º, concluem que certas entidades públicas podem ser titulares de certos direitos de cariz adjetivo, mas já não o Estado).
5. Quanto ao gozo de direitos fundamentais por parte de pessoas coletivas estrangeiras, privadas ou públicas, não é propriamente relevante a jurisprudência deste Tribunal, não obstante ser relativamente extenso o contributo para a densificação do âmbito do princípio da equiparação dos estrangeiros e apátridas ao cidadão português, que se encontrem ou residam em Portugal (sobre a jurisprudência em torno do artigo 15.º, n.º 1, da CRP, Ana Luísa Pinto/Mariana Canotilho, “O tratamento dos estrangeiros e das minorias na jurisprudência constitucional portuguesa”, Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, II, Coimbra Editora, 2005, p. 234 e ss., e Relatório do Tribunal Constitucional Português “A Jurisprudência constitucional sobre o cidadão estrangeiro”, 2008, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Em geral, a doutrina admite o gozo de direitos fundamentais por parte de pessoas coletivas estrangeiras (e até de direito internacional), nos mesmos termos em que o artigo 12.º, n.º 2, da CRP o admite para as pessoas coletivas portuguesas e nas condições restritivas estabelecidas no artigo 15.º da CRP para estrangeiros e apátridas (cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional4, tomo IV, Coimbra Editora, p. 236, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada4, Coimbra Editora, anotação ao artigo 15.º, ponto XII, Jorge Miranda/Rui Medeiros, ob. cit., anotação ao artigo 15.º, ponto II.). Especificamente em relação às pessoas coletivas estrangeiras de natureza pública, Gomes Canotilho/Vital Moreira não deixam, porém, de afirmar que “não devem poder gozar de direitos fundamentais, pelos menos na medida em que isso seja contraditório com a soberania nacional” (neste sentido, também o Relatório já citado, onde se lê que “os problemas que se debatem a propósito das pessoas coletivas estrangeiras residem essencialmente no estatuto das pessoas coletivas públicas, não nacionais, admitindo-se que a lei possa limitar nestes casos os seus direitos de acordo com o interesse público atinente à soberania nacional”).
6. Nos presentes autos quem invoca o direito fundamental de acesso aos tribunais é uma pessoa coletiva pública de direito internacional. A invocação é feita na veste de Estado requerente de um pedido de extradição, já depois da entrega do extraditado, no âmbito de um processo judicial no qual foram apreciadas e decididas duas questões postas pelo recorrido/extraditado A.: a de saber se “tendo em conta o pedido formulado pela União Indiana, a posição sobre ele assumida pela Senhora Ministra da Justiça no despacho de 28 de março de 2003 e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de janeiro de 2005, o aditamento à acusação feito no processo RC.1(S)/93/CBI/STF/MUMBAI violará o princípio da especialidade”; e a de saber se, “em caso afirmativo, qual deverá ser a consequência dessa violação à luz do direito português” (Acórdão do Tribunal da Relação de 14 de setembro de 2011, concretamente fl. 585 dos presentes autos).
Considerando a natureza jurídica da extradição e o teor da decisão cuja recorribilidade está em questão, no que toca à consequência da violação do princípio da especialidade, torna-se, porém, irrelevante indagar se a norma que importa apreciar ainda se inscreve na liberdade que o legislador tem de conformar a matéria dos recursos, bem como saber se aquela pessoa coletiva pública é titular do direito fundamental invocado (cf. supra pontos 3. e 4. da Fundamentação). E, consequentemente, é dispensável a indagação quanto à existência, no caso, de uma “conexão mínima” com o ordenamento jurídico português que possa justificar a equiparação da União Indiana às pessoas coletivas públicas portuguesas (sobre esta exigência, cf. Acórdão n.º 365/2000, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
7. Fundando-se na “solidariedade entre Estados na luta contra o crime (punire aut dedere)” – Albino Azevedo Soares, Lições de Direito Internacional Público, Coimbra Editora, 1981, p. 243 –, a “extradição é o facto pelo qual um Governo remete um indivíduo que se refugiou no seu território ao Governo de um outro Estado para que ele aí seja julgado pelos respetivos tribunais, ou, quando aí já tenha sido julgado, para cumprir a pena que lhe foi aplicada” (Eduardo Correia, Direito Criminal, I, Reimpressão, Almedina, p. 183). É uma forma de cooperação judiciária internacional em matéria penal entre Estados, particularmente relevante face ao princípio geral da territorialidade em matéria de aplicação da lei penal no espaço, que serve dois soberanos: “o Estado que requer a extradição do agente – e que, necessariamente, terá de ter competência para o punir de acordo com a sua lei nacional – consegue exercer o seu ius puniendi e, por outro lado, o Estado que extradita não alberga, no seu território, um agente criminoso” (Faria Costa, Noções Fundamentais de Direito Penal (Fragmenta iuris poenalis)2, Coimbra Editora, p. 105).
Enquanto forma de cooperação judiciária entre Estados soberanos, que tem no princípio da reciprocidade um dos seus pilares fundamentais, a extradição exclui, naturalmente, um qualquer procedimento conducente à entrega do extraditando em que o Estado requerente surja perante o Estado requerido numa situação de confronto processual. A extradição supõe aqui dois planos distintos: o das relações entre Estados soberanos, o requerente e o requerido, de base eminentemente política, que tem como palco principal a ordem jurídica internacional; e o das relações entre o Estado que defere administrativamente o pedido de extradição e o extraditando, de natureza necessariamente judicial (artigo 33.º, n.º 7, da CRP), que tem como palco a ordem jurídica interna do Estado requerido (em geral, supõe ainda o plano onde se jogam as relações entre o Estado requerente e o extraditado, infra ponto 8.).
No processo judicial de extradição, o Estado requerido não exerce propriamente o seu ius puniendi. Este processo releva antes do poder-dever estadual de prestar auxílio judiciário em matéria penal, no âmbito do que se pode denominar jurisdição judicativa adjuvante (assim, Pedro Caeiro Fundamento, conteúdo e limites da jurisdição penal do Estado. O caso português, Wolters Kluwer/Coimbra Editora, 2010, p. 41 e ss.). Está em causa o exercício do ius puniendi por parte de outrem a quem se presta auxílio, o que aponta para uma conformação processual em que o Estado requerido confronta o extraditando com o objetivo de cumprir o pedido do Estado requerente. Ao incluir na reserva de juiz a decisão positiva de extraditar – a decisão negativa pode ser tomada previamente no processo administrativo (artigo 48.º da Lei n.º 144/99) – e ao fazê-lo no capítulo dos direitos liberdades e garantias, é a proteção do extraditando perante o Estado, no exercício por parte deste do poder-dever de prestar auxílio judiciário em matéria penal, que a CRP garante (artigo 33.º, n.º 7). No plano da ordem jurídica interna, na fase judicial do processo de extradição, o Estado requerente não se confronta com o Estado requerido, antes se identificam, uma vez que está em causa o exercício estadual de poderes de jurisdição contra o agente da prática do crime, no âmbito de um mecanismo que é de cooperação judiciária. O que arreda uma qualquer conformação processual em que o Estado requerente desempenhe o papel de parte (participante) processual.
Não fica excluído, porém, que a vertente política da extradição – onde se jogam as relações entre Estados soberanos – se possa sobrepor à judicial, no sentido de o Governo poder não entregar depois de a extradição ter sido judicialmente decidida de forma positiva, nomeadamente face a uma alteração de circunstâncias por referência ao momento em que o pedido de extradição foi deferido administrativamente (artigos 48.º e 50.º da Lei n.º 144/99). Caso em que a exigência constitucional de uma decisão judicial positiva de extradição é vista “não como uma imposição definitiva e vinculante para o executivo, mas antes como uma mera condição relativamente a uma atuação político-administrativa subsequente”, fundada em valorações de “oportunidade política” (cf., respetivamente, Mário Mendes Serrano, “Extradição. Regime e praxis”, in Cooperação Internacional Penal, Centro de Estudos Judiciários, 2000, p. 75 e ss. e Mario Chiavario, Diritto Processuale Penale. Profilo Istituzionale2, Utet, pp. 628 e 630. No mesmo sentido já Carlos Fernandes, A Extradição e o Respetivo Sistema Português, Coimbra Editora, 1996, pp. 19, 54 e ss. e 91 e s.). O mesmo tipo de valorações que, afinal, ditam a decisão administrativa de indeferimento liminar do pedido de extradição, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 46.º da Lei n.º 144/99, segundo o qual a fase administrativa é destinada à apreciação de tal pedido para o efeito de decidir se ele pode ter seguimento ou se deve ser liminarmente indeferido por razões de ordem política ou de oportunidade ou de conveniência, sendo o processo arquivado em caso de indeferimento (artigo 48.º, n.º 3, daquela Lei).
8. Independentemente da forma como a questão da violação do princípio da especialidade seja enquadrada, seja ou não vista como um incidente da entrega do extraditado que ainda integra a fase judicial do processo de extradição, valem para o processo judicial que deu origem ao presente recurso as considerações acabadas de fazer. Apesar de o acórdão cuja recorribilidade está em causa ser no sentido da violação daquele princípio por parte da União Indiana, resolvendo a autorização concedida para a extradição do recorrido, a decisão judicial não obriga, por si só, à devolução do extraditado.
O princípio da especialidade, segundo o qual o extraditado não pode ser perseguido, detido, julgado ou sujeito a qualquer outra restrição da liberdade por facto ou condenações anteriores à sua saída do território português diferentes dos determinados no pedido de extradição (artigo 16.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99), é um princípio internacionalmente reconhecido mediante o qual se protege a soberania do Estado requerido e se garante a proteção do extraditado (sobre isto, Gregory B. Richardson, “The principle of speciality in extradition” e Dominique Poncet/Paul Gully-Hart, “Le principe de la specialité en matiere d’extradition”, Revue Internationale de Droit Penal, 1991, respetivamente p. 86 e 201 e s.). A questão da violação do princípio supõe, por isso, dois planos distintos: o das relações entre o Estado requerente e o Estado requerido, de base eminentemente política; e o das relações entre o Estado requerente e o extraditado, relativamente às quais se problematiza a forma de este fazer valer contra aquele a garantia que o princípio da especialidade representa para o extraditado (cf. supra ponto 2. da Fundamentação e aqueles autores, pp. 86 e ss. e 217 e ss., respetivamente).
Quando esteja em causa o plano em que se estabelecem as relações entre o Estado requerente e o extraditado, ainda que se averigue a violação do princípio da especialidade na ordem jurídica interna do Estado requerido, no âmbito de um processo judicial, promovido pelo extraditado – o que sucedeu nos presentes autos, sem que a admissibilidade desta via fosse pacífica (cf. supra ponto 2. da Fundamentação) –, o Estado requerente do pedido de extradição não está neste processo numa posição de confronto processual relativamente àquele Estado. Não está investido num qualquer papel de participante (parte) processual, relativamente ao qual se possa concluir que foi proferida uma decisão contra ou a favor dele, uma decisão que direta e efetivamente o prejudique, porque a isso sempre obstaria a natureza jurídica da extradição, uma forma de cooperação judiciária internacional em matéria penal entre Estados soberanos. Entendimento que é também amparado pelo artigo 7.º, n.º 1, da CRP, quando, em matéria de relações internacionais, dispõe que Portugal se rege, entre outros princípios de direito internacional, pelos princípios da igualdade entre Estados e da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados.
A decisão judicial que resolva a autorização de extradição, nomeadamente por violação do princípio da especialidade, deverá ser tida apenas como um elemento, entre outros, que o Estado requerido leva em consideração quando pondera politicamente a atitude a tomar no plano das relações com o Estado requerente. Não poderá, pois, ter o alcance de decisão que, por si só, desencadeie a consequência da violação do princípio da especialidade, valendo como decisão contra o Estado requerente, como decisão que direta e efetivamente o prejudique. Tanto mais que, diferentemente do que sucede na fase judicial do processo de extradição, necessariamente antecedida de uma decisão administrativa no sentido do deferimento do pedido de extradição, ainda não foi tomada qualquer decisão de base eminentemente política, sendo certo que a violação do princípio da especialidade tem repercussões diretas no plano das relações entre os Estados envolvidos, já que o princípio protege também, de forma autónoma, a soberania do Estado requerido.
9. O que acaba se der dito está em consonância com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de dezembro de 2007, que decidindo embora no sentido de a ordem jurídica interna dever tomar posição sobre a alegada violação do princípio da especialidade, conclui que a declaração de resolução de autorização concedida deveria “depois ser encaminhada para as instâncias do poder político, através da autoridade central, a fim de, pela via diplomática, o Estado Português tomar a atitude que for considerada mais conveniente” (cf. supra ponto 2. do Relatório). Bem como com o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de setembro de 2011 – a decisão judicial cuja irrecorribilidade decorre da norma em apreciação – que lhe deu cumprimento.
Respondendo às duas questões que se propôs apreciar e decidir, este acórdão do Tribunal da Relação conclui que, à face do ordenamento jurídico português, a União Indiana violou o princípio da especialidade consagrado no artigo 16.º da Lei n.º 144/99 (fl. 587); e que, não prevendo embora esta Lei, em termos gerais, qualquer consequência específica para a violação do princípio da especialidade por parte do Estado requerente da extradição, tal não obsta a que, em caso de violação, o Estado português não possa vir a reagir pela via político-diplomática, para o que será relevante o juízo formulado pelas instâncias judiciárias portuguesas. Além de o Estado português poder vir a suscitar a intervenção de instâncias de jurisdição internacional e de poder extrair do caso as devidas consequências políticas. Isto é: não obstante ter considerado ilegal o julgamento pelos novos crimes e de ter decidido resolver a autorização concedida para a extradição de A., a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa conclui somente pela violação do princípio da especialidade. Não obriga, por si só, o Estado requerente à prática de determinado comportamento, designadamente o de devolver o extraditado, não sendo, por isso, uma decisão proferida contra a União Indiana, uma decisão que direta e efetivamente a prejudique. Da resposta à questão de saber qual a consequência da violação do princípio da especialidade à luz do direito português, decorre que caberá ao Estado português – e não às instâncias judiciárias portuguesas – decidir tal consequência, o que já terá a ver com o plano político-diplomático das relações entre os dois Estados soberanos.
10. Face ao que vem de ser dito, na medida em que a decisão cuja recorribilidade está em causa não é uma decisão contra a União Indiana, não é uma decisão que direta e efetivamente prejudique este Estado, é de concluir que a norma em apreciação não viola o direito ao duplo grau de jurisdição. Está fora do âmbito de proteção do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da CRP, bem como do princípio da tutela jurisdicional efetiva que se extrai do princípio do Estado de direito (artigo 2.º da CRP), o direito de recorrer de decisão judicial por parte de quem não tenha sido participante (parte) no processo que lhe deu origem. Improcedendo a alegação de que a norma viola o princípio do fair trial, da igualdade e da igualdade de armas, comparando o estatuto processual da recorrente com o do Ministério Público e com o do extraditado, os quais têm o direito ao recurso. Diferentemente destes, a União Indiana não é uma outra parte (participante) processual ou um outro sujeito do processo judicial de averiguação da violação do princípio da especialidade, sem prejuízo de ter participado neste processo através de um representante designado para o efeito, numa base de reciprocidade e de cooperação com o Estado que lhe presta auxílio judiciário (cf. infra ponto 11.).
11. A recorrente alega, ainda, que a «norma extraída dos artigos 47.º, n.º 4, e 58.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, e do artigo 401.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, segundo a qual não tem legitimidade para recorrer de uma decisão condenatória que afeta os seus direitos o Estado Requerente de um processo de extradição que sempre interveio no referido processo a solicitação das competentes autoridades judiciais, designadamente respondendo a recursos interpostos por outros sujeitos processuais», viola os «princípios da boa fé, da confiança e da segurança jurídica, inerentes ao Estado de Direito e corolários do princípio da tutela jurisdicional efetiva e do direito a um processo justo e equitativo, vertidos nos artigos 2.º e 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, bem como no artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem».
Face ao já dito, a argumentação da recorrente é improcedente.
A alegada violação daqueles princípios assenta, toda ela, no estatuto de parte processual ou de sujeito processual – um estatuto que o Estado requerente do pedido de extradição não teve, nem poderia ter, no processo judicial em que se averiguou a violação do princípio da especialidade (cf. supra pontos 7. e 8. da Fundamentação); no conteúdo condenatório da decisão recorrida – natureza que lhe é estranha na medida em que não se trata de decisão proferida contra a União Indiana ou que direta e efetivamente a prejudique, apesar de concluir pela violação daquele princípio (cf. supra ponto 9.); e na criação de expectativas quanto à recorribilidade da decisão, face ao comportamento processual das instâncias judiciais portuguesas – expectativas que a recorrente não podia ter, face ao estatuto de participante, para os efeitos e nos termos previstos no artigo 47.º da Lei n.º 144/99, e ao conteúdo do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de dezembro de 2007, a que o acórdão do Tribunal da Relação de 14 de setembro de 2011 deu cumprimento (cf. infra e supra pontos 2. do Relatório e 9. da Fundamentação).
A relação entre os Estados soberanos envolvidos na extradição, requerente e requerido, é de cooperação na luta contra o crime, havendo ganhos ao nível da celeridade e da eficácia se o Estado requerente participar na fase judicial do processo, nos termos previstos no artigo 47.º da Lei da cooperação judiciária internacional em matéria penal (é isto que se invoca na Proposta de Lei n.º 251/VII que lhe deu origem, Diário da Assembleia da República, II Série-A, Número 45, de 18 de março de 1999, p. 1221 e ss.). Bem como se participar no processo judicial em que se averigue, na ordem jurídica do Estado requerido, a violação do princípio da especialidade.
Trata-se, porém, de uma mera participação que não permite a qualificação do Estado requerente como sujeito do processo ou sequer como participante processual. O Estado requerente não é titular de direitos autónomos de conformação da concreta tramitação do processo como um todo, em vista da sua decisão final (sobre o conceito, Figueiredo Dias, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p. 9). O Estado requerente participa, garantida que esteja a reciprocidade, através do “contacto direto com o processo” e fornecendo “ao tribunal os elementos que este entenda solicitar” – de acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 47.º da Lei n.º 144/99, uma das disposições legais a que se reporta a norma em apreciação. Não se lhe estendem, nomeadamente, as regras sobre a audição do extraditando, a oposição do extraditando e a produção da prova (artigos 54.º, 55.º e 56.º da Lei n.º 144/99).
Relevando estritamente da cooperação com o Estado ao qual foi pedido auxílio judiciário em matéria penal, esta participação não pode constituir a base de um direito de intervenção processual que legitime a interposição de recurso por parte do Estado ao qual é prestado tal auxílio (diferentemente do sucedido nos autos que deram origem ao Acórdão n.º 44/2004, invocado pela recorrente e disponível em www.tribunalconstitucional.pt, que julgou inconstitucional «os artigos 411.º, n.º 1, e 420.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual tais normas permitiriam a destruição dos efeitos anteriormente produzidos de uma decisão não impugnada da primeira instância quanto à prorrogação do prazo de recurso, por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança e das garantias de defesa consagrados, respetivamente, nos artigos 2.º e 32.º, n.º 1, da Constituição»).
12. Em suma, não há que julgar inconstitucionais as normas que integram o objeto do presente recurso.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta.
Lisboa, 5 de julho de 2012.- Maria João Antunes – Gil Galvão – Carlos Pamplona de Oliveira – Rui Manuel Moura Ramos.