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Procº nº 342/2000.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. J. O. interpôs, perante o Tribunal Central Administrativo, recurso contencioso de anulação do despacho proferido em 22 de Setembro de 1997 pelo Ministro da Administração Interna e por intermédio do qual o recorrente foi dispensado do serviço ao abrigo das disposições conjugadas ínsitas no nº 4 do artº 94º do Decreto-Lei nº 231/93, de 16 de Junho, e no nº 3 do artº 75º do Decreto-Lei nº 265/93, de 31 de Julho.
Inter alia, o impugnante, no petitório do recurso, invocou que, tendo aqueles diplomas sido emitidos pelo Governo no exercício da sua competência legislativa própria, e dos mesmos constando 'inegavelmente abundante matéria respeitante a direitos liberdades e garantias, ao regime estatutário geral e regime disciplinar dos agentes militarizados da GNR', cujos normativos
'constituem matéria de reserva relativa da Assembleia da República, como tal consignadas nas alíneas b), d) e v) do nº 1 do artº 168º da Constituição', aquela emissão acarretava a inconstitucionalidade orgânica dos aludidos diplomas ou, ao menos, dos artigos 94º do Decreto-Lei nº 231/93 e 75º do Decreto-Lei nº
265/93. Ainda aditou que a figura da dispensa de serviço ali consagrada era violadora dos princípios da igualdade e da proporcionalidade.
Tendo o Tribunal Central Administrativo, por acórdão de 27 de Maio de 1999, negado provimento ao recurso, dele recorreu o impugnante para o Supremo Tribunal Administrativo, reeditando, na alegação adrede produzida, os vícios de inconstitucionalidade já invocados aquando do recurso para aquele primeiro Tribunal e acrescentando que os ditos diplomas inovaram legislativamente em relação aos Decretos-Leis números 333/83, de 14 de Julho, 465/83, de 31 de Dezembro, e 142/77, de 9 de Abril.
2. Por acórdão de 2 de Março de 2000 negou o Supremo Tribunal Administrativo provimento ao recurso jurisdicional.
É deste aresto que vem, pelo impugnante J. O., interposto recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, por seu intermédio pretendendo ver apreciada a conformidade à Constituição das normas vertidas nos artigos 94º do Decreto-Lei nº 231/93 e 75º do Decreto-Lei nº 265/93, de 31 de Julho, as quais, na sua perspectiva, violarão os artigos 13º, 18º, números 1, 2 e 3, 168º, números 1, alíneas b), d) e v), 3 e 4, e 277º, nº 1, todos da Lei Fundamental.
Determinada a feitura de alegações, rematou o recorrente a por si produzida com as seguintes «conclusões»:-
'1 - O douto despacho recorrido fundamentou a dispensa de serviço do Recorrente nas normas do nº 4 do artº 94 do DL 231/93 de 26/6 e do nº 3 do artº 75 do DL
265/93 de 31/7.
2 - Tais diplomas estão feridos de inconstitucionalidade orgânica, em virtude de o Governo ter legislado com competência legislativa originária e não ter sido autorizado a fazê-lo pela Assembleia da República, em matéria de sua reserva relativa de competência legislativa. (alíneas b), d) e v) do nº 1 do artº 168º da CRP).
3 - O Recorrente é um agente militarizado integrado na força de segurança G.N.R..
4 - Só com a recentíssima publicação da notável Lei 145/99 de 1 de Setembro passou o Recorrente a estar sujeito a um regulamento disciplinar constante de diploma próprio, tal como já anteriormente acontecia para os militares, para os funcionário públicos e para os agente militarizados da força de segurança P.S.P..
5 - A medida sancionatória que resultar de um processo disciplinar ou do processo próprio de dispensa de serviço é, pela sua própria natureza, sempre uma sanção de natureza estatutária, e porque em ambos os casos é efectada a carreira profissional e a situação funcional do militar, modificando-a em prejuízo do agente.
6 - O processo próprio de dispensa de serviço, por visar a aplicação de uma sanção estatutária, tem a natureza de um processo sancionatório tal com o processo disciplinar, por visar a aplicação de uma pena, tem também a natureza de um processo sancionatório.
7 - O facto da sanção de dispensa de serviço prevista no nº 2 do artº 94 do DL
231/93 de 26 de Junho (LOGNR) ter a natureza de sanção estatutária não lhe retira o carácter de pena disciplinar e isto porque a sanção estatutária denominada ‘dispensa de serviço’ constitui, tal como a pena disciplinar expulsiva, uma sanção estatutária expulsiva, não constituindo, enquanto tal, um género próprio, autónomo e distinto da pena disciplinar.
8 - Os referidos DL 231/93 (LOGNR) e 265/93 (EMGNR) são alegadamente resultado do exercício da função legislativa do Governo nos teremos da alínea a) do nº 1 do artº 201º da CRP (‘Fazer decretos-lei em matéria não reservada à Assembleia da República), como deles expressamente consta.
9 - E de ambos estes diplomas consta inegavelmente abundante matéria respeitante a direitos e garantias, ao regime estatutário geral e regime disciplinar dos agentes militarizados da GNR (vg., alíneas a), b) e c) do nº 7 e nº 8 do artº
39º, e artºs 92º, 93º e 94º, todos da LOGNR – e artºs 2º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º,
10º, 11º, 14º, 15º, 19º, 22º e 75º do EMGNR).
10 - Tais normativos (direitos, liberdades e garantias, regime disciplinar e regime da função pública) constituem matéria de reserva relativa de competência da Assembleia da República, como tal consignadas nas alíneas b), d) e v) do nº 1 do artº 168º da C.R.P..
11 - A reserva de competência legislativa da Assembleia da República nesta matéria vale não apenas para as restrições mas também para toda a intervenção legislativa no âmbito dos direitos, liberdades e garantias (vd. artºs do Título II da parte I, nº 8 (actual 10 do artº 32º), 17º, 18º, 20º, 21º, 22º e 23º da C.R.P., e – Vital Moreira – C.R.P. anotada, 3ª Edição-pág.672).
12 - Igualmente, implicando a sanção de ‘dispensa de serviço’ o termo da manutenção funcional, o ‘despedimento’ do Recorrente, atinge irremediavelmente o seu direito à segurança no emprego consagrado no artº 53º da C.R.P.
13 - Por outro lado, no respeitante às alíneas d) e v) do artº 168º da C.R.P. cabe à Assembleia da República definir a natureza do ilícito e os tipos de sanções e as regras gerais do processo disciplinar relativos a todos os ordenamentos sectoriais públicos ou de carácter público, em cujo âmbito, no mínimo , se inclui a força de segurança GNR (cf. nº 4 do artº 272º - Título IX – Administração Pública, da C.R.P.).
14 - Assim, o acto impugnado, ao ter fundamentado a ‘dispensa de serviço’ aplicada ao Recorrente nos artºs 75º do EMGNR e 94º - 1, 2 e 4 da LOGNR, fundamentou-se em normas formal e organicamente inconstitucionais, por as mesmas respeitarem a direitos e garantias fundamentais, ao regime geral de punição de infracções disciplinares e bases do regime e âmbito da função pública, matérias de reserva relativa da Assembleia da República – alíneas b), d) e v) do artº
168º da C.R.P. (3ª Revisão) – o que inquina o acto recorrido de vício de violação de lei.
15 - O Governo legislador do EMGNR e da LOGNR quis prever um processo sancionatório e uma medida sancionatória com CARACTERÍSTICAS INOVADORAS, fazendo-o de uma forma subreptícia e ilegal ao definir a natureza do ilícito, definir o tipo de sanção e as regras gerais de outro tipo de processo – o processo próprio de dispensa de serviço.
16 - Mesmo que erroneamente se entendesse que de mera repetição e transcrição se tratara, sempre importaria saber se os diplomas, onde tal matéria tinha sido já anteriormente regulada e que em 1993 teriam sido ‘copiados’, tinham sido proferidos pelas entidades com competência legislativa para os proferir, pois, o vício no caso inverso de incompetência originária contaminaria os diplomas que posteriormente os tenham vindo a acolher.
17 - O Governo não só inovou legislativamente em relação às normas constantes dos DL 333/83, , 465/83 e 142/77, como também estes primeiros dois diplomas ora referidos foram decretados sem a indispensável autorização da Assembleia da República nos termos da C.R.P. então vigente (1982).
18 - Hoje em dia, no fundamental, não existe nenhuma diferença significativa, nem quanto à sua missão nem quanto à sua tutela, entre a força de segurança GNR e a força de segurança PSP (estas sim, distintas na missão – vd. Artº 275º da CRP – e na tutela, das Forças Armadas).
19 - E o que também se constata, é que tanto para o comum trabalhador privado, como para o funcionário público em geral, como ainda também para o agente militarizado membro da força de segurança PSP, a ruptura do vínculo de emprego, fundada em justa causa, sempre se decide após a verificação e comprovação desta ser invariável e imperativamente apurada em sede de processo disciplinar integralmente assegurador das garantias de defesa do arguido.
20 - No entender do Recorrente não existe uma só razão distinta ou argumento plausível que justifique e legitime poder ter sido, como foi, decidida a ruptura do vínculo de emprego através da originalíssima dispensa de serviço, processo inexistente, ao invés do processo disciplinar, nos restantes casos supra indicados.
21 - A indevida sujeição dos membros da GNR à medida estatutária de dispensa de serviço constitui notória violação daquele requisito e dos princípios constitucionais da proibição do excesso e da salvaguarda do núcleo essencial do direito fundamental (vd, por todos J.J.GOMES CANOTILHO – Direito Constitucional,
4ª edição, págs. 482 a 493), ínsitos nos nºs 2 e 3 do artº 18º da CRP, consubstanciado inequivocamente a violação dos princípios da igualdade e proporcionalidade arguida pelo Recorrente.
22 - Em boa verdade, além de deverem ter fundamento na Constituição, cumpre sempre apurar se a especificidade estatutária concreta exige aquela concreta restrição ao direito fundamental afectado (vd. J.J. GOMES CANOTILHO, ob.cit. págs.501 a 503). No caso dos autos claramente se constata o desrespeito pelos princípios da exigibilidade e da salvaguarda do núcleo essencial, em virtude de, por maior que seja o persistente esforço, não se conseguir vislumbrar o que possa justificadamente exigir a existência da dispensa de serviço na GNR e a sua não existência na PSP.
23 - O Recorrente discorda fundamentadamente do modo processualmente ínvio como foi punido, e do tipo e da medida da sanção com que foi punido, e do tipo e da medida da sanção com que foi punido.
24 - Ao invés do considerado no douto Acordão recorrido o princípio da igualdade foi ofendido, não porque não tenha sido aplicada a mesma medida a todos os membros da GNR envolvidos na prática de factos idênticos aos do Recorrente, mas precisamente porque o processo de dispensa de serviço em todos os casos seguidos e a medida de dispensa de serviço a todos aplicada resulta manifestamente excepcional e a sanção desigual e desproporcionada em relação comparada às aplicadas, (penas de inactividade, suspensão e até prisão disciplinar) em abundantes e variados outros casos, públicos e notórios, a membros das forças de segurança GNR e PSP que cometeram ilícitos de muito maior gravidade (basta relembrar os casos do cabo C. (VINHAIS) e sargento S. (SACAVÉM), pronunciados e até já condenados por homicídio).
25 - O douto acórdão recorrido não reconhecendo a inconstitucionalidade das normas referidas tal como concretamente emergiram e foram aplicadas pelo despacho ministerial recorrido e negando provimento ao recurso contencioso, violou e fez errónea a aplicação dos artºs 13º, 18º nºs 1,2 e 3, 168º nº1 alíneas b), d) e v) e 277º nº 1 da C.R.P. na versão anterior à última revisão'.
De seu lado, o Ministro da Administração Interna concluiu a sua alegação dizendo:
'I. A dispensa do serviço da Guarda Nacional Republicana não é uma medida disciplinar, mas uma medida estatutária, de natureza essencialmente militar, como tem sido jurisprudência uniforme e pacífica do Supremo Tribunal Administrativo, como entende a Procuradoria Geral da República e como entendia a Comissão Constitucional. II. O Decreto-Lei n.º 231/93, de 26 de Junho (art.º 94º), e o Decreto-Lei n.º
265/96, de 31 de Julho (art.º 75.º), não padecem de inconstitucionalidade orgânica ou material, por violação dos artigos 13º, 18º, n.ºs 1, 2 e 3, 168º, n.ºs 1, b), d) e v), e 277º da Constituição da República Portuguesa. III. Não padecem de inconstitucionalidade orgânica porque o Governo, ao legislar, limitou-se a reproduzir, sem inovar, matéria constante de diplomas anteriores (Leis de n.ºs 29/82, de 11 de Dezembro, e 11/89, de 1 de Junho, bem como o DL 333/83, de 14 de Julho), não ofendendo a reserva de competência legislativa da Assembleia da República. Na verdade, IV. Seria absurdo pedir uma autorização legislativa para decretar uma medida que nada traz de novo à ordem jurídica. O Governo, ao requerer uma autorização legislativa, deve referir aquilo que pretende alterar. Senão tenciona alterar nada, não poderia proceder a tal indicação, e careceria de sentido o pedido de autorização. V. Não precisando o Governo de autorização legislativa, uma vez que não inovou, não pode ocorrer qualquer inconstitucionalidade por a precedente lei de autorização legislativa ter caducado. VI. O tratamento da dispensa de serviço, pelo legislador, fora do âmbito disciplinar, releva da liberdade conferida ao poder legislativo, sendo certo que tomou aquela medida como realidade distinta da sanção disciplinar (cfr. o Decreto-Lei n.º 203/78, de 24 de Julho, o qual interpretou autenticamente o RDM). VII. Não estando perante normas que se refiram a qualquer infracção disciplinar, nunca poderia ocorrer a aduzida inconstitucionalidade por violação do artigo
168º, n.º 1, alínea d) da CRP: VIII. Também não se poderia verificar a arguida inconstitucionalidade por violação do artigo 168º, n.º 1, alínea v), uma vez que a medida de dispensa do serviço, restrita aos militares das Forças Armadas e da Guarda Nacional Republicana, não pode considerar-se matéria a incluir no conceito de ‘bases gerais do regime jurídico da função pública’. IX. As normas nas conclusões anteriores não padecem de inconstitucionalidade material, uma vez que a existência e aplicação, aos elementos da GNR, do processo e da medida estatutária de dispensa do serviço não ofende os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade, já que a restrição ao direito à segurança no emprego é feita nos termos da CRP e de forma proporcionada - com exigência de justa causa e com amplo direito de audiência e defesa do militar -, estando sujeitos a esta medida todos os militares, das Forças Armadas e da GNR. X. É claramente inadequada a comparação entre a aplicação da medida estatutária de dispensa do serviço e a imposição de penas disciplinares a elementos de outra Força de Segurança, sem se indicar concretamente em que consiste a desigualdade e a desproporção. XI. As comparações válidas para se ajuizar do respeito pelo princípio da igualdade devem referir-se a situações qualitativa e quantitativamente iguais, não se extraindo dos autos elementos que permitam chegar a tais conclusões, sendo certo que não faz sentido estar a confrontar a situação em apreço com outras que se inserem em estatutos funcionais e profissionais distintos'.
Cumpre decidir.
II
1. Como se viu, o ora recorrente foi dispensado do serviço por intermédio de despacho que isso determinou, despacho esse que se fundou juridicamente nas disposições conjugadas constantes do nº 4 do artº 94º do Decreto-Lei nº 231/93, de 16 de Junho, e do nº 3 do artº 75º do Decreto-Lei nº
265/93, de 31 de Julho, (recte, o nº 4 do artº 94º da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, aprovada pelo Decreto-Lei nº 231/93, e o nº 3 do artº 75º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, aprovado pelo Decreto-Lei nº 265/93).
Rezam aquelas disposições:
Artigo 94º da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana:- Dispensa do serviço
1 - A dispensa do serviço dos militares dos quadros permanentes ocorre a pedido dos próprios ou por iniciativa do comandante-geral.
2 - A dispensa do serviço, quando da iniciativa do comandante-geral, pode ter lugar sempre que o comportamento do militar indicie notórios desvios dos requisitos morais, éticos, técnico-profissionais ou militares que lhe são exigidos pela sua qualidade e função, implicando tal medida a instauração de processo próprio com observância de todas as garantias de defesa e com a pensão de reforma que lhe couber.
3 - A dispensa do serviço a pedido do militar é da competência do comandante-geral.
4 - A adopção da medida prevista no n.º 2 deste artigo é da iniciativa do comandante-geral, ouvido o Conselho Superior da Guarda, competindo a decisão final ao Ministro da Administração Interna.
5 - Da decisão do Ministro da Administração Interna cabe recurso nos termos da lei.
Artigo 75º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana:- Dispensa por iniciativa do comandante
1 - Não pode continuar no activo nem na efectividade de serviço o militar dos quadros da Guarda cujo comportamento se revele incompatível com a condição de «soldado da lei» ou que se comprove não possuir qualquer das seguintes condições:
a) Bom comportamento militar e cívico;
b) Espírito militar;
c) Aptidão técnico-profissional.
2 - O apuramento dos factos que levam à invocação da falta de condições referidas no número anterior é feito através de processo próprio de dispensa de serviço ou disciplinar.
3 - A decisão de impor ao militar a saída do activo e da efectividade de serviço é da competência do Ministro da Administração Interna, sob proposta do comandante-geral, ouvido o Conselho Superior da Guarda.
4 - A dispensa do serviço origina o abate nos quadros e a perda dos direitos de militar da Guarda, sem prejuízo da concessão da pensão de reforma nos termos da lei.
Para o recorrente, os diplomas onde se inserem as transcritas disposições padecem de inconstitucionalidade orgânica por violação da alíneas b), d) e v) do nº 1 do artigo 168º do Diploma Básico (na versão anterior à advinda da Revisão Constitucional de 1997), visto conterem eles matéria respeitante a direitos, liberdades e garantias, ao regime estatutário da Guarda Nacional Republicana e ao regime disciplinar dos respectivos militares; e, além disso, as ditas disposições, na sua óptica, ferem os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade.
2. Estando agora em causa tão somente as normas acima indicadas, torna-se claro que são unicamente elas as que devem estar sujeitas, por parte deste Tribunal, ao juízo de compatibilidade ou não compatibilidade com a Lei Fundamental e, assim, não poderá aqui aquilatar-se se outras matérias tratadas na Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana ou no Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana podem, ou não, ser incluídas em matérias concernentes a direitos, liberdades e garantias, de bases do regime e âmbito da função pública ou do regime geral de punição das infracções disciplinares.
O que relevará, isso sim, é saber se as faladas disposições podem dizer respeito a tais matérias e, na afirmativa, se a sua edição através de diploma legislativo não credenciado parlamentarmente (ao menos no que toca ao que nessas mesmas disposições se encontra regulado), é passível de um juízo de censura.
Vejamos, pois.
2.1. Que os aludidos artigos 94º e 75º não podem, de todo em todo, ser considerados como algo respeitante às bases do regime e âmbito da função pública (cfr., por entre outros, e no tocante ao que deve ser entendido em tal conceito, o Acórdão deste Tribunal nº 154/86, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7º volume, 185 a 218), é circunstância que se não pode pôr em dúvida.
De outro lado, parece que sempre se imporia saber se aqueles normativos respeitam, como defende o recorrente, a matéria disciplinar, e isto sem se entrar, desde já, no problema de saber se, mesmo a dar-se resposta afirmativa àquela questão, ainda assim, por se tratar, nessa hipótese, de uma medida disciplinar que seria específica de um determinado grupo de agentes do Estado (cfr., no sentido de que os militares e agentes militarizados são de considerar como agentes do Estado, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 949), a edição legislativa referente aos mesmos normativos haveria de ser submetida aos ditames constitucionalmente impostos para o regime geral de punição das infracções disciplinares.
A jurisprudência tomada pelo Supremo Tribunal Administrativo, de que
é exemplo o acórdão impugnado e que daquela se faz eco, tem sustentado, sem discrepâncias, que a medida de dispensa do serviço é uma medida de natureza estatutária que se não confunde com qualquer pena disciplinar.
Também essa postura foi defendida no Parecer exarado pela Procuradoria-Geral da República no Procº nº 54/79 e que se encontra publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 292, 148 a 158, relativamente a uma medida de conteúdo semelhante à ora em apreço, constante do Regulamento de Disciplina Militar aprovado pelo Decreto-Lei nº 142/77, de 9 de Abril, e interpretada autenticamente pelo Decreto-Lei nº 203/78, de 24 de Julho.
Não se poderá, porém, como faz o acórdão recorrido, dizer expressamente que o mesmo foi defendido no Parecer da Comissão Constitucional nº
32/79 (in Pareceres da Comissão Constitucional, 10º volume, 81 a 196).
É que, muito embora neste último Parecer se dissesse, por entre o mais, que, '... na verdade, a natureza autónoma das medidas estatutárias, com fundamentos e fins diversos dos das penas disciplinares, torna aquelas independentes da extinção, quer do procedimento disciplinar, quer do criminal; são realidades que nada lhes dizem e que se movem em campos diferentes, não se chocando entre si', também se aceitava 'que a constitucionalidade das medidas estatutárias possa ser discutida', mas que, simplesmente, isso teria de ser posto à luz do Regulamento de Disciplina Militar, corte normativa que, então, estava fora do objecto daquele Parecer.
Convém-se que, de um ponto de vista lógico-jurídico e, até, não afastando a perspectiva constitucional, se apresenta como um caminho cheio de escolhos a questão de se afirmar, sem mais, que a denominada sanção estatutária representa uma realidade diferente das sanções disciplinares (para maiores desenvolvimento, cfr. o voto de vencido aposto ao mencionado Parecer da Comissão Constitucional pelo vogal Consº Luís Nunes de Almeida, no qual se defendeu que o que caracteriza as sanções estatutárias 'não é o tipo de infracção que ela visa punir, nem o processo conducente à respectiva aplicação, nem a entidade que a pode aplicar', mas sim o facto de ela '«afectar a situação jurídica» do agente,
«atingindo-o como tal»; isto é, uma certa sanção é sempre estatutária desde que afecte o estatuto profissional do agente, desde que o atinja «na sua carreira profissional ou situação funcional, modificando-as em seu prejuízo»').
Mas, mesmo que se concluísse que as denominadas sanções estatutárias haveriam de ser entendidas como sanções disciplinares, ao menos para efeitos do seu tratamento constitucional, nem por isso se haveria de seguir inelutavelmente
à conclusão a que chega o recorrente.
2.2. De facto, esgrime este com a circunstância de as normas em apreciação terem sido editadas por diplomas governamentais que não foram precedidos de autorização concedida pela Assembleia da República.
É que, mesmo aceitando que a matéria regulada nos artigos 94º da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana e 75º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana dissesse respeito a matéria disciplinar (e continuando a pôr de remissa o problema acima focado) ou a matéria conexionada com direitos, liberdades e garantias (enquanto criadores de situações que podem ser vistas como afectando a carreira ou situação profissional dos militares da Guarda Nacional Republicana e, por isso, com ligação à própria segurança no emprego), o que se torna nítido é que a medida de dispensa de serviço ali estatuída não é algo de inovatoriamente consagrado.
Na realidade, uma tal medida, com um figurino em tudo semelhante, encontrava-se já prevista no Regulamento de Disciplina Militar e com reporte ao Decreto-Lei nº 203/78 - um e outro editados pelo órgão então dotado de poderes constitucionais para tanto - Regulamento esse que veio a ser aplicável aos militares da Guarda Nacional Republicana [cfr. nº 1 do artº 69º e nº 1 do artº
32º, ambos da Lei nº 29/82, de 11 de Dezembro, artigos 2º, alínea e), e 16º, estes da Lei nº 11/89, de 1 de Junho; hoje em dia, contudo, após a entrada em vigor da Lei nº 145/99, de 1 de Setembro, aquele corpo especial de tropas ficou dotado de um regulamento de disciplina próprio]. Justamente por isso, ou seja, porque essa medida já lhes era aplicável, se explicitou no Decreto-Lei nº
333/83, de 14 de Julho, ao sistematizar as normas referentes à orgânica da Guarda Nacional Republicana que o militar do quadro permanente da Guarda Nacional Republicana no activo ou na efectividade de serviço que não convenha ao serviço ou ainda por razões de ordem moral, física, militar e técnico-profissional poderá ser dispensado do serviço ou passar às situações de reserva, reforma ou separado do serviço, após o apuramento processual dos factos
(cfr. artº. 70º, nº 1), sendo uma tal decisão da competência do comandante-geral, mediante parecer favorável do Conselho Superior da Guarda (nº
2 do mesmo artigo).
Não se pode, assim, dizer que a medida a que se reportam as normas em causa trouxe, relativamente aos militares da Guarda Nacional Republicana, algo de novo ou, se se quiser, lhes impôs uma medida à qual não estavam anteriormente sujeitos, ou se inovou, com carácter interpretativo ou integrativo ou conferindo uma acrescida e qualificada dimensão de natureza substantiva quanto à respectiva natureza, quanto às linhas rectoras do procedimento conducente sua aplicação (cfr., sobre o ponto, por entre outros, o Acórdão deste Tribunal nº 174/93, nomeadamente o seu ponto 6.2., publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º volume, 57 a 164)
3. Afastado que seja o invocado vício de inconstitucionalidade orgânica, nem por isso a questão fica resolvida.
De facto, o recorrente suscita problemas de desconformidade material com o Diploma Básico que se impõe equacionar.
Assim, mesmo partindo de uma óptica de harmonia com a qual a situação de dispensa do serviço tem, necessariamente, a ver com o direito à segurança no emprego, por isso que permitiria a cessação do efectivo desempenho de uma «relação laboral» e, consequentemente, seria afectado o artigo 53º da Constituição, sempre se dirá que aquela medida não está conceptualizada de molde a poder-se concluir que a mesma é ou pode ser aplicável ad libitum, antes só o podendo ser se ocorrerem causas precisas, indicadas nas normas em questão.
Na verdade, como aliás se escreveu no acórdão ora sub iudicio, o militar da Guarda Nacional Republicana só será abatido aos respectivos quadros após se ter concluído, em processo próprio, que não reúne as condições essenciais para o exercício das respectivas funções, sendo que, pela natureza das suas atribuições e pelo modelo de organização daquele corpo especial de tropas, são de exigir dos seus militares condições especiais de permanente aptidão física, psíquica e psicológica, comportamentos pautados por estritos rigores éticos de coesão interna e acentuado espírito de disciplina, condições e comportamentos estes que, a não serem seguidos, são justificativos da não manutenção efectiva da acima indicada «relação laboral».
Não poderá, desta sorte, equiparar-se a medida de dispensa de serviço a um caso de despedimento sem justa causa.
A exigência de uma causa adequada à cessação da efectiva «relação laboral» e a exigência de um processo que assegure plenamente garantias de defesa em relação ao militar está amplamente consagrada nas normas em apreciação.
4. Sustenta ainda o recorrente que a consagração da medida em análise viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição, pois que, não havendo diferença 'quanto à sua missão nem quanto à sua tutela entre a força de segurança GNR e a força de segurança PSP', não se justificaria que os membros da primeira estivessem sujeitos à medida, enquanto os não estavam os da segunda.
No que concerne ao princípio da igualdade, é já muito abundante a jurisprudência deste Tribunal. Citam-se, assim, a título exemplificativo, os Acórdãos números 186/90, 330/93, 335/94 e 565/96 (publicados na 2ª Série do Diário da República de, respectivamente, 12 de Setembro de 1990, 30 de Julho de
1993, 30 de Agosto de 1994 e 16 de Maio de 1996), de onde se pode extrair que o princípio da igualdade postula que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento diverso a situações de facto desiguais.
O princípio da igualdade não proíbe a diversidade de tratamento. O que veda é o estabelecimento de distinções sem fundamento racional e objectivo, ditadas pela irrazoabilidade e, logo, pelo mero arbítrio (parafraseando Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição de 1976, 299, o que importa
'é que não se discrimine para discriminar').
Por isso, impõe-se - para apurar se o princípio da igualdade é violado quando se está perante soluções legislativas que regulam de forma diversa situações que, prima facie, podiam merecer o mesmo tratamento - saber se o legislador, ao adoptar essa solução, no exercício da sua liberdade de conformação, foi informado por situações de facto que reclamam diversos tratamentos, que parametrizados finalisticamente, encontram razoabilidade e adequação na respectiva consagração.
Em face destas considerações, há que reconhecer que são profundas as diferenças entre as forças de segurança Guarda Nacional Republicana e Polícia de Segurança Pública.
A primeira é, seguramente, uma força de segurança que, como deflui do artº 1º da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, é constituída por militares organizados num corpo especial de tropas, tem dependência do Ministro da Defesa Nacional, no que respeita à uniformização e normalização da disciplina militar, do armamento e do equipamento, pode ser colocada na dependência operacional do Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas em caso de guerra ou em situação de crise (cfr. artº 9º da mesma Lei Orgânica), está subordinada a princípios de comando e os seus militares estão sujeitos a aquartelamento e enquadramento hierárquico muito próximo do das Forças Armadas. Estas características aproximam, pois, os militares das Guarda Nacional Republicana e a respectiva organização daqueloutras típicas da instituição militar (cfr., quanto a estas, cfr. o Acórdão deste Tribunal nº 103/87, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º volume, 83 a 182).
O mesmo se não passa com a Polícia de Segurança Pública, acerca da qual se não pode dizer, como o recorrente diz, que dela fazem parte «agentes militarizados» dessa força de segurança que, por o serem, ou melhor, não obstante o serem, não estão sujeitos a medida idêntica à sub specie (o recorrente alude ainda a que os militares das Forças Armadas não estão também sujeitos a tal medida o que, viu-se já, não corresponde à realidade); por outro lado, não se pode sustentar que esta força de segurança seja uma força de segurança militar, pois que, indubitavelmente, está organizada e hierarquizada em termos acentuadamente diversos reportadamente à Guarda Nacional Republicana.
As características que informam esta Guarda e a aproximam da instituição militar, ao que há que aditar, além disso, o que foi referido numa parte do quarto parágrafo do antecedente ponto 3., constituem, desta arte, todo um condicionalismo que deverá ser considerado como suporte bastante para que se conclua que não se apresenta irrazoável ou desprovida de fundamento racional (ou seja, que se não apresente como arbitrária) a solução consistente na adopção da medida de dispensa do serviço em relação aos militares da Guarda Nacional Republicana (à semelhança do que existe para os militares das Forças Armadas) e que, relativamente aos membros da Polícia de Segurança Pública, uma medida de idêntico jaez não tenha consagração.
Não se vislumbra, por isso, violação do princípio da igualdade.
5. Refira-se, por último, que se não lobriga que a consagração legal da medida de dispensa de serviço se revele, em si, desproporcionada quando estejam em causa comportamentos que, objectivamente, são de considerar acentuadamente graves, como é o caso daquele que foi prosseguido pelo recorrente e que ditaram a aplicação da medida na vertente situação.
Efectivamente, como já se assinalou acima, muito embora essa medida acarrete uma cessação do efectivo desempenho de uma «relação laboral», não deixará de se reconhecer que os pressupostos de facto que legalmente são estipulados para que a mesma seja tomada, são de tal monta que, para um corpo especial de tropas tal como a Guarda Nacional Republicana, com as características a que já se fez alusão, seria inexigível a manutenção ao serviço de militares que adoptaram comportamentos indiciadores de notórios desvios dos requisitos morais, éticos, técnico-profissionais ou militares que têm de ser apanágio do respectivo desempenho de serviço, sob pena de não poderem ser prosseguidos os objectivos cometidos àquele corpo especial de tropas.
6. Uma derradeira nota para assinalar que o que é referido pelo recorrente na «conclusão» 25ª da sua alegação (e que retracta o que escreveu no
último parágrafo do «teor» dessa alegação, imediatamente antes da formulação das
«conclusões»), não pode ser tomado em conta por este Tribunal, cujos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade têm por objecto norma jurídicas e não outros actos do poder público tais como, verbi gratia, os actos administrativos (que não assumam a forma normativa) ou as decisões judiciais qua tale consideradas, sendo que no ordenamento jurídico português não existe uma forma similar ao «recurso de amparo» como aquela que se surpreende noutros países.
III
Em face do que se deixa dito, nega-se provimento ao recurso, condenando-se o recorrente nas custas processuais, fixando em 15 unidades de conta a taxa de justiça. Lisboa, 28 de Novembro de 2000 Bravo Serra Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Luís Nunes de Almeida