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Proc. nº 7/99
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A... (ora recorrido) interpôs recurso do despacho do Vereador do Pelouro de Urbanismo e Reabilitação Urbana da Câmara Municipal do Porto que indeferiu a impugnação da liquidação da taxa por deficiência de aparcamento no montante de
300.000$00, alegando, designadamente, que aquela denominada taxa, prevista no Regulamento Municipal de Obras (RMO) da Câmara Municipal do Porto tem as características de um imposto para cuja criação os municípios carecem de competência.
2. Pelo Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto foi proferida decisão com o seguinte teor:
'A primeira das questões colocadas pelo impugnante refere-se à natureza jurídica da taxa de aparcamento deficitário. O art. 106º do RMO estabelece que «caso o Município venha a reconhecer que as condições locais tornam impossível, ou inconveniente, a aplicação das normas contidas no artigo anterior – em que se definem as áreas destinadas a estacionamento – o dono da obra deve pagar ao Município uma quantia, resultante da aplicação da área deficitária de estacionamento, por um valor por metro quadrado, equivalente a 30% do valor unitário, por metro quadrado, do custo de construção previsto no art. 98º, entendendo-se que cada lugar de estacionamento corresponde a 25 m2 de área». O art. 12º da Port. 274/77, de 19 de Maio, emitida pelo Ministro da Habitação, Urbanismo e Construção, que aprovou o Regulamento do Plano Geral de Urbanização da Cidade de Lisboa, sob a epígrafe «Estacionamento e Garagens» referia, entre outras coisas, que: «Caso o Município reconheça que as condições locais tornam impossível ou inconveniente a aplicação das presentes disposições – em tudo idênticas às do RMO, aplicado no caso dos autos – o construtor poderá ser dispensado do seu cumprimento, mediante o pagamento ao Município de uma quantia a fixar mediante a aplicação à área deficitária de estacionamento de um preço por metro quadrado equivalente a 15% do custo unitário médio, estimado para a construção». A semelhança entre o texto que regulava a aplicação da taxa deficitária de aparcamento para Lisboa e a que regulava, à data da liquidação, a mesma taxa para o Porto, é muito acentuada. Por diversas vezes, quer o STA, quer o Tribunal Constitucional concluíram que a taxa deficitária de aparcamento, apesar do seu nome, mais não era do que uma contribuição ou tributo especial, diversa da taxa e do imposto apenas pela sua justificação económico-financeira, mas à qual deve ser dado um tratamento jurídico equivalente ao do imposto. Aceitando a posição maioritária da doutrina portuguesa que se tem pronunciado no sentido de negar autonomia às contribuições especiais, considerando que as mesmas devem ser tratadas por impostos, também os referidos Tribunais vieram a considerar, ao longo de variadas decisões, que a ausência de áreas de aparcamento privado, ocasionando um acréscimo de despesas para ao município que se vê obrigado a aumentar as áreas de aparcamento público constituiria uma contribuição ou tributo especial que merecia o tratamento jurídico semelhante
àquele que é exigido aos próprios impostos. Com efeito, sendo o imposto entendido como uma prestação pecuniária, coactiva e unilateral, sem carácter de sanção, exigida pelo Estado ou outros entes públicos, com vista à realização de fins públicos, a sua característica de unilateralidade permite distingui-lo das taxas que têm um carácter sinalagmático, por à prestação do particular corresponder, co0mo contrapartida, uma actividade do Estado especialmente dirigida ao respectivo obrigado. O encargo de compensação em discussão nestes autos não se configura como uma taxa, na acepção tradicional deste conceito jurídico, já referida, uma vez que o pagamento desse encargo não confere ao particular o direito à utilização individualizada ou efectiva de qualquer área de parqueamento público, nem muito menos constitui o município na obrigação de criar ou manter tais áreas. Pelas razões expostas, não se vê que particularidade possa ter a situação em análise que possa levar a conclusão diversa da já referida. Assim sendo, haverá que ter em conta que o art. 106º da Constituição da República Portuguesa determina que ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não tenham sido criados nos termos da Constituição sendo estes criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes. A elaboração da lei sobre criação de impostos e sistema fiscal é da competência exclusiva da Assembleia da República, salvo quando seja concedida autorização legislativa ao Governo, para esse efeito. Uma vez que a criação da taxa de aparcamento deficitário em análise nestes autos foi criada pela autarquia, em desrespeito pelas normas constitucionais invocadas, padece ela de inconstitucionalidade formal e orgânica pelo que, procedendo à fiscalização concreta da constitucionalidade da norma, declaro inconstitucional o referido art. 106º, em conformidade com o disposto no art.
277º, da CRP, e determino a não aplicação da norma em apreço'.
3. É desta decisão que vem interposto pelo Representante do Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso de constitucionalidade, com fundamento na recusa de aplicação pela decisão recorrida, por inconstitucional, do disposto no artigo 106º do Regulamento Municipal de Obras (RMO) da Câmara Municipal do Porto.
4. Já neste Tribunal foi o Ministério Público notificado para alegar, o que fez, tendo concluído nos seguintes termos:
'1. A taxa de aparcamento deficitário criada pelo artigo 106º do Regulamento Municipal de Obras da Câmara Municipal do Porto, não se configura juridicamente como taxa, já que o particular que liquida as quantias devidas a tal título ao Município não adquire qualquer direito ou contrapartida que lhe permita a utilização individualizada ou efectiva de qualquer área de parquemanto público.
2. Tal figura reveste, pois, natureza tributária estando sujeita aos princípios da Constituição fiscal, o que implica a necessidade de criação por via legislativa, não podendo obviamente um regulamento local criar tal obrigação para os particulares.
3. termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida'.
5. Por parte do Recorrido não foi apresentada, dentro do prazo legal, qualquer alegação.
Dispensados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
6. Como, bem, sustenta a decisão recorrida – posição que é secundada pelo Representante do Ministério Público neste Tribunal – a norma ora objecto de recurso, o artigo 106º do Regulamento Municipal de Obras (RMO) da Câmara Municipal do Porto, que criou para a área da cidade do Porto a denominada «taxa de aparcamento deficitário», apresenta uma manifesta analogia com a norma do artigo 12º do Regulamento do Plano Geral de Urbanização da Cidade de Lisboa, aprovado pela Portaria nº 274/77, de 19 de Maio, que havia criado, para a área da cidade de Lisboa, a figura do «encargo de compensação por deficiência de estacionamento».
7. O Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 236/94 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27º Vol., pp. 227 e ss.) declarou já, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do segmento final daquele artigo 12º do Regulamento do Plano Geral de Urbanização da Cidade de Lisboa - segmento normativo que permite ao construtor ser dispensado mediante pagamento ao município de uma quantia a fixar nas condições aí impostas, da consideração e previsão de áreas de estacionamento, previstas na mesma norma - por violação dos artigos 106º, nºs 2 e 3, e 167º, alínea o), da Constituição (versão originária).
Fundamentou-se, então, essa decisão nos seguintes termos:
'O segmento final deste artigo ('Caso o município reconheça que as condições locais tornam impossível ou inconveniente a aplicação das presentes disposições, o construtor poderá ser dispensado do seu cumprimento, mediante pagamento ao município de uma quantia a fixar, mediante aplicação à área deficitária de estacionamento de um preço por metro quadrado equivalente a 15% do custo unitário médio estimado para a construção') foi julgado inconstitucional em decisões das duas secções do Tribunal Constitucional, destacando-se, além dos três acórdãos invocados no pedido, o Acórdão nº 836/93, ainda inédito. Nestas decisões reiteradas tem-se considerado que é da competência exclusiva da Assembleia da República legislar sobre a criação de impostos e sistema fiscal, tendo o referido encargo de compensação a natureza de imposto. Pode ler-se no primeiro daqueles Acórdãos, o nº 277/86:«Nos casos em que a actividade do Estado se traduziria na remoção de um limite jurídico à actividade dos particulares - como se poderia querer ver na hipótese dos autos -, já recentemente se entendeu que só haveria taxa quando essa remoção «possibilita a utilização de um bem semi-público» (cfr. Teixeira Ribeiro, «Noção Jurídica de Taxa», in Revista de Legislação e Jurisprudência, nº 3727, ano 117º, p. 289 e segs.) A adoptar-se esta última tese estaríamos iniludivelmente, no caso em apreço, perante um imposto. Mas, ainda que assim se não entenda, sempre haverá que reconhecer que o
«encargo de compensação» a que se reportam os autos se não configura como uma taxa, na acepção tradicional deste conceito jurídico. Efectivamente, se a ausência de uma área de parqueamento própria vai conduzir a uma maior utilização das áreas de parqueamento público porventura existentes, a verdade é que o pagamento do encargo de compensação em causa não confere o direito à utilização individualizada ou efectiva de qualquer área de parqueamento público, nem sequer constitui o município na obrigação de criar ou manter tais áreas. Estaríamos, assim, perante aquilo a que alguma doutrina denomina como contribuições ou tributos especiais [...], por vezes considerados como tertium genus, para além das taxas e dos impostos [...]. Assim, e no caso vertente, a ausência de áreas de parqueamento privado ocasiona um acréscimo de despesas para o município, por este se ver «forçado» a aumentar as áreas de parqueamento público. Acontece, porém, que a doutrina portuguesa se tem pronunciado de forma largamente maioritária, se não unânime, no sentido de negar autonomia às contribuições especiais, considerando que as mesmas devem ser tratadas como impostos (é o que sucede com o imposto de camionagem, devido pelo facto de os veículos pesados ocasionarem despesas com a conservação das estradas) [...]. Ora, não se vê motivo para que este Tribunal, ao arrepio da doutrina portuguesa da especialidade, viesse agora considerar que as denominadas contribuições especiais mereciam um tratamento jurídico autónomo, relativamente aos impostos, para efeitos de subtrair a respectiva criação à reserva de competência legislativa da Assembleia da República'. (Acórdãos cit., págs. 386-387). Aceitando esta caracterização do encargo de compensação referido, o Acórdão nº
313/92 sustentou igualmente que tal contribuição para maior despesa não afastava que as contribuições especiais tivessem de ter um tratamento legislativo semelhante àquele que é exigido aos próprios impostos: «Na realidade, tem a doutrina fiscal portuguesa vindo a entender que, muito embora haja justificação económico-financeira para uns tributos serem havidos como compensações ou contribuições especiais, do ponto de vista jurídico estas e os «impostos» propriamente ditos têm de sofrer o mesmo tratamento (cf. Cardoso da Costa, ob. cit., p. 15, Sá Gomes, idem, p. 97, e Alberto Xavier, idem, p. 59)». Aos argumentos utilizados pela doutrina, designadamente aqueles que se podem encontrar nos referidos autores, não são oponíveis quaisquer outros que agora este Tribunal divise, como já não divisava aquando da prolação do aludido Acórdão nº 277/86. Daí que se tenha de concluir que o tributo instituído pela norma de que curamos deva ser perspectivado como um «imposto» quanto ao tratamento legislativo que há-de sofrer tal compensação' (Diário cit., pág. 1848). Nada há a acrescentar ao entendimento assim expresso sobre a presente questão de constitucionalidade, o qual deve ser reiterado uma vez mais. De facto, 'a Constituição determina no seu artigo 106º que «ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não tenham sido criados nos termos da Constituição» (nº 3) e que «os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes» (nº
2). E, ao tempo da emissão da Portaria nº 274/77 (antes da revisão constitucional de 1982), preceituava então a alínea o) do artigo 167º da mesma Lei Fundamental - aplicável por força do princípio tempus regit actum -, tal como hoje preceitua a alínea i) do nº 1 do artigo 168º, que é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre a «criação de impostos e sistema fiscal».' (citado Acórdão nº 277/86, in Acórdãos cit., pág. 385). Tendo o referido «encargo de compensação» sido criado por regulamento aprovado por portaria, em vez de ter sido criado por lei ou decreto-lei autorizado, deve concluir-se que o segmento final do artigo 12º do Regulamento aprovado pela Portaria nº 274/77 se acha afectado de inconstitucionalidade'.
8. É esta jurisprudência que, dada a já aludida analogia entre a norma então declarada inconstitucional e a norma ora objecto de recurso, agora importa reafirmar. Assim, pelos fundamentos aduzidos no Acórdão nº 236/94 - para os quais, com as necessárias adaptações, se remete - é efectivamente de considerar inconstitucional, por violação dos artigos 106º, nºs 2 e 3, e 167º, alínea o), da Constituição (versão originária), a norma do artigo 106º do Regulamento Municipal de Obras da Câmara Municipal do Porto. III Decisão Pelo exposto, decide-se: i) julgar inconstitucional a norma do artigo 106º do Regulamento Municipal de Obras da Câmara Municipal do Porto (em vigor até ser revogada em 19 de Junho de
1995), que criou a denominada «taxa de aparcamento deficitário», por violação dos artigos 106º, nºs 2 e 3, e 167º, alínea o), da Constituição (versão originária). ii) confirmar a decisão recorrida no que respeita ao juízo de inconstitucionalidade que nela se formula. Lisboa, 20 de Outubro de 1999 José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento Luís Nunes de Almeida