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Proc. nº 245/99 TC – Plenário Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
1 - O Ministro da República para a Região Autónoma dos Açores requer, nos termos do artigo 281º nº. 1 alínea e) e 2º alínea g) da Constituição da República Portuguesa (CRP), em processo de fiscalização abstracta sucessiva, a declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, do nº. 2 do artigo 6º do Decreto Legislativo Regional (DLR) nº. 19-A/98/A, de 31 de Dezembro, por violação do princípio contido no nº. 1 do artigo 7º da Lei nº. 42/98, de 6 de Agosto.
Fundamentou o pedido nos seguintes termos:
'1º - Dispõe o nº. 2 do artigo 6º do Decreto Legislativo Regional nº.
19-A/98/A, de 31 de Dezembro, que 'o Governo Regional fica autorizado, através do Secretário Regional da Presidência para as Finanças e Planeamento, a assumir, nos termos legais e até ao montante de 2,1 milhões de contos, a dívida das autarquias locais'.
2º - Por sua vez, o nº. 1 do artigo 7º da Lei nº. 42/98, de 6 de Agosto, estatui que 'não são permitidas quaisquer formas de subsídios ou comparticipações financeiras aos municípios e freguesias por parte do Estado, das Regiões Autónomas, dos institutos públicos e dos fundos públicos'.
3º - Ora, a competência legislativa regional encontra-se limitada não apenas por parâmetros de constitucionalidade – o interesse específico e as matérias reservadas aos órgãos de soberania -, mas também por um parâmetro de legalidade – o respeito pelos princípios fundamentais das leis gerais da República (artigo 112º, nºs. 4 e 5, e artigo 227º, nº. 1, alínea a)).
4º - A Lei nº. 42/98, de 6 de Agosto, constitui uma lei geral da República, na medida em que preenche os três requisitos constitucionalmente consagrados para o efeito: o âmbito espacial de aplicação; a razão de ser; e a autoqualificação (Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva, Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores – Anotado, Lisboa, 1997, págs. 107 e segs.).
5º - Em primeiro lugar, a Lei nº. 42/98, de 6 de Agosto, vigora em todo o território nacional, como esclarece o seu artigo 35º ao estabelecer que
'a presente lei é directamente aplicável aos municípios e freguesias das Regiões Autónomas'.
6º - Em segundo lugar, não obstante as dificuldades inerentes à dilucidação da 'razão de ser' de uma lei, afigura-se indiscutível que a Lei nº.
42/98, de 6 de Agosto, versando sobre uma componente basilar do poder local, contém necessariamente princípios fundamentais cuja observância é sinal e garantia do carácter unitário do Estado (Barbosa de Melo, Cardoso da Costa e Vieira de Andrade, Estudo e projecto de revisão constitucional, Coimbra, 1981, págs. 264 e segs.), estabelecendo, em consequência, um regime cujo âmbito nacional é imperativo por natureza (Sérvulo Correia, Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos, Coimbra, 1984, págs. 203 e 204).
7º - Em terceiro lugar, a Lei nº. 42/98, de 6 de Agosto, foi decretada pelo legislador parlamentar, nos termos do nº. 5 do artigo 112º, 'para valer como lei geral da República', como se comprova pela simples leitura do proémio do diploma (artigo 9, nº. 5, e 11º, nº. 1, da Lei nº. 74/98, de 11 de Novembro).
8º - Por outro lado, não há dúvida de que o nº. 1 do artigo 7º da Lei
42/98, de 6 de Agosto, proibindo quaisquer formas de subsídios ou comparticipações, estabelece um princípio fundamental em matéria de relacionamento financeiro entre as autarquias locais e o Estado e entre as autarquias e as Regiões Autónomas, o qual constitui não só um corolário da autonomia financeira daquelas, mas também uma regra essencial à transparência das relações financeiras em questão e uma garantia da igualdade de tratamento das autarquias por parte do Estado e das Regiões Autónomas.
9º - O nº. 2 do artigo 6º do Decreto Legislativo Regional nº.
19-A/98/A, de 31 de Dezembro, ao autorizar o Governo Regional a assumir uma parte substancial das dívidas das autarquias, permite a atribuição aos municípios e freguesias sediadas na Região de uma determinada modalidade de comparticipação financeira, colocando em risco os valores ínsitos no nº. 1 do artigo 7º da Lei nº. 42/98, de 6 de Agosto, e, muito em especial, a igualdade de tratamento entre as autarquias locais dos Açores e as demais autarquias do Continente e da Madeira.
10º - É certo que o princípio contido no nº. 1 do artigo 7º da Lei nº. 42/98, de 6 de Agosto, comporta excepções, algumas delas previstas nos restantes números do mesmo preceito, mas é igualmente verdade que nenhuma dessas excepções permite enquadrar a simples assunção de dívidas das autarquias locais.
11º - Aliás, a única referência da Lei nº. 42/98, de 6 de Agosto, a dívidas das autarquias locais, constante do artigo 8º, apenas se refere às dívidas 'definidas por sentença judicial transitada em julgado ou por elas não contestadas' e destina-se, numa lógica de autonomia e responsabilidade financeira, a estabelecer um regime em que o pagamento dessas mesmas dívidas se faz por conta das verbas a transferir, segundo as regras gerais do diploma, para as autarquias respectivas.
12º - Nem se invoque o poder normativo atribuído às assembleias legislativas regionais pelo nº. 7 do artigo 7º da Lei nº. 42/98, de 6 de Agosto, onde se estatui que 'tendo em conta a especificidade das Regiões Autónomas, as assembleias legislativas regionais poderão definir outras formas de cooperação técnica e financeira', porque não apenas a situação de endividamento de algumas das autarquias açorianas não apresenta quaisquer especificidades face às demais autarquias, como também a assunção de dívidas não se enquadra no conceito de cooperação técnica e financeira, que abrange somente as situações que transcendam 'a capacidade ou responsabilidade autárquica' (artigo 1º, nº. 2, do Decreto-Lei nº. 363/88, de 14 de Outubro) ou 'projectos de investimento', envolvendo um ou mais municípios e departamentos da administração central ou regional (artigo 1º do Decreto-Lei nº. 384/87, de 24 de Dezembro; Decreto Legislativo Regional nº. 6/95/A, de 28 de Abril).
13º - Da mesma forma, o artigo 35º da Lei nº. 42/98, de 6 de Agosto, ao estatuir que a sua aplicação às Regiões Autónomas se faz 'sem prejuízo da sua regulamentação pelas assembleias regionais, na medida e que tal se torne necessário' não constitui norma habilitante suficiente para o nº. 2do artigo 6º do Decreto Legislativo Regional nº. 19-A/98/A, de 31 de Dezembro, porquanto, como frisou já o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº. 82/86 (DR, I, de 2 de Abril de 1986), o sentido de tais disposições não pode ser outro senão o de reconhecer aos referidos órgãos a competência para a emanação de meros regulamentos de execução, com o objectivo de 'enunciar os pormenores ou minúcias que o legislador omitiu e são necessários à aplicação da lei (no caso, à sua adaptação às especificidades regionais)'.
14º - Por outro lado, não procede também, no sentido de impedir a admissibilidade deste pedido, a invocação do facto de o nº. 2 do artigo 6º do Decreto Legislativo Regional nº. 19-A/98/A, de 31 de Dezembro, conter uma
'autorização' dirigida a um único destinatário, quando a fiscalização da constitucionalidade e da legalidade é de normas jurídicas. Com efeito, desde há muito que o Tribunal Constitucional tem adoptado um 'conceito de norma funcionalmente adequado ao sistema de fiscalização da constitucionalidade (...) e consonante com a sua justificação e sentido', pelo que, em relação aos actos legislativos, porque têm como padrão de validade a Constituição (e as leis de valor reforçado), não é exigível que preencham as características da generalidade e da abstracção, próprias da noção material de norma 'doutrinária e aprioristicamente fixada' (Acórdão nº. 26/85, DR, II, de 26 de Abril de 1985).
15º - Por último, importa ainda considerar a hipótese de o nº. 2 do artigo 6º do Decreto Legislativo Regional nº. 19-A/98/A, de 31 de Dezembro – devido à duração anual de vigência dos diplomas orçamentais -, já não se encontrar em vigor no momento em que o Tribunal Constitucional se vier a pronunciar, para sublinhar que nem por isso a declaração de ilegalidade deixará de ter utilidade. Efectivamente, como tem sido jurisprudência constante desse Alto Tribunal, é de conhecer da questão da constitucionalidade ou da ilegalidade de normas revogadas ou caducas quando subsista um 'interesse jurídico relevante'
(Acórdão nº. 306/88, DR, I, de 20 de Janeiro de 1989), como se verifica no caso em apreço, dado que a eficácia retroactiva da declaração de ilegalidade produzirá a destruição dos efeitos produzidos pela norma legal durante o período da sua vigência, em especial dos actos do Governo Regional praticados ao seu abrigo.
Requer-se, nestes termos, a declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, da norma contida no nº. 2 do artigo 6º do Decreto Legislativo Regional nº. 19-A/98/A, de 31 de Dezembro, por violação de um princípio fundamental de Lei Geral da República – contido no nº. 1 do artigo 7º da Lei nº.
42/98, de 6 de Agosto -, e, indirectamente, por violação do nº. 5 do artigo 112º e da alínea a) do nº. 1 do artigo 227º da Constituição.'
O Presidente da Assembleia Regional dos Açores, notificado para responder ao pedido, nada disse.
Cumpre decidir.
2 – Nada obsta a que se entre no conhecimento do pedido formulado por quem tem legitimidade para o fazer nos termos do artigo 281º nº. 2, alínea g) da Constituição da República Portuguesa.
Limitado nos seus poderes de cognição ao âmbito do pedido tal como ele vem recortado pelo requerente, o Tribunal terá que apreciar e decidir a questão de saber se a norma do artigo 6º nº. 2 do Decreto Legislativo Regional nº. 19-A/98/A está ferida de ilegalidade, por violação de um princípio fundamental de lei geral da República.
3 - Apontando o requerente, como parâmetro de legalidade da citada norma, a Lei nº. 42/98 – mais concretamente, o artigo 7º nº. 1 deste diploma – impõe-se verificar se este diploma reveste as características constitucionalmente exigidas para condicionar o poder legislativo das regiões autónomas, ou seja, e num primeiro momento, se ele pode qualificar-se como lei geral da República (artigo 227º nº. 1 alínea a) da CRP).
Logo na sua versão originária, a Constituição estabelecia, entre outros, um limite ao poder legislativo das regiões: a necessária observância das leis gerais da República (artigo 229º nº. 1 alínea a) da CRP).
Por definir ficava, porém, o conceito de lei geral da República, o que vem a ocorrer na 1ª revisão constitucional com a norma do artigo 115º nº. 4:
'as leis e os decretos-leis cuja razão de ser envolva a sua aplicação sem reservas a todo o território nacional'; era, aliás, 'a importação' do conceito definido no Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores aprovado pela Lei nº. 39/80, de 5 de Agosto – artigo 26º nº. 2 alínea a).
Mantendo-se o estabelecido no artigo 227º nº. 1 alínea a) (então, artigo 229º nº. 1 alínea a)), o nº. 3 do citado artigo 115º expressava a superioridade das leis gerais da República sobre os decretos legislativos regionais, contra as quais estes não podiam dispor.
Com a revisão de 89, permanece inalterado o conceito de leis gerais da República, como inalterado ficou o artigo 229º nº. 1 alínea a); da conjugação do nº. 3 do artigo 115º com a nova alínea b) do nº. 1 do artigo 229º resultou, ainda, que a prevalência das leis gerais da República cedia nos casos em que a região autónoma legislasse, sob autorização da Assembleia da República, em matérias de interesse específico para a região não reservadas à competência própria dos órgãos de soberania.
A revisão de 97 introduz alterações relevantes a este regime.
Por um lado, na hierarquia dos actos normativos, a prevalência das leis gerais da República face aos decretos legislativos regionais cinge-se aos princípios fundamentais daquelas leis [artigos 112º nº. 4 e 227º nº. 1 alínea a)].
Por outro, na definição do conceito de leis gerais da República suprime-se a expressão 'sem reservas' e adita-se 'que assim o decretem', visando, presumivelmente, com este elemento formal, a resolução de dúvidas acerca da natureza da lei.
Será, pois, neste quadro jurídico-constitucional, que o Tribunal deve formular o seu juízo sobre a legalidade da norma do artigo 6º nº. 2 do DLR nº. 19-A/98/A .
4 - Vários foram os arestos do Tribunal Constitucional que caracterizaram as 'leis gerais da República', tendo em conta o conceito constitucionalmente definido a partir da revisão de 82.
Com ressalva das incidências que o aditamento do aludido elemento formal necessariamente tem nessa caracterização, pode, no entanto, afirmar-se que, no essencial, mantém plena validade o que naqueles arestos se disse reportado ao elemento substancial do conceito – envolver a razão de ser das leis e dos decretos--leis a sua aplicação a todo o território nacional.
Versar matéria de 'inegável dimensão nacional', 'com relevo imediato para a generalidade dos cidadãos' que 'por exigências decorrentes do princípio da unidade do Estado e dos laços de solidariedade que devem unir os portugueses'
'são da competência dos órgãos de soberania' (cfr. Acórdão nº. 133/90 in ATC,
15º vol., p. 455 e outros aí citados) são critérios que o Tribunal tem adoptado para a individualização das leis gerais da República, sem prejuízo da análise caso a caso pois, como se escreve no citado Acórdão nº. 133/90, 'só através da identificação nas leis e nos decretos-leis das normas e princípios portadores de eficácia normativa para os cidadãos do todo nacional é que se torna possível saber se, em concreto, uma determinada lei ou um decreto-lei específico revestem a natureza de lei geral da República'.
5 - A Lei nº. 42/98 tem como antecedentes a Lei nº. 1/79, de 2 de Janeiro, o DL nº. 98/84 de 29 de Março e a Lei nº. 1/87, de 6 de Janeiro – é pois a 4ª lei das finanças locais no quadro da Constituição da República Portuguesa de 1976.
Desde a sua versão originária que a Constituição consagra o princípio da autonomia do poder local como um dos princípios fundamentais da organização do Estado (descentralizado) – artigos 6º nº.1, 237º, 242º
(correspondentes aos actuais artigos 6º nº. 1, 235º e 241º).
A autonomia financeira é pacificamente reconhecida como um pressuposto da autonomia local – sem a autonomia financeira, assente na independência financeira, compreendendo quer o domínio patrimonial quer a independência orçamental (cfr. Sousa Franco 'As finanças das autarquias locais' AAFDL, 1985, p. 14), não há condições para uma efectiva autonomia.
Daí que, logo também na sua versão originária, a Constituição tivesse consagrado essa autonomia no artigo 240º, cujo conteúdo preceptivo se mantém nas versões de 82, 89 e 97 (nesta, artigo 238º, apenas com o aditamento do nº. 4, que atribui às autarquias locais poderes tributários nos casos e nos termos previstos na lei).
No âmbito da autonomia financeira, consagra a Constituição os princípios da justa repartição dos recursos públicos e da correcção das desigualdades a que há-de obedecer o regime das finanças locais (artigo 238º nº.
2) regime este que, nos termos do mesmo preceito, constitui reserva de lei.
Paralelamente, o artigo 165º nº. 1 alínea q) da CRP integra na reserva relativa de competência da Assembleia da República legislar em matéria de regime das finanças locais que, significativamente, faz compreender no estatuto das autarquias locais (artigos 168º nº. 1 alínea s), 168º nº. 1 alínea r) e 167º alínea h), nas revisões de 89 e 82 e na versão originária, respectivamente).
Ora, dispondo a Lei nº. 42/98 sobre a disciplina do regime financeiro dos municípios e freguesias (artigo 2º) os princípios e regras dos seus orçamentos (artigo 3º), os seus poderes tributários (artigo 4º) o modo de repartição dos recursos públicos (capítulo II) as receitas das autarquias locais
(capítulo III) e o recurso ao crédito por parte das autarquias (capítulo IV) seguramente que ela, pela dimensão nacional das finalidades e interesses que visa prosseguir, não pode deixar de ser qualificada como lei geral da República.
Só, aliás, a aplicação a todo o território nacional – de resto, expressamente consagrada no artigo 35º - permite que ela cumpra, cabalmente, os princípios consagrados no nº. 2 do artigo 238º da CRP, ou seja, a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias e a correcção de desigualdade entre autarquias do mesmo grau; isto sem prejuízo da sua regulamentação, cometida às assembleias regionais nos termos do citado artigo
35º, o que não invalida aquela qualificação (cfr., em matéria semelhante, Ac. nº. 82/86 in ATC, 7º vol., tomo I, pp. 137 e segs.).
O que se deixa dito, - considerando que a Lei nº. 42/98 se auto-qualifica, valorativamente, como lei geral da República, cumprindo, deste modo, a exigência formal estabelecida no artigo 112º nº. 5 da CRP, - dispensa o Tribunal de assumir posição sobre as diversas questões que o novo conceito de lei geral da República pode suscitar, como o revelam as 'opiniões' de vários constitucionalistas publicadas in 'Legislação – Cadernos de Ciência de Legislação' nº. 19/20, em particular no que concerne à possibilidade de 'a justiça constitucional destituir a qualificação feita pelo legislador' quando se questiona 'a razão de ser da sua envolvência', ou de 'a justiça constitucional
(se) substituir ao legislador' quando, faltando o elemento formal, a 'matéria legislada é nitidamente de lei geral da República' (Manuel Afonso Vaz in ob. cit. p. 95; ainda, Maria Lúcia Amaral e Paulo Otero ob. cit. pp. 107 e 124, respectivamente).
Em suma, pois, a Lei nº. 42/98 é uma lei geral da República.
9 - O limite do poder legislativo regional no confronto com as leis gerais da República, que se reportava a todo o conteúdo dispositivo dessas leis, cinge-se, a partir da revisão constitucional de 97, - disse-se já – ao respeito pelos 'princípios fundamentais' daquelas leis, muito embora o artigo 281º nº. 1 alínea c), diversamente do que ocorre com o artigo 227º nº. 1 alínea a), não tenha sido consequentemente alterado e deva ser sujeito a interpretação correctiva (cfr. Carlos Blanco de Morais in cit. revista 'Legislação... nº.
19/20 p. 18).
Impor-se-ia, assim, que o julgador elucidasse, primeiro, este conceito, para depois abordar a questão de saber se o artigo 7º é a expressão de um dos princípios fundamentais da Lei nº. 42/98, ou seja do regime das finanças locais definido por este diploma.
À tarefa, árdua e complexa, de integrar este conceito indeterminado
– o dos 'princípios fundamentais' – não teve ainda oportunidade o Tribunal Constitucional de se dedicar; na doutrina, começa a ensaiar-se a dilucidação do conceito, procurando sintetizá-lo numa fórmula que, qualquer que seja a sua valia, terá sempre um limite: sendo os princípios fundamentais das leis gerais da República 'princípios referentes às matérias concretamente disciplinadas por estas leis', eles são 'insusceptíveis de uma captação apriorística' (Gomes Canotilho in cit. 'Legislação...' nº. 19/20 p. 42; cfr. ainda Carlos Blanco de Morais 'As competências legislativas das regiões autónomas no conceito da revisão constitucional de 1997', Separata da 'Revista da Ordem dos Advogados', ano 57, Dezembro de 1997, pp. 32 e segs.
Não obstante a norma em causa da Lei nº. 42/98 não surgir catalogada de princípio fundamental do regime instituído pela lei (qualificação insindicável pelo julgador ou mera presunção ilidível ?), ela revela, no contexto próprio do diploma, uma opção legislativa fundamental que, seja qual for o nível de densificação do conceito, não deixa margem para dúvidas no sentido da sua qualificação como 'princípio fundamental' do regime das finanças locais.
A regra expressa-se, positivamente, no nº. 1 do preceito: a proibição de 'quaisquer formas de subsídios ou comparticipações financeiras aos municípios por parte do Estado, das Regiões Autónomas, dos institutos públicos ou dos fundos autónomos'; nos nºs. 2 e 3 abrem-se excepções: inscrição de verbas no Orçamento do Estado, por ministério, para financiamento de projectos das autarquias locais de grande relevância, em casos de urgência e de comprovada e manifesta incapacidade financeira das autarquias para lhes fazer face (nº. 2); possibilidade do Governo e dos governos regionais tomarem providências orçamentais necessárias à concessão de auxílios financeiros às autarquias locais em determinadas situações tipificadas em diversas alíneas (nº. 3); ainda como excepção se pode considerar a possibilidade das assembleias legislativas regionais definirem, tendo em conta as especificidades das Regiões Autónomas, outras formas de cooperação técnica e financeira além das previstas no nº. 3
(nº. 7); no nº. 4, o Governo fica vinculado a definir por decreto-lei as condições em que houver lugar à cooperação técnica e financeira prevista no artigo; as providências orçamentais referidas no nº. 2 e em algumas alíneas do nº. 3 devem ser discriminadas por sectores, municípios e programas, salvo em casos de manifesta urgência e imprevisibilidade dos investimentos ou das situações que geram os financiamentos; por fim, ficam obrigados à observância dos princípios da igualdade, imparcialidade e justiça e à publicação em Diário da República, a execução anual dos programas de financiamento de cada ministério e os contratos-programa celebrados (nº. 6).
O preceito inscreve-se no Capítulo I da Lei, com a epígrafe
'Disposições gerais'.
Desde a Lei nº. 1/79, todos os diplomas sobre regime das finanças locais inseriram normas semelhantes às do artigo 7º da Lei nº. 42/98.
A regra da proibição de 'quaisquer formas de subsídio ou comparticipação financeira às autarquias locais', estabelecida no nº. 1 do artigo 7º da Lei nº. 42/98, sofreu apenas e relativamente às anteriores (artigos
16º nº. 1 da Lei nº. 1/79, 18º nº. 1 do DL nº. 98/84, artigo 13º nº. 1 da Lei nº. 1/87) a alteração de incluir, também, as Regiões Autónomas como entidades a quem directamente se reporta a proibição.
Só as excepções à mesma regra têm vindo a ser ampliadas (mas sempre tipificadas) numa linha de mais estreita cooperação do Poder Central com os entes locais.
Ora, com a consagração constitucional do princípio da autonomia local, inevitável foi, na construção do estatuto jurídico das autarquias, a especial preocupação em repudiar os meios ou instrumentos de que o Poder Central tradicionalmente se servira para controlo dos entes locais: subsídios e comparticipações financeiras, sem critérios objectivos previamente definidos na lei.
Nesta medida, não se estranha que, mesmo anteriormente à Lei nº.
1/79, 'leis orçamentais (desde 1976) [tivessem] definido rigorosos critérios para atribuição de subsídios pela Administração Central, condicionando-os à inscrição em listas anexas ao decreto-lei orçamental (ou a um decreto-lei próprio)' (Sousa Franco, cit. 'As Finanças das Autarquias Locais' p. 56).
E também se compreende que, antes mesmo da apresentação da proposta de lei que deu lugar à Lei nº. 1/79, tivessem sido apresentados projectos respeitantes, especialmente, a 'subsídios às autarquias' (cfr. DAR nº. 135 p.
4836).
De salientar, ainda, que sempre esta matéria foi objecto de particular controvérsia aquando da aprovação das diversas leis sobre finanças locais como o demonstram os pertinentes debates parlamentares.
Na verdade, como diz Casalta Nabais '(...) as comunidades locais também podem alcançar a sua suficiência financeira à custa de transferências da administração estadual, enquanto que tais transferências obedeçam a critérios objectivos legalmente definidos que não impliquem qualquer tipo de vinculação ou de dependência face à administração estadual nem constituam o suporte de intoleráveis desigualdades económicas e fiscais entre as autarquias', acrescentando em nota 'Por isso, se afastam os subsídios e comparticipações, considerados como instrumentos de dependência das autarquias locais face à administração central' ('A autonomia local (Alguns aspectos gerais)' in 'Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró', II, p. 194).
Ou, como escreve António Cândido de Oliveira, aludindo ao princípio da proibição de atribuição de subsídios ou comparticipações financeiras às autarquias:
'Sem esta proibição bem poderia acontecer que o Governo directa ou indirectamente favorecesse aquelas autarquias que se mostrassem mais dóceis, subvertendo por este modo não só critérios objectivos de acesso aos meios financeiros como o próprio princípio de autonomia, prejudicando, porventura, as autarquias que se mostrassem menos receptivas à vontade governamental.'
('Direito das Autarquias Locais', pp. 288/289).
Na mesma linha, mas criticando a amplitude que o DL nº. 98/84 acabou por dar à possibilidade daquela atribuição, escreveu Sousa Franco:
'Os velhos demónios da sujeição das autarquias ao Governo pela dependência financeira têm de novo as portas abertas(...)'.(cit. 'As Finanças das Autarquias Locais', p. 59)
De resto, tudo isto acaba por significar que o princípio da proibição de concessão de subsídios e comparticipações financeiras, modelado ainda pelas ressalvas que admite (mas, ainda assim, com obediência a critérios objectivos legalmente definidos) decorre do princípio constitucional da autonomia financeira das autarquias locais e das finalidades que a Constituição impõe ao regime das finanças locais – 'a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias' e, numa vertente do tratamento igualitário dos entes locais, 'a necessária correcção de desigualdades entre autarquias do mesmo grau' (artigo 238º nº. 2 da CRP).
Ora, quando as regras consagradas na lei são necessária decorrência de princípios constitucionais que, especificamente, vinculam o regime jurídico da matéria, elas são, seguramente, expressão de princípios fundamentais; e é neste sentido que deve compreender-se o que pretende significar Jorge Miranda, ao escrever que nem sempre é fácil discernir esses princípios 'afora os que derivam directamente de princípios constitucionais (...)' ('Manual de Direito Constitucional', tomo V, p. 404).
Plasmado, como se impunha, na Lei nº. 42/98, o princípio que se extrai do artigo 7º deve, assim e sem esforço, caracterizar-se como um
'princípio fundamental' de lei geral da República.
10 - Definiu-se já o conteúdo preceptivo dos vários números do artigo 7º da Lei nº. 42/98.
Importa agora sublinhar, no regime instituído neste preceito - na linha das anteriores leis das finanças locais - alguns aspectos, que mais facilmente permitirão responder à questão de saber se a norma do artigo 6º nº. 2 do DLR nº. 19-A/98/A obedece a esse regime.
E a nota desde logo mais relevante a salientar é a de que as ressalvas ao princípio da proibição de quaisquer formas de subsídios ou comparticipações financeiras se situam no âmbito de uma cooperação técnica e financeira (interessando, para o caso, exclusivamente a segunda) do Governo e dos governos regionais com as autarquias.
Trata-se, pois - e salvo, porventura, em casos excepcionais - da colaboração em investimentos locais, onde as autarquias carecem de meios suficientes para os suportar na íntegra e/ou as circunstâncias muito especiais que os impõem ou aconselham legitimam o 'auxílio' do Governo ou dos governos regionais (nº. 3 do artigo 7º), auxílio esse – repete-se – sujeito a critérios objectivos, legalmente definidos e que v.g. no desenvolvimento do regime jurídico estabelecido em preceito correspondente da Lei nº. 1/87 foram consagrados no Decreto-Lei nº. 363/88 onde, nomeadamente, se prevêem limites máximos de comparticipação nos 'custos' (artigo 6º do cit. Decreto-Lei).
A actuação do Governo e dos governos regionais configura-se, neste plano, como a de um parceiro no suporte financeiro de um projecto ou de um empreendimento a realizar – não como a de entidades que 'a posteriori' vão suprir o endividamento da autarquia.
De resto, a matéria de 'endividamento' das autarquias, é prevista com regime totalmente diverso noutras normas da Lei nº. 42/98 (cfr. artigo 8º e todo o cap. IV).
Neste contexto, a norma do nº. 7 do artigo 7º - que só, aliás, surge no texto final da proposta de lei que veio a ser aprovada - permitindo às assembleias legislativas regionais, 'tendo em conta a especificidade das Regiões Autónomas'; definir 'outras formas de cooperação técnica e financeira para além das previstas no nº. 3' (sublinhado nosso) não pode ser interpretada senão com o sentido de facultar a colaboração financeira com as autarquias, nos termos supra referidos, ainda que em situações diversas (mas do mesmo tipo) das elencadas no nº. 3.
De outro modo, abrindo designadamente a possibilidade de qualquer modalidade de subsídio e em circunstâncias de diferente natureza, inevitável seria o total esvaziamento do princípio consagrado no nº. 1 do artigo 7º da citada Lei.
11 - Ora, é patente que a norma do nº. 2 do artigo 6º do DLR nº.
19-A/98/A ('O Governo Regional fica autorizado, através do Secretário Regional da Presidência para as Finanças, a assumir, nos termos legais e até ao montante de 2,1 milhões de contos, a dívida das autarquias locais') não obedece ao princípio fundamental – e não se comporta nas suas ressalvas – do artigo 7º da Lei nº. 42/98.
Com efeito, a assunção das dívidas das autarquias, podendo considerar-se uma forma indirecta de subsídio às autarquias locais, proibida pelo nº. 1 do artigo 7º, não encontra desde logo respaldo no nº. 3 do mesmo preceito, pois não só se não configura como uma forma de cooperação financeira, como se alheia da consideração de qualquer uma das situações previstas nas diversas alíneas daquele nº. 3 – as dívidas são assumidas apenas pelo facto do endividamento das autarquias e independentemente das suas causas.
Não sendo aplicável ao caso o nº. 2 do artigo 7º, restaria a possibilidade da norma em causa se abrigar no disposto do já citado nº. 7 do mesmo artigo.
Mas, pela interpretação que foi dada à norma deste nº. 7 e pelas razões já expendidas – a assunção de dívida não é uma forma de cooperação financeira e não ocorrem situações do tipo das previstas no nº. 3 – desrespeitada é igualmente aquela norma.
Exigindo ainda a mesma norma que a possibilidade de definição de outras formas de cooperação técnica e financeira decorra da 'especificidade' das Regiões Autónomas não se vê, no fenómeno do endividamento das autarquias, o
único – repete-se – que, nos termos do nº. 2 do artigo 6º do DLR 19-A/98/A, justificaria a assunção de dívidas, qualquer especificidade regional relativamente ao que ocorre em outras autarquias do continente ou da Região Autónoma da Madeira.
Em suma, a norma ínsita no nº. 2 do artigo 6º do DLR nº. 19-A/98/A, de 31 de Dezembro, infringindo um princípio fundamental da Lei nº. 42/98, de 6 de Agosto (lei geral da República), vertido no artigo 7º nº. 1 desta Lei, mostra-se ferida de ilegalidade nos termos do artigo 112º nºs. 4 e 5 da CRP.
12 - Decisão
Nos termos expostos, decide o Tribunal Constitucional:
Declarar, com força obrigatória geral, a ilegalidade – por violação do princípio fundamental contido no artigo 7º nº. 1 da Lei nº. 42/98, de 6 de Agosto – da norma do artigo 6º nº. 2 do Decreto Legislativo Regional nº.
19-A/98/A, de 31 de Dezembro.
Lisboa, 17 de Novembro de 1999 Artur Maurício Messias Bento Guilherme da Fonseca Vítor Nunes de Almeida Paulo Mota Pinto Alberto Tavares da Costa Maria Fernanda Palma Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa