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Processo n.º 486/2011
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Por sentença proferida pelo Tribunal do Trabalho de Lisboa, datada de 03.08.2010, julgou-se improcedente a ação de impugnação de deliberações de assembleias gerais proposta por A. contra Sindicato Nacional dos Quadros e Técnicos Bancários, absolvendo-se o réu do pedido.
Inconformado, veio A. dessa decisão interpor recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, por entender que as disposições dos artigos 59.º-A, 59.º-B, 59.º-C e 59.º-D dos Estatutos do Sindicato Nacional dos Quadros e Técnicos Bancários, resultantes de uma alteração aos Estatutos aprovada por deliberação de assembleia-geral objeto de impugnação e que regulam o direito de tendência, são inconstitucionais, por violação do direito de tendência consagrado no artigo 55.º, n.º 2, alínea e) da Constituição e ainda dos princípios da organização e da gestão democráticas das associações sindicais estabelecidos no artigo 53.º, n.º 3 da Constituição.
Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 04.05.2011, foi negado provimento ao recurso, confirmando-se inteiramente a sentença recorrida. Para fundamentar a sua decisão, considerou o Tribunal que a regulação do direito de tendência não viola qualquer norma constitucional.
É desse acórdão que é interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro.
Através dele pretende o recorrente que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade com a Constituição, designadamente com os princípios de gestão democrática e de participação na vida do sindicato, dos artigos 59.º-A, 59.º-B, 59.º-C e 59.º-D dos Estatutos do Sindicato Nacional dos Quadros e Técnicos Bancários.
2. Notificado para o efeito, o recorrente veio apresentar alegações, tendo concluído do seguinte modo:
“a) Não obstante competir ao Sindicato definir as formas de pôr em prática o direito de tendência, não pode, porém, deixar de conferir-lhe um âmbito relevante, que há de consistir na possibilidade de expressão institucional de várias correntes (tendências);
b) Ao entender que o direito de tendência só pode exercitar-se no quadro de um processo eleitoral, em que 20 membros do Conselho Geral são eleitos pelo método de Hondt, dos quais 07 podem constituir uma tendência, o Sindicato Nacional dos Quadros e Técnicos Bancários e o Tribunal da Relação de Lisboa, através do seu acórdão, discriminam e limitam desproporcionadamente a possibilidade constitucional e legal de os sócios participarem ativamente nas atividades sindicais.
c) O direito de tendência é um direito originário e individual para ser exercido coletivamente por mais que uma tendência e não apenas em períodos eleitorais;
d) A decisão 'a quo', ao julgar válidas as disposições dos arts. 59°-A a 59°-D dos Estatutos do Sindicato, viola os princípios da gestão e funcionamento democrático que o Sindicato está obrigado a acatar e limita e prejudica a participação ativa dos sócios na atividade sindical;
e) Tal decisão violou, assim, o disposto nos arts. 450°, 2., 451°, 1., a., C.T. e 55°, 2., e) e 3., Constituição da Republica Portuguesa, designadamente, quando interpretados no sentido de que o direito de tendência só pode ser utilizado no quadro de um processo eleitoral”.
3. Contra-alegou o recorrido, tendo sustentado que os artigos 59.º a 59.º-D dos Estatutos asseguram, no seu todo, o direito de participação ativa dos sócios, não sendo, de todo em todo, discriminativo, pelo que, não sofrendo as normas legais aplicadas de qualquer inconstitucionalidade, deve ser negado provimento ao recurso.
4. Quando já tinham sido recebidas no Tribunal as alegações e as contra-alegações, deu-se conta a relatora da existência de uma questão prévia, eventualmente obstativa da possibilidade de o Tribunal vir a conhecer do presente recurso de constitucionalidade por inidoneidade do seu objeto.
Tendo sido notificados recorrente e recorrido para que se pronunciassem, querendo, sobre a questão, veio quanto a ela dizer o primeiro que, no requerimento de interposição do recurso, havia suscitado a questão 'da inconstitucionalidade/ilegalidade das disposições do artigo 55.º nº 2, alínea e) da CRP e artigo 450.º, nº 2, do Código do Trabalho, quando interpretados no sentido de que o direito de tendência só pode ser constituído e utilizado no quadro de um processo eleitoral' e que, ao não entender assim, o tribunal a quo considerara 'válidas as disposições dos artigos 59.º-A a 59.º-D dos estatutos do recorrido'. Mais acrescentava que, face à jurisprudência do Tribunal, que vem entendendo que suscitar uma questão de constitucionalidade normativa é também arguir a inconstitucionalidade da interpretação que, num dado caso, foi dada pelo tribunal da causa a uma norma ou conjunto de normas, nenhuma razão havia, a seu ver, para que se considerasse inidóneo o objeto do recurso que procurara interpor para o Tribunal Constitucional.
Já o Sindicato Nacional dos Quadros Técnicos Bancários defendeu a tese contrária, por sustentar que, no recurso apresentado, o recorrente apenas manifestara a sua discordância face ao decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, pelo que, não se verificando a arguição da inconstitucionalidade de uma norma jurídica, se deveria considerar inidóneo o objeto do recurso que se procurara interpor.
Cumpre apreciar e decidir
II – Fundamentação
5. A. dirige-se ao Tribunal Constitucional contestando a decisão tomada pelo Tribunal da Relação de Lisboa a 4 de maio de 2011.
Nesta decisão o Tribunal, confirmando sentença já proferida em primeira instância, concluiu que os artigos 59.º-A, 59.º-B, 59.º-C e 59.º-D dos Estatutos do Sindicato Nacional dos Quadros Técnicos Bancários não violavam nem o artigo 55.º, nº 3 da Constituição da República nem o artigo 450.º, nº 2, do Código de Trabalho. Por isso, manteve a Relação o juízo já emitido pelo Tribunal de Trabalho, que julgara improcedente a ação, proposta por A., de impugnação de deliberação da Assembleia Geral do Sindicato.
Vem agora o proponente da ação recorrer para o Tribunal Constitucional, sustentando, no requerimento de interposição do recurso, a tese contrária, também desenvolvida nas alegações: a tese segundo a qual os artigos 59.º,-A, 59.º-B, 59.º-C e 59.º-D dos Estatutos do Sindicato Nacional dos Quadros Técnicos Bancários violam, efetivamente, o disposto na Constituição e na lei, por serem contrários ao disposto no artigo 53.º da CRP e 450.º do Código de Trabalho. Pede, por isso, que o Tribunal decida o recurso julgando no sentido da inconstitucionalidade.
6. O Tribunal Constitucional é o Tribunal ao qual compete, especificamente, administrar a justiça em matérias jurídico-constitucionais (artigo 221.º da CRP).
A forma como a ele acedem, em processos de fiscalização concreta, os particulares – pedindo que o Tribunal se pronuncie sobre uma questão de constitucionalidade por eles defendida durante o decurso de um processo comum – não é, no entanto, uma forma qualquer. Embora seja necessário que o acesso se faça através de recurso de decisão proferida por tribunal comum (diferentemente do que sucede com a generalidade dos restantes sistemas europeus de justiça constitucional), o Tribunal Constitucional não é nunca, nos processos de controlo da constitucionalidade das normas, uma instância de recurso das decisões proferidas pelas instâncias, pois que não revê a forma como estas resolveram a questão de fundo que tinham para resolver. Intervindo no processo comum per incidens, o juízo que quanto a esse processo faça o Tribunal Constitucional fica restrito à questão da constitucionalidade (ou legalidade, sendo caso disso) das normas (artigo 280.º. nº 6, da CRP), implicando a final a reforma ou confirmação da decisão recorrida apenas quanto a essa questão (artigo 80.º da Lei nº 28/82, de 15 de novembro).
Significa tudo isto que se não pode pedir ao Tribunal Constitucional que corrija a decisão que o tribunal comum tomou quanto ao objeto principal do processo que perante este último correu: essa é a competência própria dos tribunais superiores a que alude o artigo 209.º da Constituição, sempre que estes julguem de recursos interpostos de decisão de tribunal da mesma ordem que lhes seja inferior. O recurso para o Tribunal Constitucional – que, como diz o artigo 209.º, nº 1, da CRP, existe em ordem distinta da dos demais tribunais - visa exclusivamente julgar da constitucionalidade de normas que os tribunais se tenham recusado a aplicar ou que tenham sido aplicadas, não obstante ter sido alegado, durante o processo, a sua contradição com a Lei Fundamental (artigo 280.º da CRP). A revisão da decisão de um tribunal comum quanto à forma como este compôs o litígio que lhe foi presente está portanto fora de questão, como está em geral fora de questão o questionamento de atos (que não de normas), judiciais ou outros, perante o Tribunal Constitucional português. É este o traço distintivo do sistema de justiça constitucional que a CRP, a partir do artigo 277.º, consagra.
Assim sendo, o caso sob juízo colocaria desde logo um problema, que seria o de saber se as normas constantes dos estatutos de sindicatos são objeto idóneo do controlo de constitucionalidade nos termos do quadro de direito positivo atrás descrito. Simplesmente a questão (sobre a qual o Tribunal se não pronunciará) não é sequer de equacionar, dado que existe um motivo seguro para que se não possa admitir o recurso que A. pretendeu interpor.
Na realidade, ao pedir ao Tribunal que corrija a solução dada ao litígio pela Relação de Lisboa, A. endereça um pedido que, pelas razões já expostas, a jurisdição constitucional não pode receber, pois que se o fizesse estaria a agir como instância de recurso da ordem comum dos tribunais, coisa que, como já se viu, a Constituição não consente. O recorrente questiona em rigor a decisão judicial em si mesma considerada, a qual não aplica, sequer, as normas impugnadas.
III – Decisão
Termos em que se decide não tomar conhecimento do objeto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixadas em 12 unidades de conta da taxa de justiça.
Lisboa, 27 de junho de 2012.- Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Ana Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão.