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Procº nº 668/99
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Tendo J... desejado impugnar judicialmente junto do Tribunal do Trabalho de Portimão a coima que lhe foi imposta pelo Centro Regional de Segurança Social do Algarve, o Juiz daquele Tribunal, por despacho de 15 de Janeiro de 1999, rejeitou o recurso baseado na circunstância de na motivação não virem formuladas «conclusões».
Desse despacho recorreu o acoimado para o Tribunal da Relação de
Évora, tendo o representante do Ministério Público junto de tal Tribunal de 2ª instância promovido que os autos fossem devolvidos ao Tribunal do Trabalho de Portimão, a fim de ser nomeado defensor ao recorrente.
O Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Évora, por despacho de 4 de Maio 1999, considerou que, já que havia motivos para rejeitar o recurso, seria inútil que o acoimado viesse a ser assistido por defensor constituído ou nomeado.
Do indicado despacho reclamou para a conferência, ao abrigo do nº 3 do artº 700º do Código de Processo Civil, com referência ao artº 4º do Código de Processo Penal, o representante do Ministério Público, dizendo, de entre o mais e para o que ora releva, que a necessidade de o arguido ser representado por defensor nos recursos era 'imperativa, como resulta desde logo da Constituição da República (artº 32º, nºs 3 e 10) para tornar efectivo o seu direito de defesa
(no caso o direito ao recurso)', pelo que o despacho reclamado 'ao considerar dispensável pelos motivos que indica a intervenção de defensor está ferido de nulidade insanável (artº 119º c) do C.P.Penal) e infringiu as normas constitucionais acima indicadas (nºs 3 e 10 do artº 32º)'.
O Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Évora, em 17 de Maio de 1999, proferiu o seguinte despacho:-
'Posteriormente ao despacho proferido a fls. 57 e 57 verso e também após a apresentação do requerimento de fls. 59, foi publicada a Lei nº 29/99 de
12/5 que no seu artº 7º, al. b), amnistia, em nosso ver, a infracção a que os presentes autos se reporta.
A amnistia extingue a responsabilidade e procedimento criminal; cabe ao relator verificar se ocorre causa de extinção do procedimento criminal e, se assim acontecer, levar o processo à conferência para decisão (artº 417º, nº 3 al. d) do C.P. Penal e artº 419º, nº 4, al. h) do mesmo diploma). De igual modo tem de ponderar-se quanto ao procedimento criminal (artºs 32º e 41º, nº 1 do D.L. nº 433/82, de 27/10).
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Face ao requerimento de fls. 59 e à publicação da Lei nº 29/99, apresentei aos Exmos Colegas novo projecto de acórdão.
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À conferência na próxima sessão de 25 de Maio, dado o projecto apresentado e a simplicidade da questão'.
2. Por acórdão de 25 de Maio de 1999, o Tribunal da Relação de Évora declarou extintos 'por amnistia quer a responsabilidade quer o procedimento contraordenacional contra o arguido J..., no que respeita à infracção que nos presentes autos lhe vinha imputada'.
Nesse aresto, após se ter considerado que nas impugnações de decisões judiciais proferidas no domínio do recurso de aplicação de contra-ordenações eram aplicáveis os princípios do processo penal, designadamente quanto à obrigatoriedade de assistência de defensor, foi, em dados passos, referido:-
'...................................................................................................................................................................................................................................................................................
.......................................................................................................... De tais dispositivos do Cód. Proc. Civil em conjugação com os demais princípios já referidos, retiramos que, sendo obrigatória a intervenção de defensor na fase de recurso em 2ª instância nos processos de contraordenação, e assumindo o arguido a posição de recorrente, o facto de ele não estar assistido de defensor, constituido ou nomeado, conduzirá a que o tribunal mande notificar o arguido para constituir advogado sob pena de o recurso não ter seguimento (artºs 32º, nº
1, al. c) e nº 2 e 33º do Cód. Proc. Civil).
Justificar-se-à tal procedimento no caso dos autos?
Entendemos que não.
....................................................................................................................................................................................................................................................................................
Mesmo que, agora, se desse ao arguido a possibilidade de ser assistido por defensor, constituido ou nomeado, e este ratificasse a motivação de recurso que o próprio arguido apresentou, mesmo assim o recurso teria de ser rejeitado por as conclusões da motivação de recurso não conterem as especificações referidas nas diversas alíneas do nº 2 do artº 412º do Cód. Proc. Penal; seria, pois, absolutamente inútil conferir ao arguido aquela possibilidade.
Perante o que se expende a nossa decisão iria no sentido de manter o despacho do juiz relator que indeferiu a douta promoção do Ministério Público quanto à baixa dos autos à 1ª instância e de, simultaneamente, rejeitar o recurso.
Acontece, porém, que no transacto dia 12 de Maio foi publicada a Lei nº 29/99 que, além do mais, amnistiou as contraordenações cujo limite máximo de coima aplicável não exceda 500 contos no caso de dolo e 1000 contos em caso de negligência, desde que praticadas até 25 de Março de 1999 e não constituam ilícito anti-económico , fiscal, aduaneiro, ambiental e laboral.
........................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................Estando o processo em fase de recurso e se ocorrer qualquer causa extintiva do procedimento contraordenacional cabe à conferência, após o exame preliminar do relator, decidir (artºs 417º, nº 3, al. d) e 419º, al. b), ambos do Cód. Proc. Penal).
..................................................................................................................................................................................................................................................................................'
Do acórdão de que algumas partes se encontram transcritas pretendeu recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº
70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Évora, com vista à apreciação da constitucionalidade 'dos artªs. 62º nº 2, 64º nº 1 d) e 119º c) do C. Processo Penal aplicados ... por se considerar que a interpretação ali dada àquelas normas viola o disposto nos nºs 3 e 10 do artº 32º da Constituição da República'.
Porém, por despacho prolatado pelo Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Évora em 6 de Julho de 1999, não foi o recurso admitido.
Para fundamentar essa não admissão, escreveu-se:
'O digno magistrado do Ministério Público veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão proferido de fls. 61 a 65 na base de que a interpretação dada naquele acórdão aos artºs 62º, nº 2, 64º, nº 1, al. d) e 119º, alínea c), todos do Cód. Proc. Penal, violam o disposto nos nºs 3 e 10 do artº 32º da Constituição da República.
Cremos, no entanto, que o ilustre magistrado recorrente vê no acórdão em causa decisões inexistentes, o que acontece porque ab initio assumiu que o processo devia descer à 1ª instância para que ao arguido fosse nomeado defensor.
Pese embora no acórdão recorrido se tenha emitido opinião divergente da sufragada pelo digno magistrado do recorrente quanto àquela questão da descida dos autos à 1ª instância para que ao arguido fosse nomeado defensor, a verdade é que o que acabou por constituir decisão foi apenas declarar extinto por amnistia quer o procedimento quer a responsabilidade contraordenacional do arguido por se considerar preenchida a previsão do artº 7º, al. b) da Lei nº
29/99, de 12/5, diploma este publicado já após se ter suscitado a questão da nomeação de defensor ao arguido, abordagem que a este tribunal se impunha fazer por imperativo do disposto no artº 419º, nº 4, al. b), do Cód. Proc. Penal. Uma tal decisão inutilizou a apreciação de todas as outras questões penais, quer de natureza processual quer de natureza substantiva, que se pretenderam suscitar, dados os efeitos da amnistia.
Dada pois a matéria que foi objecto de decisão no acórdão proferido de fls. 61 a 65 dos autos e os fundamentos invocados no requerimento de interposição de recurso, entendemos que este é manifestamente infundado, o que constituiu base bastante para o seu indeferimento (art. 76º, nº 2 da Lei do T.C.)
Na base do exposto indefere-se o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional apresentado a fls. 67 pelo Ex.mo magistrado do Ministério Público.
3. É da não admissão de recurso que, pelo representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Évora, vem deduzida a vertente reclamação, na qual apresentou as seguintes «conclusões»:-
'1) - O Acórdão de fls. 61 e seguintes apreciou, como se impunha, a questão que fora colocada na reclamação de fls. 59, vindo a interpretar os artºs. 62º nº 2,
64º nº 1 alínea d) e 119º alínea c) do Código de Processo Penal em termos que infringem os nºs. 3 e 10 do artº 32º da Constituição da República.
2) - Por via dessa interpretação e consequente aplicação negativa daquelas normas processuais o Tribunal desatendeu, ainda que forma implícita, a reclamação em causa.
3) - O arguido, apesar do que impõem aqueles preceitos do C.P. Penal que são a concretização nesta ramo do direito dos princípios constitucionais expressos nos nºs. 3 e 10 do artº. 32º da Lei Fundamental, viu negada a intervenção de defensor em sede de recurso.
4) - Não obstante a aplicação da amnistia tal questão subsiste por se mostrar afectada toda a fase de recurso: não está apenas em causa o processado anterior ao Acórdão, mais ainda o direito de o arguido o questionar, isto é, o Acórdão não se tornará definitivo para o arguido enquanto não puder impugná-lo, o que depende da nomeação de defensor'.
Continuados os autos com vista ao representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, pronunciou-se o mesmo no sentido de ser indeferida a presente reclamação.
Cumpre decidir.
II
1. Adiante-se, desde já, que, embora por motivos não coincidentes com os utilizados no despacho reclamado, a presente reclamação deve ser indeferida.
Na verdade, em primeiro lugar, será desde logo sustentável que, aquando da reclamação para a conferência do despacho de 4 de Maio de 1999, o magistrado então reclamante não suscitou qualquer questão de desconformidade com o Diploma Básico por parte de norma ou normas jurídicas constantes do ordenamento jurídico infra-constitucional (ou de um seu qualquer modo de interpretação que, aliás, minimamente não explicitou), limitando-se a dizer, como acima se viu, que o despacho reclamado 'infringiu as normas constitucionais acima indicadas' (os números 3 e 10 do artigo 32º da Constituição).
Ora, como se sabe, objecto dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade são normas ínsitas no ordenamento jurídico atrás indicado e não quaisquer outros actos do poder público considerados qua tale.
Impunha-se, desta sorte, que o magistrado então reclamante, se queria posteriormente (ou seja, se acaso a sua pretensão não viesse a ser atendida no aresto a proferir na sequência da sua reclamação para a conferência, não atendimento esse fundado numa interpretação normativa que era, do ponto de vista da sua compatibilidade constitucional, conflituante com a por ele defendida) lançar mão do meio de impugnação previsto na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, que, na peça processual consubstanciadora da reclamação, equacionasse a questão da inconstitucionalidade de dado sentido interpretativo de determinada ou determinadas normas, a fim de o Tribunal a quo se poder pronunciar sobre essa questão.
Ora, uma tal postura não se lobriga ter sido a perfilhada pelo magistrado então reclamante que, como já se referiu, se limitou a assacar ao despacho reclamado infracção à Constituição.
2. Em segundo lugar, mesmo que se admitisse que o representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Évora tinha, antecedentemente
à prolação do acórdão agora intentado recorrer, suscitado adequadamente uma questão de inconstitucionalidade referida a uma certa interpretação normativa, não pode deixar de anotar-se que o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional não mencionou qual fosse essa interpretação.
Todavia, este ponto poderia ser ultrapassável se, utilizando-se o disposto nos números 5 ou 6 do artº 75º-A da Lei nº 28/82, o magistrado ora reclamante viesse a efectuar a menção em falta, pelo que sobre o mesmo são dispensáveis ulteriores considerações tendentes a no mesmo se alicerçar um possível fundamento para o indeferimento da reclamação sub iudicio.
3. Em terceiro lugar, impõe-se realçar que no acórdão pretendido recorrer não foi, em direitas contas, efectuada qualquer interpretação das normas vertidas nos artigos 62º, nº 2, 64º, nº 1, alínea d), e 119º, alínea c), todos do Código de Processo Penal, de forma divergente da sustentada pelo representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Évora, isto
é, uma interpretação de harmonia com a qual, nos recursos das decisões judiciais proferidas em processo de impugnação de aplicação de coimas por contra-ordenação, não se tornava necessário que o recorrente fosse assistido por defensor, constituído ou nomeado.
Antes pelo contrário.
Da atenta leitura do acórdão tirado em 25 de Maio de 1999 conclui-se que aquela assistência se impunha, o que vale por dizer que, ao fim e ao resto, o aludido aresto veio, afinal, a perfilhar uma interpretação, quanto às normas em questão, semelhante à defendida pelo representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Évora.
O que ressalta daquele acórdão no particular em causa foi que, atentos os contornos jurídico-fácticos do caso então sub specie, a assistência de defensor sempre revestiria a característica de um acto inútil, o que, aliás, tinha já sido sustentado no despacho do Desembargador Relator que fora objecto de reclamação.
Mas, se isto é assim, então dever-se-á concluir que o fundamento do despacho então reclamado e das alusões que, a esse respeito, se descortinam no acórdão de 25 de Maio de 1999, se prende, verdadeiramente e do ponto de vista jurídico, com a interpretação e sequente aplicação de norma ou de normas que regulem (recte, vedem) a prática de actos processuais inúteis. E que, tocantemente às mesmas, não foi suscitada qualquer questão de enfermidade constitucional, é algo de que se não poderá duvidar.
4. Um última nota se impõe.
É duvidoso que o acórdão querido recorrer tivesse, verdadeiramente, tomado uma decisão sobre a reclamação deduzida pelo representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Évora.
De facto, após ter concluído sobre a necessidade de assistência de defensor, constituído ou nomeado, quando em causa estivessem recursos, por parte do acoimado, de decisões judiciais proferidas em processo de impugnação de coima aplicada em processo de contra-ordenação, o acórdão em apreço, após também se ter referido que, in casu, uma tal assistência se tornaria inútil, não veio, expressis verbis, a tomar uma decisão sobre a reclamação que foi deduzida. Significativa desta asserção é a circunstância de ali se ter utilizado uma forma verbal condicional, ao se dizer, como foi já transcrito, que '[p]erante o que se expende a nossa decisão iria no sentido de manter o despacho do juiz relator'
(sublinhado e destaque ora apostos), o que sempre poderia apontar no sentido de se entender que a intenção dos juízes subscritores desse aresto ser a de não tomar posição decisória quanto à matéria, por isso que, concluindo-se, em sede de decisão (e seria esta a única a ser tomada), estarem extintos, quer a responsabilidade, quer o procedimento contra-ordenacional do acoimado, tudo o que se conexionava com questões de natureza processual deixava de ter razão de ser em virtude da extinção do procedimento.
III
Em face do exposto, indefere-se a vertente reclamação.
Sem custas, por não serem elas devidas pelo reclamante. Lisboa, 7 de Dezembro de 1999 Bravo Serra Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa