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Processo nº 528/99
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - A. S. e mulher, I. S., identificados nos autos, impugnaram judicialmente a liquidação da taxa de urbanização que lhes foi aplicada pela Câmara Municipal de Paredes, no processo de loteamento nº 1/92, ao abrigo do Regulamento de Liquidação e Cobrança das Taxas e Licenças Municipais – doravante designado abreviadamente Regulamento -, com Tabela de Taxas e Licenças anexa, aprovado pela Assembleia Municipal dessa cidade em sessão ordinária de 28 de Dezembro de 1990, vigente desde 1 de Fevereiro do ano seguinte.
O Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto, por sentença de 2 de Maio de 1999, entendeu enfermar aquele Regulamento de inconstitucionalidade formal, por não conter no seu texto indicação da lei habilitante, desse modo recusando aplicá-lo.
2. - O Magistrado do Ministério Público competente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos dos artigos 70º, nº 1, alínea a), e 72º, nºs. 1, alínea a), e 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, recurso esse que foi recebido tendo oportunamente alegado não só a entidade recorrente como também os recorridos.
O Senhor Procurador-Geral Adjunto concluiu assim as suas alegações:
'1º- Constando expressamente do edital, através do qual foi publicitado o Regulamento e Tabela de Taxas e Licenças Municipais de Paredes, que a deliberação da Assembleia Municipal que o aprovou se fundou no disposto nas alíneas a) e l) do nº 2 do artigo 39º do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março – preceitos que outorgam precisamente competência à assembleia municipal para aprovar regulamentos e taxas, fixando os seus quantitativos, não se verifica a inconstitucionalidade formal decorrente de falta de menção ou indicação da lei habilitante.
2º- Como se decidiu no acórdão nº 639/95 do Plenário deste Tribunal Constitucional, é lícito às autarquias locais o estabelecimento e cobrança de taxas de urbanização, como contrapartida da efectiva realização de infra-estruturas urbanísticas que visem facultar aos munícipes a normal utilização das obras por eles realizadas, na sequência de anterior licenciamento.
3º- Tais receitas – independentemente do modo 'presumido' como são calculadas, com base em índices estabelecidos em regulamento – têm natureza e estrutura sinalagmática, não se configurando como 'impostos', cujo estabelecimento está obviamente vedado às autarquias locais.
4º- A eventual não realização efectiva e pontual pela autarquia da contrapartida ou contraprestação que decorre do pagamento da referida taxa de urbanização, não a transmuta em imposto, apenas facultando ao particular a via da acção de incumprimento ou de restituição das quantias pagas.
5º- Termos em que deverá proceder o presente recurso.'
Por sua vez, os recorridos, ao sustentarem a improcedência do recurso, remataram deste modo as respectivas alegações:
'1- Há inconstitucionalidade formal por violação do artº 112/8 (ex 115/7) da CRP, pois do Regulamento e Tabela de Taxas e Licenças Municipais da Câmara Municipal de Paredes, nem implícita, nem explicitamente consta uma referência expressa à lei habilitante ou à lei que tal Regulamento visava regulamentar.
2- O edital que publicitou o regulamento é meramente um instrumento da publicitação, sua condição de eficácia, não tendo a virtualidade de sanar qualquer tipo de vício, validando material ou formalmente o instrumento publicitado.
3- Mesmo que assim não fosse entendido, a referência às alíneas a) e l) do nº 2 do artº 39º do Dec-lei 100/84 nunca seria suficiente para satisfazer o imperativo constitucional do artº 112/8 da CRP, pois a segurança e a transparência jurídicas subjacentes a este preceito, imporiam neste domínio, pelo menos, a referência aos preceitos legais que a alínea l) do artº 39º do dec-lei 100/84 refere.
4- Há inconstitucionalidade orgânica já que o regulamento ao não definir os pressupostos de efectiva realização nas infra-estruturas, na verdade está a criar um imposto e não uma taxa, pois tanto se aplica às situações de sinalagmaticidade por realização das infra-estruturas urbanísticas pelas autarquias, como também se aplica de igual forma e com igual incidência às situações em que essa realização por parte da autarquia não é necessária ou é efectivamente dispensada.
5- O que, por consequência suscita também a existência de inconstitucionalidade material do regulamento por violação do Princípio da Igualdade (material) consagrado no artº 13º da CRP.
6- Pelo que, por tudo, deve improceder o presente recurso.'
3. - Cumpre apreciar e decidir.
II
1.1. - O Regulamento entrou em vigor a 1 de Fevereiro de 1991, sofrendo a Tabela anexa alterações a partir de 22 de Fevereiro de 1996 e de 3 de Março de 1999.
De acordo com o edital datado de 3 de Janeiro de 1991, afixado nos lugares próprios, foi tornada pública a deliberação da Assembleia Municipal para a vigência a partir daquela data de 1 de Fevereiro de 1991, de acordo com o disposto nas alíneas a) e l) do nº 2 do artigo 39º do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, então em vigor, e nos termos do nº 3 do artigo 21º da Lei nº 1/87, de 6 de Janeiro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº
470-B/88, de 19 de Dezembro, preceitos esses enunciados no teor do referido edital.
Na decisão recorrida teve-se presente a redacção do nº 7 do artigo 115º da Constituição da República (CR), a que hoje corresponde o nº 8 do artigo 112º, nos termos do qual 'os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão', concluindo-se, como já se registou, pela omissão da indicação da lei habilitante, pelo que se teve o diploma como insubsistente na ordem jurídica, por ser formalmente inconstitucional, impondo-se, como tal, a anulação da liquidação da taxa aplicada – o que se decretou.
Coloca-se, deste modo, um problema de inconstitucionalidade formal – a do Regulamento – questão que integra – pelo menos para já - o objecto do presente recurso de constitucionalidade.
Ao delimitar-se normativamente esse objecto, após convite para o efeito realizado, de acordo com o nº 5 do artigo 75º-A da Lei nº
28/82, a entidade recorrente veio aos autos esclarecer que 'a norma regulamentar desaplicada na decisão recorrida, com base na sua inconstitucionalidade formal, decorrente da falta de indicação da lei habilitante, é a que se reporta à criação e definição do âmbito da taxa de urbanização para realização de infra-estruturas urbanísticas, e que se encontra prevista no artigo 17º do Regulamento [...], que remete para o estipulado sobre tal matéria na Portaria nº
230/85, de 24 de Abril, com as alterações decorrentes da Portaria nº 74/86, de
11 de Março'.
Mais concretamente, está em causa – sempre na vertente da inconstitucionalidade formal do diploma em que a norma se integra – a taxa de urbanização a pagar pela realização de infra-estruturas urbanísticas, prevista no nº 8 do artigo 17ºda Tabela de Taxas e Licenças anexa ao Regulamento, taxa estabelecida e alterada subsequentemente nas portarias citadas.
De acordo com o nº 1 do artigo 2º do Regulamento, as taxas e licenças previstas na Tabela anexa 'serão actualizadas, anualmente, em função dos índices de preços ao consumidor do Instituto Nacional de Estatística e arredondadas para a unidade de escudos imediatamente superior'.
Por sua vez, segundo o nº 2 do mesmo preceito, a fixação do índice de actualização dentro dos limites referidos no nº 1 só vigorará depois da deliberação da Câmara, 'a qual deverá ser tomada em cada ano, até ao dia 15 de Janeiro, e devidamente publicitada através de editais a afixar no Edifício dos Paços do Concelho e em todas as sedes das Juntas de Freguesia'.
O que teve lugar, como já se consignou.
1.2. - Perante este enquadramento legal e fáctico, o magistrado recorrente considera estar expressamente invocada como lei habilitante a chamada Lei das Autarquias Locais – Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março –, então vigente, na parte em que atribuía à assembleia municipal competência para aprovar posturas e regulamentos, estabelecendo taxas municipais e fixando os respectivos quantitativos, constando, deste modo, do Regulamento em causa, a expressa menção das normas legais que definiam a competência para a respectiva emissão [cfr. alíneas a e l) do nº 2 do artigo 39º].
Assim – e também porque foi dado ao Regulamento a devida publicidade, nos termos do citado artigo 21º, nº 3, da Lei das Finanças Locais – não procede a alegada inconstitucionalidade formal do Regulamento: a referência
à lei habilitante consta dos próprios editais que o publicitaram e divulgaram.
De resto, indo mais longe e abordando a questão da eventual inconstitucionalidade orgânica das normas regulamentares que criam e definem o âmbito da taxa municipal de urbanização, o Ministério Público sustenta, com base em jurisprudência deste Tribunal, a improcedência de semelhante vício.
2.1. - Ao tempo que foi aprovado e editado o Regulamento (e Tabela anexa), dispunha o texto constitucional, no nº 7 do seu artigo 115º, como já se registou, deverem os regulamentos indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva ou objectiva para a sua emissão, o que, por um lado, se aplica a todo e qualquer regulamento, independentemente de se considerar o órgão ou a autoridade de que tiverem emanado, e, por outro lado, denuncia e afirma o princípio da primariedade ou precedência da lei, à qual todo o regulamento se acha umbilicalmente ligado, na expressão do acórdão deste Tribunal nº 76/88 (publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Abril de 1988).
A norma constitucional exprime, assim, o princípio da precedência ou da primariedade da lei, que Gomes Canotilho considera um dos instrumentos utilizados pela Constituição 'para restringir o amplo grau de liberdade de conformação normativa da administração, pouco compatível com um Estado de direito democrático' (cfr. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 1ª edição, Coimbra, 1998, pág. 734).
A exigência de indicação da lei habilitante visa não só disciplinar o uso do poder regulamentar, obrigando o Governo e a Administração a controlarem, em cada caso, se podem ou não emitir determinado regulamento, mas também, como observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, a garantir 'a segurança e a transparência jurídicas, sobretudo relevantes à luz da principiologia do Estado de direito democrático' (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, pág. 516).
Este dever de citação deve ser observado por todos os regulamentos, sejam eles emanados do Governo, dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas ou – como é o caso – dos órgãos próprios das autarquias locais, pois de um ou de outro modo todos estão ligados à lei que necessariamente precede cada um deles, uma vez que inexiste poder regulamentar sem fundamento em lei anterior (cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional nºs.
184/89 e 110/95, publicados, respectivamente, no Diário da República, I Série, de 9 de Março de 1989, e II Série, de 21 de Abril de 1995). O papel da lei precedente é que não é sempre o mesmo, como se observou, por seu lado, no acórdão nº 76/88, publicado na II Série daquele jornal oficial, de 21 de Abril de 1988: umas vezes a lei a referir é aquela que o diploma visa regulamentar – é o caso dos regulamentos de execução stricto sensu ou dos regulamentos complementares -, outras vezes a lei a indicar é a que define a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão (como é o caso dos chamados regulamentos independentes, onde o poder regulamentar se reveste de mais dilatada margem de conformação).
Colhe-se do exposto que a violação do dever de citação da lei habilitante gera o vício de inconstitucionalidade formal.
A menção do suporte habilitante, convocando a lei definidora da competência subjectiva e objectiva do regulamento, há-de ocorrer, para que não se frustre o seu próprio objectivo, no próprio texto do diploma ou, pelo menos, no entendimento de certa jurisprudência, no edital destinado a dar publicidade ao regulamento, como se ponderou no acórdão nº 1140/96, publicado no citado Diário, II Série, de 10 de Fevereiro de 1997.
2.2. – O Regulamento em sindicância não indica, no seu texto ou no da Tabela anexa, menção da lei definidora da competência, subjectiva e objectiva, do órgão autárquico, para cobrar taxas pela realização de infra-estruturas urbanísticas.
No entanto, os editais destinados a dar-lhe publicidade invocaram não só o artigo 39º, nº 2, alíneas a) e l), do Decreto-Lei nº 100/84, como o artigo 21º, nº 3, da Lei nº 1/87.
Coloca-se, por conseguinte, o problema da suficiência dessa menção, tendo em conta a exigência do nº 7 do artigo 115º da CR e o anteriormente exposto, havendo de concluir-se afirmativamente, considerando que, nos termos do primeiro daqueles preceitos se dispõe competir à assembleia municipal, sob proposta ou pedido de autorização da câmara, 'aprovar posturas e regulamentos' [alínea a)], e 'estabelecer, nos termos da lei, taxas municipais a fixar os respectivos quantitativos' [alínea l)].
Satisfez-se, assim, minimamente, aquela exigência de segurança e transparência jurídicas já aludidas, ao mencionar-se as alíneas a) e l) do nº 2 do artigo 39º do Decreto-Lei nº 100/84, independentemente de não se aludir, no âmbito desta última alínea, à legislação de acordo com a qual se estabelecem as taxas municipais e se fixam os respectivos quantitativos. O que interessa e está salvaguardado, se bem que no limite, é a divulgação pelo edital da lei habilitante, expressamente invocada, na parte em que atribui à assembleia municipal competência para aprovar posturas e regulamentos, bem como para estabelecer aquelas taxas e fixar os montantes respectivos.
A publicidade foi assim suficientemente feita, quer relativamente à deliberação da assembleia municipal – pelo edital de 3 de Janeiro de 1991 (cópia a fls. 193) – quer no tocante à actualização da tabela – pelo edital de 31 do mesmo mês (cópia de fls. 195).
3.1. - Afastado o invocado vício de inconstitucionalidade formal, que determinou o juízo 'desaplicativo' do magistrado a quo, nem por isso o Tribunal Constitucional se considera dispensado de encarar a questão à luz de normas ou fundamentos constitucionais diferentes, como é o caso da inconstitucionalidade orgânica do diploma que, de resto, vem suscitada por recorrente e recorridos (cfr. o artigo 79º-C da Lei nº 28/82).
É que, se, in casu, a taxa de urbanização for conceptualizável como imposto, colocar-se-ia o problema do afrontamento da reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República no tocante à 'criação de impostos e sistema fiscal', uma vez que cabem à lei a sua criação e também a determinação da respectiva incidência, assim como das taxas devidas, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes, nos termos dos artigos 168º, nº 1, alínea i), e 106º, nº 2, do texto constitucional, na redacção anterior à Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, que é a relevante.
Ora a respeito da postulação deste problema pronunciou-se recentemente o Tribunal Constitucional, em plenário, ao abrigo do disposto no artigo 79º-A da Lei nº 28/82, no sentido de não julgar inconstitucional, por violação do disposto nos nºs. 2 e 3 do artigo 106º e alínea i) do nº 1 do artigo 168º da Constituição da República – na versão resultante da Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho – as normas constantes dos artigos 1º, 2º e 3º do Regulamento da Taxa Municipal de Urbanização da Câmara Municipal da Póvoa do Varzim, aprovado em 2 de Maio de 1990 e alterado em
30 de Junho de 1993 e em 3 de Maio de 1995 – cfr. acórdão nº 410/2000, publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Novembro de 2000.
Estando em causa, no âmbito da instrumentalidade própria do recurso de constitucionalidade e no caso sub judice, a taxa municipal de urbanização já referenciada, faz-se, agora, aplicação da doutrina emanada daquele acórdão e conclui-se, assim, não padecer o Regulamento ora em apreço do vício de inconstitucionalidade orgânica, por suposta violação do disposto na alínea i) do nº 1 do artigo 168º da Constituição da República (na versão anterior à IV Revisão Constitucional).
3.2. - Uma última palavra, relativamente à invocada violação do princípio da igualdade.
Não dizem os recorridos, ao convocar este eventual vício, em que termos este se consubstanciaria.
Exigindo esse princípio que se trate como igual o que for essencialmente igual e como diferente o que for essencialmente diferente, não impedindo a diferenciação de tratamento mas apenas a discriminação arbitrária, pois o que se prossegue é uma igualdade material, que não meramente formal, para que o mesmo se mostre violado torna-se necessário verificar uma concreta e efectiva 'situação de diferenciação injustificada ou discriminação'
(cfr., por todos, o acórdão nº 1007/96, publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Dezembro de 1996), o que, no caso concreto, não se vislumbra.
Deste modo, também nesta parte não há que emitir juízo de inconstitucionalidade.
III
Em face do exposto, decide-se conceder provimento ao recurso, devendo a sentença recorrida ser reformulada em consonância com o presente juízo de constitucionalidade. Lisboa, 22 de Novembro de 2000 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Messias Bento Luís Nunes de Almeida