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Proc. nº 80/00
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. No Tribunal da Comarca de Guimarães, o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos Dan. R., G. C., Dav. R. e P.,SA por existirem nos autos indícios da prática, em co-autoria, de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, previsto e punível pelo artigo 27º-B do Decreto-Lei nº 140/95, de 14 de Junho, com referência ao artigo 24º, nº 1, do Decreto-Lei nº
20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção do Decreto-Lei nº 394/93, de 24 de Novembro, e artigo 30º, nº 2, do Código Penal, sendo a arguida P. responsável nos termos do artigo 9º, nº 2, do citado Decreto-Lei nº 394/93.
Os arguidos Dan. R., G. C. e P.,SA requereram a abertura de instrução, invocando, entre o mais, a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 27º-B do Decreto-Lei nº 140/95, de 14 de Junho, por violação dos artigos
8º, nº 1, 27º, nºs 1 e 2, 18º e 63º da Constituição da República Portuguesa
(requerimento de fls. 882 e seguintes).
Na decisão instrutória (fls. 1058 e seguintes), os arguidos foram pronunciados pela prática, sob a forma continuada, do ilícito de que vinham acusados. Lê-se na decisão que:
'Por determinação dos arguidos as verbas acima descritas que totalizam
78.778.673$00 (setenta e oito milhões setecentos e setenta e oito mil seiscentos e setenta e três escudos) foram deduzidas das remunerações pagas aos trabalhadores, bem sabendo aqueles administradores que essas quantias eram da Segurança Social, sendo eles apenas depositários das mesmas. Todavia e apesar do referido os arguidos não entregaram aquelas quantias à Segurança Social nem até ao dia 15 do mês seguinte ao da retenção, nem nos noventa dias subsequentes como estavam legalmente obrigados e, agindo no interesse e representação da «P.» apropriaram-se de todos esses montantes que integraram no património da sociedade, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que agiam contra a vontade dos responsáveis pela Segurança Social e que incorriam em crime. Entretanto os arguidos pagaram à Segurança Social em 5/12/97 a quantia de
8.467.516$00 respeitante às contribuições dos meses de Fevereiro, Março e Abril de 1997. Os arguidos repetiam sempre os mesmos actos para se apropriarem das verbas descritas.'
Na mesma decisão, a Juíza considerou 'não se vislumbr[ar] qualquer inconstitucionalidade'.
2. Inconformados com o despacho de pronúncia, 'na parte em que indeferiu a inconstitucionalidade', vieram os arguidos Dan. R., G. C. e P.,SA interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, para apreciação da inconstitucionalidade do artigo
27º-B do Decreto-Lei nº 140/95, de 14 de Junho, por violação dos artigos 8º,
18º, 27º, nºs 1 e 2, e 63º da Constituição da República Portuguesa.
3. Nas alegações apresentadas neste Tribunal, os recorrentes formularam as seguintes conclusões:
'1. Existindo outros meios menos lesivos de controlo social formalizado, nomeadamente os meios cíveis e os próprios do direito de mera ordenação social, a intervenção do direito penal só se justifica, até por imposição constitucional
– artº 18º, nº 2 da Const. da Rep. Port. –, se se puder identificar um bem ou bens jurídicos que confiram dignidade penal ao interesse subjacente a cada uma das incriminações e se existir, relativamente a cada um dos comportamentos seleccionados, carência de tutela penal.
2. O bem jurídico tutelado pela incriminação da fraude fiscal tem, predominantemente, natureza patrimonial: na construção do tipo de crime p. e p. pelo artº 27º-B do DL nº 140/95, de 14/6, o legislador teve em vista a tutela dos interesses patrimoniais da Segurança Social, mais precisamente, o seu erário.
3. A inconstitucionalidade da incriminação advém desde logo da circunstância de a tutela penal não ser imprescindível, por no caso, para alcançar o desiderato pretendido, poderem ser utilizados outros meios de natureza jurídica menos gravosos.
4. Criou-se um esquema coercivo civilístico, destinado a forçar o pagamento, pelo devedor, das importâncias em causa.
5. O comportamento típico do agente tem, in casu, uma estrutura omissiva e consistente na não entrega, em prazo expressamente previsto – 90 dias – das contribuições deduzidas no valor das remunerações pagas aos trabalhadores, sendo que, o próprio desconto dessas contribuições é um pressuposto da conduta típica e não um seu elemento.
6. No crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, considera-se como susceptível de sujeição à lei penal, o desconto das contribuições deduzidas no valor das remunerações pagas aos trabalhadores e a sua não entrega com consequente prejuízo dos interesses patrimoniais daquela, designadamente, o erário da Segurança Social.
7. A realidade a que no artº 27º-B do DL nº 140/95, de 14/6 se chama de «crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social» mais não é do que uma autêntica «prisão por dívidas», destinada a sancionar criminalmente a falta de cumprimento de uma obrigação pecuniária dentro de um prazo de moratória legal concedido ao devedor.
8. Como prisão por dívida, corresponde a um instituto que, tradicionalmente – e como o Tribunal Constitucional já frisou a propósito da antiga conversão em prisão da falta de pagamento do imposto de justiça devido pelo arguido condenado
–, é vedado pela Constituição, por se traduzir numa privação da liberdade baseada num facto repudiada pelos princípios do direito internacional geral ocidental.
9. Na construção do crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, p. e p. pelo artº 27º-B do DL nº 140/95, de 14/6, existe violação dos princípios constitucionais, designadamente, dos vertidos no artigo 27º nºs 1 e 2 bem como, e ainda, dos artºs 18º e 63º da CRP.'
Por sua vez, o Ministério Público concluiu assim as suas alegações:
'O artigo 27º-B do Decreto-Lei nº 140/95, de 14 de Junho, não viola o disposto no artigo 27º, nºs 1 e 2 e nos artigos 18º e 63º da Constituição da República Portuguesa. Termos em que deverá negar-se provimento ao recurso.'
II
4. Tal como delimitado pelos recorrentes, o presente recurso tem como objecto a apreciação da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 27º-B do Decreto-Lei nº 140/95, de 14 de Junho.
Está em causa, mais precisamente, a norma do artigo 27º-B do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras (RJIFNA, aprovado pelo Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro), aditada pelo artigo 2º do Decreto-Lei nº 140/95, de 14 de Junho.
Na perspectiva dos recorrentes, tal norma, ao prever e punir um
'crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social', instituiu uma autêntica 'prisão por dívidas', violando os princípios constitucionais vertidos nos artigos 27º, nºs 1 e 2, 18º e 63º da Constituição da República Portuguesa.
Se é certo que, durante o processo, os recorrentes invocaram a desconformidade da norma questionada perante os artigos 8º, 18º, 27º, nºs 1 e 2, e 63º da Constituição da República Portuguesa (cfr. o requerimento de abertura de instrução, a fls. 882, e o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, a fls. 1071), já nas alegações produzidas junto do Tribunal Constitucional os recorrentes deixaram de referir-se explicitamente à inconstitucionalidade por violação do artigo 8º da Constituição (fls. 1109 e seguintes).
Deste modo, e sem prejuízo do disposto no artigo 79º-C da Lei do Tribunal Constitucional, não constitui objecto do presente recurso a eventual violação, pelo preceito questionado, do artigo 8º da Constituição.
5. É o seguinte o teor da norma impugnada:
Artigo 27º-B do RJIFNA
(Abuso de confiança em relação à Segurança Social)
'As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações pagas aos trabalhadores o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entregarem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, no período de 90 dias, do mesmo se apropriando, serão punidas com as penas previstas no artigo 24º.'
Dispõe, por sua vez, o artigo 24º do RJIFNA, sob a epígrafe 'abuso de confiança fiscal', e na redacção que resulta das alterações introduzidas no diploma inicial (Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro) pelo Decreto-Lei nº
394/93, de 24 de Novembro:
'1. Quem se apropriar, total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário será punido com pena de prisão até três anos ou multa não inferior ao valor da prestação em falta nem superior ao dobro sem que possa ultrapassar o limita máximo abstractamente estabelecido.
2. Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3. É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4. Se no caso previsto nos números anteriores a entrega não efectuada for inferior a 250.000$00, o agente será punido com multa até 120 dias.
5. Se nos casos previstos nos números anteriores a entrega não efectuada for superior a 5.000.000$00, o crime será punido com prisão de um até cinco anos.
6. Para instauração do procedimento criminal pelos factos previstos nos números anteriores é necessário que tenham decorrido 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.'
6. A norma questionada no presente processo foi, como se disse, introduzida no Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras pelo Decreto-Lei nº 140/95, de 14 de Junho, na sequência de autorização parlamentar ao Governo.
Através da Lei nº 39-B/94, de 27 de Dezembro, a Assembleia da República concedeu ao Governo autorização para 'rever o Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras (RJIFNA), [...] de forma a nele incluir novos tipos de ilícitos penais relativos às infracções às normas reguladoras dos regimes de segurança social' (artigo 58º, nº 1). Ficou deste modo o Governo autorizado a 'alargar a tipificação', designadamente, do crime de abuso de confiança, previsto no artigo 24º do RJIFNA, de modo a nele incluir 'a apropriação, total ou parcial, das contribuições à segurança social por quem estava legalmente obrigado a proceder à sua dedução e entrega à segurança social' (artigo 58º, nº 2, b)).
Afirma-se no preâmbulo do Decreto-Lei nº 140/95 que 'o quadro sancionatório dos regimes de segurança social tem-se mostrado incapaz de prevenir a violação dos preceitos legais relativos ao cumprimento das obrigações dos contribuintes perante o sistema da segurança social'.
Considerando sobretudo 'gravosas as condutas ilícitas que não proporcionam ao sistema o conhecimento de situações determinantes das respectivas contribuições e, muito especialmente, aquelas em que a entidade empregadora se apropria dos valores deduzidos das remunerações dos trabalhadores para efeitos da respectiva protecção' e tendo em conta a necessidade de tomar medidas que combatam eficazmente tais situações, o diploma de 1995, no uso da referida autorização parlamentar, alargou o âmbito de aplicação do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras às infracções praticadas no
âmbito dos regimes de segurança social pelos respectivos contribuintes, definindo e penalizando os crimes contra a segurança social.
Foi assim aditado ao RJIFNA, na parte II ('Das infracções fiscais em especial em especial e das infracções contra a segurança social'), um capítulo II, com a epígrafe 'Dos crimes contra a segurança social', que integra os artigos 27º-A, 27º-B, 27º-C, 27º-D e 27º-E.
O artigo 27º-B refere-se ao abuso de confiança em relação à segurança social, punindo-o com as penas previstas no artigo 24º do RJIFNA.
Ora, este Tribunal teve já oportunidade de se pronunciar sobre a conformidade constitucional da norma contida no artigo 24º do RJIFNA.
No processo nº 442/99, em que era questionada a constitucionalidade de tal norma, com fundamento em violação do princípio da proibição de 'prisão por dívidas', o Tribunal concluiu não existir a alegada violação (acórdão nº
312/00, Diário da República, II Série, nº 240, de 17 de Outubro de 2000, p.
16728 ss ), com os seguintes fundamentos:
'No caso em apreço nos presentes autos, deve entender-se que a norma penal incriminadora do crime de abuso de confiança fiscal não viola o princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, princípio implicado no direito à liberdade e segurança (artigo 27º, n.º1, da Constituição).
Antes de mais, importa analisar os valores e os bens jurídicos em causa na criminalização das infracções fiscais.
O entendimento tradicional do nosso direito penal é o de que só certas formas de ofensas aos bens jurídicos tutelados que se revestem de particular gravidade, pelo alarme social que a sua prática justificadamente causa, necessitam da intervenção do direito penal, assim realizando o princípio constitucional da necessidade da pena.
No caso das infracções fiscais, a publicação em 1988 e 1989 dos Regimes Jurídicos dos imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), do imposto sobre os rendimentos das pessoas colectivas (IRC), da contribuição autárquica (CA) e do Estatuto dos Benefícios Fiscais induziu a reforma do tratamento normativo das infracções fiscais não aduaneiras, tendo o Governo pedido e obtido autorização da Assembleia da República para legislar em tal matéria, relativamente a todos os impostos, contribuições parafiscais e demais prestações tributárias e, bem assim, quanto aos benefícios fiscais.
A autorização concedida permitia ao Governo, em matéria penal, adaptar os princípios gerais, os pressupostos da punição, as formas do crime e as causas de suspensão do procedimento e da extinção da responsabilidade criminal, podendo tipificar novos ilícitos penais e definir novas penas, tomando como referência o Código Penal, mas podendo alargar ou restringir a respectiva dosimetria. Define-se, em seguida, o sentido da autorização através da definição dos tipos de ilícito e dos respectivos elementos do tipo, bem como dos valores máximos e mínimos das penas e coimas. Seguidamente, prevê-se na lei de autorização legislativa a adequação do processo penal aos novos tipos de ilícito
(penal e contraordenacional) criados.
A Lei de Autorização n.º 89/89, de 11 de Setembro, veio a dar origem ao Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, posteriormente alterado, na parte agora em causa, pelo Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, aprovado na sequência da Lei n.º 61/93, de 20 de Agosto.
Este tratamento sistemático da punição das infracções fiscais não aduaneiras mostra bem o relevo que o legislador pretendeu atribuir à defesa dos interesses subjacentes a tal normação e cuja violação a mesma pretende evitar – os interesses da Fazenda Nacional.
Num Estado de direito, social e democrático, a assunção pelo Estado da realização do bem estar social, através da concretização de uma democracia económica, social e cultural, com respeito pelos direitos e liberdade fundamentais, legitima-se pela necessidade de garantir a todos uma existência em condições de dignidade.
A realização destas exigências não só confere ao imposto um carácter de meio privilegiado ao dispor de um Estado de direito para assegurar as necessárias prestações sociais, como também alarga o âmbito do que é digno de tutela penal. [...].
De facto, um Estado para poder cumprir as tarefas que lhe incumbem tem de recorrer a meios que só pode exigir dos seus cidadãos. Esses meios ou instrumentos de realização das suas finalidade são os impostos, cuja cobrança é condição da posterior satisfação das prestações sociais. Compreende-se, assim, que o dever de pagar impostos seja um dever fundamental (cf. Casalta Nabais, 'O dever fundamental de pagar impostos', Livraria Almedina, 1998, pág. 186 ss) e que a violação deste dever, essencial para a realização dos fins do Estado possa ser assegurado através da cominação de sanções criminais.
No caso em apreço, a obrigação em causa não é meramente contratual, mas antes deriva da lei – que estabelece a obrigação de pagamento dos impostos em questão. Por outro lado, nestas situações, o devedor tributário encontra-se instituído em posição que poderemos aproximar da do fiel depositário. Na verdade, no IVA e no imposto sobre os rendimentos singulares (IRS), os respectivos valores, são deduzidos nos termos legais, devendo depois o respectivo montante ser entregue ao credor tributário que é o Estado.
Perante a norma em questão há assim que levar em conta este aspecto peculiar da posição dos responsáveis tributários, que não comporta uma pura obrigação contratual porque decorre da lei fiscal.
Finalmente, relevar-se-á que a impossibilidade do cumprimento não é elemento do crime de abuso de confiança fiscal; a não entrega atempada da prestação torna possível a instauração do procedimento criminal nos termos do nº
5 do artigo 24º, mas o que importa para a punibilidade do comportamento, como se referiu, é a apropriação dolosa da referida prestação. Tem assim de se concluir que a norma constante do artigo 24º do RJIFNA não viola o princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo direito à liberdade e segurança consagrado no artigo 27º, nº 1, da Constituição, em consonância com o previsto no artigo 1º do Protocolo nº 4 Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.'
7. Os fundamentos utilizados no citado acórdão nº 312/00 são transponíveis para o presente processo: em primeiro lugar, porque as sanções estabelecidas para o abuso de confiança fiscal e para o abuso de confiança em relação à segurança social são as mesmas – as que constam da norma do artigo 24º do RJIFNA, apreciada naquele acórdão; em segundo lugar, porque as considerações feitas a propósito da tipificação do crime abuso de confiança fiscal valem igualmente para o crime de abuso de confiança em relação à segurança social.
Assim, e resumidamente:
A solução de punir criminalmente as infracções às normas reguladoras dos regimes de segurança social revela a importância atribuída à defesa dos interesses públicos subjacentes à legislação em causa, em consonância aliás com a incumbência atribuída ao Estado, pelo artigo 63º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, de 'organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social'.
Nos termos do artigo 27º-B do RJIFNA – e do mesmo modo que perante a norma apreciada no acórdão nº 312/00 –, são elementos constitutivos do crime de abuso de confiança em relação à segurança social: a apropriação, total ou parcial, pelas entidades empregadoras, das contribuições que tenham deduzido do valor das remunerações pagas aos trabalhadores e que por estes sejam legalmente devidas; a não entrega do respectivo montante às instituições de segurança social, no prazo de 90 dias. Não estando expressamente prevista a punição por negligência, os factos integradores do crime só podem ser punidos se praticados com dolo (artigo 13º do Código Penal); se não se provar o dolo mas apenas a negligência, pode existir a contraordenação prevista no artigo 29º, nº 2, do RJIFNA. A obrigação em causa não é meramente contratual, antes deriva da lei – que impõe a entrega pelas entidades empregadoras às instituições de segurança social do montante das contribuições que aquelas entidades tenham deduzido do valor das remunerações pagas aos trabalhadores e que por estes sejam legalmente devidas. Nestas situações, as entidades empregadoras encontram-se instituídas 'em posição que poderemos aproximar da do fiel depositário'. A mera impossibilidade do cumprimento não é elemento do crime de abuso de confiança em relação à segurança social. A não entrega atempada da prestação torna possível a instauração do procedimento criminal nos termos do nº 5 do artigo 24º do RJIFNA, mas o que importa para a punibilidade do comportamento, como se referiu, é a apropriação dolosa da referida prestação. A situação pode aproximar-se do crime de abuso de confiança previsto e punido pelo Código Penal (artigos 205º a 207º), que é um crime contra o património, cuja consumação ocorre com a apropriação ilegítima de coisa móvel alheia entregue por título não translativo de propriedade.
8. Concluindo, pois:
A Constituição não contém, para este tipo de casos, proibição de criminalização e reconhece a necessidade de, em Estado de direito democrático, se protegerem penalmente os bens e interesses jurídicos essenciais à vida em comunidade.
A proibição de 'prisão por dívidas' é indiscutivelmente princípio decorrente da Constituição da República Portuguesa (cf. acórdão nº 440/87, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 10º vol., p. 521 ss).
Porém, como se escreveu no acórdão nº 663/98 (Diário da República, II Série, nº 12, de 15 de Janeiro de 1999, p. 592 ss), 'a privação da liberdade não é proibida se outros factos se vêm juntar à incapacidade de cumprir uma obrigação contratual'. Nestes casos, e no caso de a impossibilidade de cumprir não ser devida a negligência, o direito penal pode prever tipos de crimes puníveis com prisão.
Por outro lado, entre nós sempre se entendeu que o princípio da proibição de 'prisão por dívidas' só se aplicava aos 'devedores de boa fé', dele se excluindo os casos de provocação dolosa de incumprimento (cfr. o mencionado acórdão nº 663/98) e considera-se que as razões aduzidas para a proibição da
«prisão por dívidas» não se aplicam quando a obrigação não deriva de contrato mas da lei (neste sentido e desenvolvidamente, o acórdão nº 663/98 e, mais recentemente, o acórdão nº 312/00).
A norma constante do artigo 27º-B do RJIFNA não viola portanto o princípio segundo o qual ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo direito à liberdade e segurança consagrado no artigo 27º, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.
Não existe na solução da lei qualquer medida discriminatória, desnecessária ou excessiva, susceptível de constituir violação do artigo 18º, nº
2, da Constituição ou de contrariar o direito à segurança social consagrado no artigo 63º da Constituição.
III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo
27º-B do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras (aprovado pelo Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro), aditada pelo artigo 2º do Decreto-Lei nº 140/95, de 14 de Junho;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que diz respeito à questão de constitucionalidade.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 29 de Novembro de 2000 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Luís Nunes de Almeida