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Processo nº 516/00
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1.1. - O magistrado do Ministério Público no Tribunal Judicial da comarca de Santa Comba Dão deduziu acusação, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, contra J..., identificado nos autos, como autor material de um crime de corrupção de substâncias alimentares, previsto e punido pelo artigo 273º, nº 2, alínea a), com referência ao seu nº 1, e de um crime de falsificação de documentos, previsto e punido nos termos do artigo 228º, nº 1, alínea q), ambos do Código Penal, na redacção de 1982 [correspondentes aos artigos 282º, nº 1, alínea b), e 256º, nº 1, alínea a), respectivamente, do texto revisto pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março].
Requerida pelo arguido abertura de instrução, ao abrigo do disposto no artigo 287º do Código de Processo Penal (CPP), foi indeferida, por despacho de 12 de Outubro de 1997, uma diligência instrutória requerida ao Delegado Regional de Saúde competente, por força do disposto no artigo 291º, nº
1, 2ª parte, daquele Código.
Reagiu o interessado mediante interposição de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, alegando que, não aduzida qualquer fundamentação de facto ou de direito, na decisão de indeferimento, não se propiciou ao mesmo o exercício do princípio do contraditório constitucionalmente consagrado no artigo 32º da Constituição da República (CR).
O recurso não foi admitido por despacho de 3 de Fevereiro de 1999, por irrecorribilidade da anterior decisão.
Deduzida reclamação para o Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, em 15 do mesmo mês, lavrou-se despacho, a 9 de Abril, em pleno debate instrutório, prosseguindo diligência já ordenada, sem prejuízo de oportunamente se proferir despacho a admitir a reclamação e sua eventual expedição (fls. 154-v.).
Na subsequente tramitação, o Presidente da Relação de Coimbra, por decisão de 24 de Junho de 1999 (fls. 23 do apenso de 12/98/A), deferiu a reclamação e revogou o despacho, ordenando a sua substituição por outro que receba o recurso.
Entretanto, a 21 de Maio desse ano, o arguido interpôs novo recurso para a Relação de Coimbra da decisão instrutória de 6 desse mês,
'na parte que apreciou e decidiu a nulidade suscitada no âmbito da instrução em torno da validade jurídica do parecer no qual assenta parcialmente a imputação jurídico-criminal', confirmando a acusação deduzida.
O recurso não foi admitido por despacho de 9 de Junho , por se tratar de decisão irrecorrível, nos termos do artigo 310º, nº 1, CPP
(fls. 175).
Pedida aclaração que o despacho de fls. 179, de 5 de Julho indeferiu, nova reclamação foi deduzida para o Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra (fls. 181).
No entanto, em 13 de Outubro de 1999, e face à decisão do Presidente da Relação de 24 de Junho, por novo despacho, de 13 de Outubro, recebeu-se o recurso do despacho de 12 de Outubro de 1998, entendendo-se que o processo não deve prosseguir para julgamento, 'atendendo ao facto da fase de instrução estar finda e ainda ao facto da eventual procedência do recurso implicar o retorno à fase do processo existente em 12-10-98' (fls. 198).
O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 17 de Maio de 2000 (fls. 216 e segs.), julgou manifestamente improcedente o recurso, determinando a sua rejeição, e, posteriormente, por aresto de 5 de Junho último, indeferiu o pedido de aclaração deduzido.
1.2. - Inconformado, o arguido interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 291º, nº 1, do CPP, «na parte em que se prescreve que 'o juiz indefere por despacho irrecorrível os actos requeridos por não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo...' [...], com a interpretação que foi aplicada na decisão recorrida».
E acrescentou-se:
'Aduz-se para a admissibilidade do recurso que o douto Acórdão da Relação de Coimbra, ao manter na ordem jurídica o douto despacho recorrido, por aplicação do dispositivo processual supra enunciado, sem que do seu teor se vislumbre qualquer fundamentação, ou em caso de se considerar que tal imposição constitucional ficou preenchida pela mera enunciação formal do texto legal, ofendeu, salvo o devido respeito, o artº 205/1 da Constituição, bem como o princípio do contraditório, consagrado no artº 32/5 da CRP, na medida em que ao Arguido ficou vedada a possibilidade de contraditar e infirmar a acusação que lhe é imputada, por força da denegação dos actos que pretendia ver realizados em sede de instrução, os quais são essenciais para a própria validade jurídica intrínseca da imputação que lhe é dirigida e inerente inteligibilidade social. A questão da inconstitucionalidade foi suscitada nos autos a fls., ou seja, no
âmbito da motivação de recurso interposto do despacho exarado em sede de instrução pelo Mº Juiz do TIC de Viseu para o Tribunal da Relação de Coimbra.'
O recurso não foi admitido, por despacho do Relator de
20 de Junho último (fls. 226): o acórdão proferido – escreveu-se – não aplica qualquer norma cuja constitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo.
2. - É desta decisão que o arguido reclama, agora, para o Tribunal Constitucional, nos termos do nº 4 do artigo 76º da Lei nº 28/82.
E argumenta-se a este propósito:
'Muito embora o Recorrente não haja suscitado expressamente a inconstitucionalidade de qualquer norma, não deixou, no entanto, de na motivação de recurso apresentada donde este emerge, ter a dado passo e com incidência em especial na conclusão 12ª escrito o seguinte:
‘Em suma: uma vez que o douto despacho exarado pelo(a) Mº (Mª) juiz «a quo» aplicou o artº 291, nº 1 «in fine» do Código de Processo Penal, ao indeferir as diligências suscitadas, sem que se vislumbre qualquer fundamentação, é uma evidência que não propiciou ao Recorrente o exercício do princípio do contraditório constitucionalmente consagrado (artº 32 da RP)’. Ora, da leitura do douto Acórdão proferido no Tribunal da Relação de Coimbra, resulta de forma inequívoca que o dispositivo legal que serve de fundamento à decisão que nele se contém, é o do artº 291/1 do CRP, que igualmente foi aplicado na decisão que se encontra na génese do recurso. Ao escrever-se que a aplicação da norma contida no artº 291/1 do CRP põe em causa o princípio do contraditório e como as diligências suscitadas pelo arguido no âmbito da instrução foram indeferidas com aquele fundamento, ou seja, pela mera enunciação formal do texto legal, infere-se, salvo o devido despeito, que foi aplicada norma cuja constitucionalidade foi questionada. Acresce que o dispositivo legal é ainda inconstitucional, por violação do princípio do contraditório, quando prescreve que ‘o juiz indefere por despacho irrecorrível, os actos requeridos...’ (sublinhado meu), já que ao arguido fica vedada a possibilidade de contraditar ou infirmar a acusação que lhe é imputada, mediante a realização de actos de instrução que se propôs levar a cabo no decurso da instrução. Assim sendo, atento o que antecede, requer-se a V. Exªs. seja atendida a presente reclamação e, em consequência a admissão do recurso.'
Ouvido o Ministério Público, ao abrigo do nº 2 do artigo
77º da citada Lei nº 28/82, pronunciou-se o respectivo magistrado no sentido da improcedência da reclamação.
Segundo observa, o recorrente não confrontou o tribunal recorrido com qualquer questão de inconstitucionalidade, e podia-o ter feito, pelo que não se verificam os pressupostos necessários do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade.
Dispensados os demais vistos, pela evidente simplicidade da questão (nº 3 daquele artigo 77º) cumpre apreciar e decidir.
3. - Constitui jurisprudência pacificamente reiterada deste Tribunal o entendimento que a suscitação de inconstitucionalidade normativa, para efeitos do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, deve ocorrer em momento em que o tribunal recorrido ainda dela possa conhecer e decidir, só assim não sucedendo naquelas circunstâncias excepcionais ou anómalas que permitem concluir não ser previsível nem exigível semelhante prognose (cfr. por todos, os acórdãos nºs. 479/89, 155/95, 595/96 e 122/98, publicados no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1992, 20 de Junho de 1995, 22 de Julho de 1996 e 29 de Abril de 1998, respectivamente).
Ora, no caso vertente, o recorrido, na motivação do recurso inicial para a Relação, ao aludir à norma do nº 1, 'in fine', do artigo
291º do0 CPP, limitou-se a defender que o despacho que indeferiu as diligências requeridas, 'sem que se vislumbre qualquer fundamentação', é 'uma evidência que não propiciou ao recorrente o exercício do princípio do contraditório constitucionalmente consagrado (artigo 32º da CRP)'. Ou seja, centrou-se a impugnação no despacho em si, sendo certo que no recurso de constitucionalidade está em causa o controlo normativo e, por consequência, não se convocou a hipotética inconstitucionalidade da norma que estabelece a irrecorribilidade desse despacho, como podia (e devia) ter feito – como, aliás, se reconhece na própria peça processual de reclamação.
De resto, a parte decisória do acórdão da Relação ilustra inequivocamente a natureza não normativa mas meramente impugnatória da decisão quanto à questão submetida ao veredicto daquele Tribunal.
Transcreva-se o que, a esse respeito, se escreveu:
'Importa precisar que o objecto de recurso é única e exclusivamente o despacho que indeferiu as requeridas diligências. Assim, as considerações constantes da motivação e conclusões de recurso em relação a eventual patologia da acusação deduzida, ou dos meios de produção de prova utilizados em sede de inquérito, é exógena ao objecto do presente recurso. Em relação às razões de discordância do recorrente que constam das conclusões do recurso verifica-se que as mesmas se centram na falta de fundamentação do despacho recorrido. Todavia, compulsando o mesmo despacho constante de fls. 97 dos presentes autos constata-se que ali se refere expressamente que ‘a informação prestada pela Delegação Regional de Saúde corresponde à notificação feita a esse entidade pelo que nada mais há a solicitar’ igualmente se refere que ‘a requerida inquirição não interessa à instrução, não se revelando pertinente para a decisão a proferir’. A fundamentação aposta corresponde integralmente às exigências do artigo 291º do Código de Processo Penal pelo que nenhuma crítica suscita. Questão diferente é a de o recorrente não concordar com tais fundamentos. Porém, a instrução é formada pelo conjunto de actos de instrução que o juiz entende levar a cabo com a finalidade de comprovar judicialmente a decisão de acusar. No caso concreto o juiz de instrução entendeu que relativamente à matéria a que se reportava o requerimento indeferido já se encontrava suficientemente esclarecido e não vislumbramos razão para criticar tal posição.
É, assim, manifesta a improcedência do presente recurso pelo que se determina a sua rejeição.'
4. - Há, por conseguinte, que concluir pelo indeferimento da reclamação deduzida.
Assim, e em consequência, decide-se:
a) indeferir a reclamação;
b) condenar o reclamante nas custas, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta. Lisboa, 3 de Outubro de 2000 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida