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Processo n.º 288/98
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - PB, Lda., PI, Lda., FB, Lda., PG, Lda., PV, Lda., MD, Lda., MB, Lda., AR, Lda., HW, Lda., VVH, Lda., NC, Lda., QX, Lda., CF, Lda., A, Lda., A, Lda., VB, Lda., M, Lda., GM, Lda., JH, RS, MR, JR, CT, ER, JS, IJ, JCR, VGB, AMR, VR, AM, HL, JN, JF, JO, PL, PIC, HS, JNV e AJC, Lda., identificados a fls. 2, requereram no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, a suspensão de eficácia da deliberação da Assembleia Municipal de Albufeira, de 12 de Junho de 1997, que aprovou o novo 'Regulamento dos horários de funcionamento de estabelecimentos comerciais do Município de Albufeira'.
A entidade requerida, na sua resposta, pugnou pelo indeferimento do pedido, considerando, em síntese, que o legislador excluiu as normas regulamentares do âmbito da suspensão de eficácia.
Por sentença, de 22 de Setembro de 1997, o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, rejeitou a providência, concluindo pela impossibilidade de suspensão de eficácia de normas regulamentares, sustentando que ' [...]dizer-se que se pede a suspensão de eficácia da deliberação que aprovou o regulamento é justamente o mesmo que pedir a suspensão de eficácia das normas regulamentares aprovadas pela deliberação', porque 'o conteúdo é indissociável da forma [...]', e que o legislador, como resulta dos artigos 26º, n.º1, alínea m) – redacção anterior ao Decreto-Lei nº 229/96, de 29 de Novembro
–, e 51º, n.º1 alínea e) e l), do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril
(Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - ETAF), e 76º, do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho (Lei de Processo nos Tribunais Administrativos
-LPTA), pretendeu restringir a suspensão de eficácia aos actos administrativos, afastando tal possibilidade em relação às normas regulamentares ou outras emitidas no desempenho das funções administrativas.
Inconformados com a decisão, vieram os requerentes interpor recurso para o Tribunal Central Administrativo, tendo este Tribunal, por acórdão de 15 de Janeiro de 1998, negado provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida. Notificados deste aresto, os requerentes apresentaram o requerimento de fls.
486, pedindo a aclaração daquela decisão - com fundamento em obscuridade e ambiguidade - e a sua reforma, invocando, nesta parte, 'lapso manifesto do tribunal na determinação da norma aplicável e na qualificação jurídica dos factos', sobre o qual recaiu o despacho do relator, de 3 de Fevereiro de 1998, que indeferiu tais pretensões.
Deste despacho e, bem assim, do acórdão de 15 de Janeiro de 1998, interpuseram os ora recorrentes recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º1 do artigo 70º, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, para apreciação da constitucionalidade das normas dos artigos 26º, n.º1, alínea m), e 51º, n.º1, alíneas e) e l), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, e 76º e 77º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos.
2. - Neste Tribunal, apenas os recorrentes apresentaram alegações, as quais concluíram nos seguintes termos:
'1ª Os artigos 76º. e seguintes da LPTA e 26º/1/m) e 51º/1/e) e l) do ETAF, devem ser interpretados, em consonância com o direito à tutela judicial efectiva consagrado nos artigos 20º/1 e 268º/4 e 5 da Constituição, no sentido de permitir a declaração de suspensão de eficácia de deliberações de assembleias municipais que aprovem regulamentos municipais (v. Texto n.ºs. 1 a 6 e, resumidamente, n.º 7).
2ª No regime anterior à Lei Constitucional n.º. 1/97, de 20 de Setembro, os artigos 76º. e seguintes da LPTA e 26º/1/m) e 51º/1/e) e l) do ETAF deviam ser interpretados no sentido de admitirem a suspensão de aplicabilidade de actos regulamentares com eficácia imediata emanados da administração local, pois as providências cautelares fazem parte do conteúdo essencial do direito à tutela judicial efectiva consagrado nos artigos 20º/1 e 268º/4 e 5 da Constituição (v. Texto n.ºs. 8 a 11 e, resumidamente, n.º 12).
3ª Sendo certo que é inquestionável que a Lei Constitucional n.º. 1/97, de 20 de Setembro, reforçou o princípio da garantia jurisdicional administrativa, incluindo expressamente a adopção de medidas cautelares adequadas à defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, os artigos 76º. e seguintes da LPTA e 26º/1/m) e 51º/1/e) e l) do ETAF devem ser interpretados no sentido de admitirem a suspensão de eficácia de todo e qualquer acto regulamentar exequível por si próprio, pelo que, dado que o objecto das decisões de primeira instância em matéria de suspensão de eficácia abrange a decisão judicial impugnada e o próprio pedido de suspensão, o Tribunal Central Administrativo terá sempre que voltar a apreciar o recurso da sentença do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa e o próprio pedido de suspensão de eficácia à luz dos novos preceitos constitucionais (v. Texto n.ºs. 13 e 14)'.
3. - Em cumprimento do despacho do relator proferido nos termos e para os efeitos previstos no n.º 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil, perspectivando a hipótese do não conhecimento do objecto do recurso por inverificação do pressuposto a que se refere o n.º2 do artigo 70º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, responderam os recorrentes nos seguintes termos:
'1. Quer o artigo 9º/1l) da LPTA, quer o seu artigo 111º/1/f) conferem ao relator a possibilidade de decidir individualmente as questões em causa ou de as
'submeter à conferência, quando o considerar justificado'.
2. No caso em apreço, o Sr. Desembargador Relator no Tribunal Central Administrativo entendeu que não se justificava submeter à conferência o pedido de aclaração do acórdão de 98.01.15, decisão que era da sua inteira discricionaridade.
3. Deste modo, o recurso em apreço foi interposto de decisão que não admitia recurso ordinário obrigatório (Cf. art. 70º/2 e 3 da LTC), e tanto foi essa a interpretação do Sr. Desembargador Relator no Tribunal Central Administrativo que, em 1998.03.19, o mesmo, ao abrigo do artigo 76º/1 da LTC, apreciou e admitiu o recurso para este Venerando Tribunal (cf. fls. 512 dos autos), o que não aconteceria se o mesmo entendesse que a sua decisão sobre a obscuridade e ambiguidade do acórdão de 1998.01.18 devia ser definitivamente decidida na conferência como conditio sine qua non da interposição deste recurso.'
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II
1. - Delimitação do objecto do recurso Com o presente recurso pretendem, pois, os recorrentes a apreciação da constitucionalidade das normas dos artigos 26º, n.º1, alínea m) – redacção anterior ao Decreto-Lei nº 229/96, de 29 de Novembro –, e 51º, n.º1, alíneas e) e l), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), e 76º e 77º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (LPTA), por violação dos artigos
20º, n.º1 e 268º, n.º4 e 5 da Constituição, nas versões de 1989 e 1997, cuja inconstitucionalidade foi antes suscitada nas alegações de recurso para o Tribunal Central Administrativo. Do confronto do requerimento de interposição com o teor das alegações lograram os recorrentes melhor precisar o objecto do recurso, evidenciando que não se pretende a apreciação da constitucionalidade das próprias normas, em si mesmo consideradas, mas, antes, da interpretação das mesmas sufragada pela decisão recorrida, ou seja, da dimensão interpretativa que excluiu a 'suspensão de eficácia' requerida. Está, no entanto, fora do âmbito do recurso de constitucionalidade a questão de saber se o objecto do pedido de suspensão visava, tão só, a deliberação da Assembleia Municipal de Albufeira que aprovou o 'Regulamento dos horários de funcionamento de estabelecimentos comerciais do Município de Albufeira', ou se tinha por objecto as normas regulamentares aprovadas pela deliberação, posto que as instâncias, entendendo que 'o conteúdo é indissociável da forma...', consideraram que '...dizer-se que se pede a suspensão da eficácia da deliberação que aprovou regulamento é justamente o mesmo que pedir a suspensão de eficácia das normas regulamentares aprovadas pela deliberação', e foi nesta perspectiva que indagaram da admissibilidade do procedimento'. Igualmente, está excluída a apreciação das restantes normas da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, para além das constantes dos artigos 76º e 77º, que os recorrentes aditam nas alegações ao fazerem referência aos artigos 76º e segs., porquanto não constituem objecto do recurso, tal como aqueles o delimitaram no requerimento de interposição, em consonância com a jurisprudência pacífica deste Tribunal. Deste modo, o presente recurso é restrito às normas dos artigos 26º, n.º1, alínea m), e 51º, n.º1, alínea e) e l), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, e 76º e 77º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, interpretadas no sentido de não admitirem a suspensão de eficácia das normas regulamentares em causa.
2. - Do não conhecimento parcial do objecto do recurso
2.1. - O Tribunal Central Administrativo, pelo acórdão de 15 de Janeiro de 1998, como se disse, negou provimento ao recurso, mantendo a sentença do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, de 22 de Setembro de 1997, com fundamento na não admissibilidade de suspensão de normas regulamentares imediatamente exequíveis, e submeteu a apreciação da questão de constitucionalidade, apenas, à luz dos parâmetros constitucionais decorrentes do texto da Constituição anterior
à revisão de 1997, ponderando, a este respeito, que a sentença do Tribunal Administrativo do Círculo era anterior à entrada em vigor daquela revisão - a Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, só entrou em vigor a 5 de Outubro de 1987 (cfr. artigo 198º), e a sentença desse Tribunal data de 20 de Setembro do mesmo ano.
Contra este aresto reagiram os recorrentes através do requerimento de fls. 486, pedindo a aclaração daquela decisão - com fundamento em obscuridade e ambiguidade – e a sua reforma, invocando, nesta parte, 'lapso manifesto do tribunal na determinação da norma aplicável e na qualificação jurídica dos factos'. Estas questões foram decididas pelo despacho do relator no Tribunal Central Administrativo, de 3 de Fevereiro de 1998, que indeferiu as pretensões dos recorrentes.
2.2. - Importa, pois, saber se o despacho do relator, no Tribunal Central Administrativo, que decide do pedido de aclaração e reforma do acórdão anteriormente proferido, é directamente recorrível para o Tribunal Constitucional ou se a parte, perante um tal despacho, não tem que reclamar para a conferência e só depois interpor recurso do acórdão que vier a ser proferido. Ora é, manifesto que o despacho do relator que decide estas matérias não é um despacho de mero expediente - não se destina a prover o andamento do processo, sem interferir no conflito de interesses das partes - mas, antes, decide, de forma expedita, as pretensões de uma das partes no processo, e, por isso, não representa no processo em que é proferido, uma decisão definitiva. Na verdade, dispõe o n.º2 do artigo 111º da LPTA, que «é admissível reclamação para a conferência dos despachos do relator não exceptuados pelo n.º2 do artigo
9º», norma esta que apenas exclui da reclamação os despachos do relator que sejam de mero expediente e os que recebam recursos de acórdãos do tribunal. Entendem, no entanto, os recorrentes que, conferindo a LPTA ao relator, nos artigos 9º, n.º1, alínea l), e 11º, n.º1, alínea f), a possibilidade de decidir individualmente as questões em causa ou de as submeter à conferência, quando o considerar justificado, no caso de o relator decidir individualmente, o recurso interposto do despacho assim proferido é interposto de decisão que não admite recurso ordinário obrigatório, para os efeitos do artigo 70º, n.º2 e 3 da LTC. Não se aceita, no entanto, esta interpretação, porquanto, mesmo considerando a competência do relator para decidir dos pedidos de aclaração e de reforma do acórdão e que as normas em causa lhe conferem a faculdade de decidir individualmente ou de submeter à conferência a decisão de tais matérias, o exercício desta faculdade não é sindicável e, no caso do relator decidir por despacho, esta decisão não está excluída da previsão do n.º2 dos artigos 9º e
111º da LPTA. Deste modo se conclui que o despacho de 3 de Fevereiro de 1998 – que decidiu o pedido de aclaração e reforma do acórdão de 15 de Janeiro de 1998 – não é uma decisão definitiva para os efeitos do artigo 70º, n.º 2 da Lei do Tribunal Constitucional. Aliás, esta solução, hoje consagrada no n.º3 do artigo 70º daquela lei, na redacção da Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, corresponde ao entendimento da jurisprudência deste tribunal, relativamente a situações idênticas no âmbito do Código de Processo Civil (cfr. entre, outros os acórdãos n.ºs 132/94, 244/95, publicados no Diário da República, II Série, de 19 de Junho de 1995 e 28 de Junho de 1995, respectivamente, e 686/99, este ainda inédito). Outro tanto não sucede, porém, quanto ao acórdão de 15 de Janeiro de 1998, que, esse, sim, é recorrível para efeitos de apreciação da questão de constitucionalidade.
3.- Da lei constitucional aplicável
3.1.- Os recorrentes, com o propósito de demonstrar que as normas sub iudicio violam os princípios constitucionais consagrados nos artigos 20º n.º1 e 268º n.ºs 4 e 5, reclamam a apreciação da questão, não só, à luz do texto constitucional anterior à Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, como, também, sob o filtro da versão resultante desta reforma. Assim não entendeu o Tribunal Central Administrativo que, no acórdão ora impugnado, considerou aplicável o texto constitucional na versão anterior à revisão de 1997. Para a análise da questão importa reter que a sentença do Tribunal Administrativo de Círculo é de 22 de Setembro de 1997 e que a Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, entrou em vigor a 5 de Outubro de 1997 (cfr. artigo
198º). Por sua vez, o acórdão ora recorrido foi proferido a 15 de Janeiro de 1998, donde se conclui que o novo texto constitucional entrou em vigor na pendência do processo, após a prolação da sentença do TAC e em data anterior à do acórdão recorrido.
3.2.- A problemática da aplicação da lei constitucional no tempo tem sido objecto de tratamento em vários arestos do Tribunal Constitucional. Constitui jurisprudência corrente que, quando estão em causa normas constitucionais de competência, forma ou de procedimento - que relevam em termos de inconstitucionalidade orgânica ou formal -, o princípio a observar é o do tempus regit actus, ou seja, a competência e a forma dos actos normativos devem aferir-se pelas normas constitucionais vigentes no momento da sua produção.
Quando se trate de apurar a existência de contradição entre o conteúdo de uma norma de direito ordinário e o conteúdo normativo da Constituição – configurando-se um problema de inconstitucionalidade material
(como é o caso dos autos) –, observou-se em jurisprudência deste Tribunal que se há-de atender, designadamente, 'às normas e princípios constitucionais resultantes de uma revisão constitucional posterior a essas normas infraconstitucionais, as quais, por virtude dessa revisão, podem tornar-se supervenientemente inconstitucionais' (assim, os acórdãos nºs. 408/89 e 597/99, publicados no Diário da República, II Série, de 30 de Janeiro de 1990 e 24 de Fevereiro de 2000, respectivamente).
Neste sentido jurisprudencial, as normas ou princípios constitucionais a ter em conta são, em regra, os que estiverem em vigor no momento em que esse confronto houver de ser feito. É assim que, no acórdão nº
408/89, se refere que: « ...enquanto a inconstitucionalidade formal e a orgânica nascem com as normas e jamais as abandonam (mas também não podem sobrevir-lhes a posteriori), a inconstitucionalidade material existe ou deixa de existir no decurso da vigência temporária de uma norma, de acordo com o parâmetro constitucional vigente em cada momento». E, concluiu-se neste aresto, «quando esteja em causa a inconstitucionalidade material, o parâmetro constitucional a ter em conta é o texto constitucional vigente no momento da aplicação da norma que é questionada».
A questão subjacente, no concreto caso, conduziria a determinar-se o momento de aplicação da norma, atendendo à alteração do texto constitucional entrado em vigor entre a aplicação da norma em 1ª instância e a prolação da decisão em recurso.
A este propósito, o Tribunal Constitucional pronunciou-se recentemente: no caso apreciado pelo acórdão nº. 172/00 (publicado no Diário citado, II Série, de 25 de Outubro último), a decisão da 1ª instância também era anterior à entrada em vigor da IV Revisão Constitucional e o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, recorrido, foi prolatado quando já vigorava o texto resultante da Lei Constitucional nº 1/97.
Escreveu-se, então, que embora as 'novas versões da Constituição não possam ser, em princípio, critério de julgamento de constitucionalidade de normas já aplicadas anteriormente' (salvaguardando-se, geralmente, o caso julgado quanto à aplicação do direito infraconstitucional), o facto da vigência do novo texto constitucional no momento de aplicação da norma implica 'a necessidade de o tribunal que a aplica se subordinar aos princípios e critérios vigentes consagrados no texto constitucional, não devendo aplicar lei constitucional (cfr. Artigo 204º)'.
No entanto – e como se observou no voto de vencido do Conselheiro Presidente –, é questionável que o momento determinante para a escolha da lei aplicável, quando duas leis se sucedem no tempo, seja, necessária e automaticamente, o da decisão judicial; tudo dependerá – escreveu-se nesse local – 'da matéria e do tipo de situações em presença, e dos critérios estruturais, postulados pela mesma regra [a regra que observa a norma vigente no momento da decisão], aplicáveis justamente a cada matéria e situação típica'. Porém, como se verá, na situação vertente não se torna, sequer, necessário um compromisso quanto à escolha da lei aplicável ratione temporis, dado que a solução a conceder será, de qualquer forma, idêntica. III
1. – O Tribunal Central Administrativo, no acórdão de 15 de Janeiro de
1998, negou provimento ao recurso e confirmou a sentença do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, de 22 de Setembro de 1997, considerando não ser admissível a suspensão de normas regulamentares imediatamente exequíveis. Fundamentou-se o acórdão recorrido na posição do Supremo Tribunal Administrativo, defendida nos acórdãos de 13 de Maio de 1986 (publicado na Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 120º. n.º 1763, p.p. 299 e segs., com anotação de Afonso Queiró, apoiando a tese da inadmissibilidade, e no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 258, pág. 300), e de 17 de Maio de 1988
(publicado na Revista de Direito Público, n.º5 - Junho/Julho.89, pág. 57, e Boletim do Ministério da Justiça, n.º 377, pág. 328), - - nos quais estava em causa a suspensão de regulamentos municipais imediatamente exequíveis -, e, bem assim, da posição seguida no acórdão de 9 de Maio de 1996, proferido no processo n.º 40.044-A – onde o Supremo Tribunal Administrativo se pronunciou pela inadmissibilidade do pedido de suspensão de eficácia de actos normativos –, concluindo 'que os regulamentos não são vocacionados para a suspensão da sua eficácia e que apesar de a protecção dos direitos dos administrados poder exigir solução diversa, as normas de eficácia imediata não podem ser objecto de pedido de suspensão da sua eficácia, por expressa determinação da lei'. Naquele aresto - o de 13 de Maio de 1986 -, o primeiro a debruçar-se sobre a questão no âmbito da LPTA e do ETAF, o Supremo Tribunal Administrativo, partindo da análise dos arts. 26º, nº1, alínea m), e 51º, nº1, alínea e) do ETAF, argumentou com o elemento literal dos preceitos, salientando que ambos se referem a 'actos', parecendo o artigo 26º, nº1, alínea m), do ETAF, querer restringir expressamente a suspensão aos actos compreendidos entre as alíneas b) a h), sendo que é na alínea i) que vêm previstos os pedidos de declaração de ilegalidade de regulamentos, e que, o artigo 51º, nº1, alínea l) do ETAF - que fixa a competência dos Tribunais Administrativos de Círculo para conhecimento dos pedidos de suspensão de eficácia -, 'refere apenas «actos administrativos» e a expressão foi usada em sentido técnico preciso: actos administrativos concretos'. Assim, concluiu-se: 'em nenhuma disposição do ETAF se usa o termo
«acto» abrangendo o sentido ínsito no conceito de «norma»'. De seguida, avançam-se razões que emanam da ratio do instituto da suspensão, que o aresto recorrido assim resumiu:
- 'A presunção de legalidade seria mais forte relativamente às disposições regulamentares do que no que respeita aos actos: «o regulamento, pela sua própria natureza de norma jurídica, destinado à prossecução de interesses gerais ou do bem comum, afigura-se-nos menos permeável que o acto administrativo individual e concreto, à inquinação de vícios que afectam a sua validade e, consequentemente, a sua plena operacionalidade»;
- a exigência de um prejuízo pressupõe que o destinatário seja afectado directamente e em particular, o que só sucede com os actos administrativos;
- a suspensão dos regulamentos não tem em conta os interesses dos contra-interessados, cujo respeito a lei exige;
- a estabilidade do sistema legal ficaria afectada, porque um regulamento estaria suspenso relativamente aos que o impugnaram e que obtiveram provimento para o pedido de suspensão e continuaria a ser executado relativamente aos outros;
- a suspensão de um regulamento implicaria desde logo uma grave lesão do interesse público, o que afastaria a possibilidade da sua concessão pelo juiz administrativo'.
Por tudo isto, entendeu o Supremo Tribunal Administrativo, no supra citado aresto, que o regulamento 'dificilmente se coaduna com a suspensão da eficácia' e só uma inequívoca consagração legal poderá levar à admissibilidade da suspensão de tais figuras, ainda que provenientes da Administração local.
2.- Quanto à questão de constitucionalidade, ponderou o Tribunal Central Administrativo que a tese da admissibilidade da suspensão dos regulamentos já era assumida no âmbito do texto constitucional anterior à revisão de 97 (operada pela Lei n.º1/97) no estudo publicado na referida Revista Jurídica, n.º 21, a pp. 290 e ss., onde, invocando a necessidade de conciliação entre a exigência constitucional de tutela jurisdicional efectiva ao nível do contencioso administrativo (artigo 268º n.º5) e os valores constitucionalmente protegidos da segurança e estabilidade jurídicas (artigo 2º), bem assim como a prossecução do interesse público (artigo 266º, n.º1), se defende a admissão da suspensão jurisdicional de regulamentos imediatamente exequíveis de forma mitigada, nomeadamente quanto a regulamentos feridos de inexistência ou de nulidade, principalmente daqueles que ofendam direitos fundamentais dos cidadãos. Ora, foi nesta perspectiva que, tendo em conta, por um lado, que os vícios imputados às normas regulamentares em causa não eram os de inexistência ou de nulidade, e, por outro, que o regulamento, ao decidir sobre o encerramento de bares e 'boîtes', alterando o respectivo horário das 4 para as 3 horas, não afecta, manifestamente, direitos fundamentais dos cidadãos, o aresto recorrido concluiu não existirem razões, nem fundamento, para, antes da entrada em vigor da 4ª Revisão Constitucional, se sustentar a possibilidade de suspensão da eficácia daquelas normas regulamentares, salientando que o novo texto constitucional veio reforçar a ideia de que, anteriormente, não eram susceptíveis de suspensão de eficácia as normas regulamentares.
3.- Invocam os recorrentes que as normas dos artigos 26º, n.º1, alínea m), e 51º, n.º1, alínea e) e l), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, e 76º e 77º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos devem ser interpretadas no sentido de admitirem a suspensão de aplicabilidade de actos regulamentares com eficácia imediata emanados da administração local, pois as providências cautelares fazem parte do conteúdo essencial do direito à tutela judicial efectiva consagrado nos artigos. 20º, nº1, e 268º, nº4 e 5 da Constituição.
3.1.- O artigo 268º, nº5, da Constituição, na versão de 1989, ao prescrever que 'é igualmente garantido aos administrados o acesso à justiça administrativa para tutela dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos', «visou garantir uma protecção jurisdicional administrativa plena» - 'uma protecção jurisdicional administrativa sem lacunas', nos dizeres de J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (cf. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, página 942): uma protecção jurisdicional que deixou de estar dependente da existência de um acto administrativo lesivo de direitos e de se confinar ao recurso contencioso de anulação [cf., também neste sentido, os acórdãos nºs 104/99 e 105/99 (publicados no Diário da República, II Série, de 10 de Abril de 1999 e de 15 de Maio de 1999, respectivamente)]. «E verdade é também que este direito a uma tutela jurisdicional efectiva, sendo uma manifestação ou concretização do direito de acesso dos cidadãos aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos (consagrado no artigo 20º, n.º 1, da Constituição), é um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias» (cfr. acórdão n.º 70/2000, ainda inédito, proferido no processo n.º 477/99).
À luz do texto constitucional então vigente, este Tribunal entendeu – se bem que por maioria – que o direito à suspensão de eficácia de um acto administrativo, constituindo um acréscimo garantístico relativamente ao próprio recurso contencioso, tornando-o mais consistente, não era, no entanto, constitucionalmente consagrado (assim, v.g., os acórdãos nºs. 80/91, 173/91,
450/91 e 205/93, este último tirado em plenário, publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 29 de Agosto de 1991, 2 de Setembro do mesmo ano e, os dois últimos, de 3 de Maio de 1993). Mesmo que, no entanto, diferentemente se considerasse, não se englobava nele a suspensão de eficácia de regulamentos administrativos, circunscrito que era o preceito constitucional aos actos administrativos.
3.2.- É certo que a Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, deu nova redacção aos nºs 4 e 5 do artigo 268º e levou a cabo duas transformações notáveis, como salientou o Deputado Barbosa de Melo: «a primeira é que o nº4 integra, num todo harmónico, o que actualmente, sem grande aprumo racional, anda derramado pelos nºs 4 e 5 vigentes; a segunda consta do nº 5, no ponto em que este consagra inequivocamente o direito de acção contra regulamentos da Administração que afectem desfavorável e directamente cidadãos nos seus direitos e interesses» (Diário da Assembleia da República, VII legislatura, 2ª sessão legislativa, reunião plenária de 30 de Julho de 1997, página 3955). Com a redacção introduzida, o nº4 deste preceito passou a ficar redigido de modo a garantir aos administrados «tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas».
O que o legislador constitucional pretendeu foi deixar claro que «o princípio da plenitude da garantia jurisdicional administrativa - a mais do que obrigar o legislador a regular o clássico direito ao recurso contencioso contra actos administrativos; e, bem assim, o direito de acesso à justiça administrativa para tutela dos direitos ou interesses legalmente protegidos
(nomeadamente, das acções para o reconhecimento desses direitos ou interesses) - obriga-o a prever meios processuais que permitam ao administrado exigir da Administração a prática de actos administrativos legalmente devidos (acções cominatórias) e, quando for o caso, lançar mão de medidas cautelares adequadas».
É que tudo são manifestações (concretizações) do direito de acesso aos tribunais para defesa, por banda dos administrados, dos 'seus direitos e interesses legalmente protegidos', como dispõe o n.º 1 do artigo 20º da Constituição» (cfr. acórdãos nºs 104/99, 105/99 e 469/99, publicados no Diário da República, II Série, de 10 de Abril de 1999, 15 de Maio de 1999 e 14 de Março de 2000, respectivamente). Por outro lado, também não resulta da alteração introduzida no n.º 5 do artigo
268º, pela Lei Constitucional nº1/97, - que passou a consagrar inequivocamente o direito de acção contra regulamentos da Administração que afectem desfavorável e directamente cidadãos nos seus direitos e interesses – que fosse intenção do legislador constitucionalizar o recurso às providências cautelares relativamente a normas regulamentares, em respeito ao princípio da tutela jurisdicional efectiva dos direitos e interesses legítimos dos administrados. Na verdade, se a suspensão de eficácia passou a estar prevista no nº 4 do actual artigo 268º no âmbito dos concretos actos administrativos, já o mesmo não se dirá quanto aos regulamentos, visto que, relativamente a estes, o nº 5 do preceito cuida exclusivamente do direito de impugnar as normas administrativas com eficácia externa, lesivas dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
3.3.- Deste modo, seja à luz dos parâmetros constitucionais actualmente vigentes, seja, por maioria de razão, de acordo com o padrão constitucional em vigor anteriormente à IV Revisão Constitucional, não se surpreende qualquer vício de inconstitucionalidade, designadamente, por violação dos artigos 20º, n.º1 e 268º, n.º4 e 5 da Constituição, das normas dos artigos 26º, n.º1, alínea m) – redacção anterior ao Decreto-Lei nº 220/96, de 29 de Novembro –, e 51º, n.º1, alíneas e) e l), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, e
76º e 77º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, interpretadas, no sentido de excluírem a suspensão de eficácia das normas regulamentares imediatamente exequíveis, quando não lhes sejam imputados os vícios de inexistência ou de nulidade, nem ofendam direitos fundamentais dos administrados, como se entendeu no acórdão recorrido.
IV
Pelo exposto, decide-se: a. Não tomar conhecimento do recurso interposto do despacho do relator no Tribunal Central Administrativo, de 3 de Fevereiro de 1998; b. Negar provimento ao recurso, confirmando-se, em consequência, embora com diferente fundamentação, o acórdão recorrido no que à matéria de constitucionalidade respeita. c. Condenar os recorrentes nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta, para cada um. Lisboa, 13 de Dezembro de 2000- Alberto Tavares da Costa José de Sousa e Brito Messias Bento Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (votei a decisão no pressuposto de que a questão de constitucionalidade aqui colocada deve ser apreciada à luz do texto constitucional anterior à revisão operada pela Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro) Luís Nunes de Almeida