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Processo nº 569/99
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por sentença de 27 de Março de 1998, foi julgada improcedente a acção sumária proposta por AL... contra A... e mulher, M..., na qual o autor se opusera à denúncia do contrato de arrendamento rural do prédio identificado nos autos, celebrado entre o autor e o pai do réu. Posteriormente, intervieram na acção os outros titulares da herança indivisa de que faz parte o prédio referido. O tribunal julgou nulo o referido contrato, por não ter sido reduzido a escrito, e condenou o autor a restituir o prédio aos réus. Inconformado, o autor recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 23 de Fevereiro de 1999, revogou a sentença recorrida e julgou a acção procedente, considerando 'sem efeito a denúncia do contrato de arrendamento'. Para assim decidir, o Tribunal da Relação de Lisboa, por entre o mais, considerou relevante a notificação efectuada por carta enviada em nome do autor ao réu marido em 23 de Junho de 1995, com assinatura a rogo, sem reconhecimento notarial, com o objectivo de reduzir o contrato a escrito, nos termos e para os efeitos previstos nos nºs 3 e 4 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 385/88, de 25 de Outubro. Segundo estes preceitos, nos contratos de arrendamento rural, 'qualquer das partes tem a faculdade de exigir, mediante notificação à outra parte, a redução a escrito do contrato' (nº 3), sendo certo que 'a nulidade do contrato não pode ser invocada pela parte que, após a notificação, tenha recusado a sua redução a escrito' (nº 4).
Recorreram A... e outros para o Tribunal Constitucional, 'ao abrigo da alínea b) do nº 1 do arto 70º' da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo que o Tribunal julgasse inconstitucionais, 'na interpretação que lhes deu o Acórdão recorrido', as normas dos artigos '373º, nºs 1, 3 e 4, do Código Civil, e os artigos 166º, nºs 1 e 2, e 167º, nºs 3, 4 e 5, do Código do Notariado de 1967 (com as alterações, designadamente, de 1979, 1983 e 1990), aplicável aos autos', por violação 'nomeadamente, [d]os actuais artigos 2º, 13º, nºs 1 e 2, 20º, nºs 1 e 5, 202º, nº 2 e 204º, da Constituição da República Portuguesa (após a sua 4ª revisão), todos eles consubstanciadores do princípio constitucional do estado de Direito Democrático'.
Justificando a circunstância de apenas no requerimento de interposição de recurso suscitar estas inconstitucionalidades, os recorrentes alegaram que o Tribunal da Relação de Lisboa adoptou para as normas impugnadas uma interpretação 'de todo imprevisível, totalmente surpreendente e insólita
(...) dos supracitados artigos do Código Civil e do Código do Notariado – em pleno contraste com a interpretação feita pelo Tribunal de 1ª Instância – no sentido de que a omissão das formalidades notariais, aí previstas, apenas pode ser arguida pelo próprio rogante, não sendo, por isso, aplicáveis ao caso essas disposições legais, e considerando-se, assim, devidamente efectuada a notificação ao senhorio para reduzir o contrato a escrito, e, portanto, sendo aplicável o disposto no nº 4, do artigo 3º, da Lei do Arrendamento Rural (Dec. Lei nº 385/88, de 25 de Outubro)'.
2. O recurso não foi, porém, admitido, pelo despacho de 20 de Abril de 1999 do Tribunal da Relação de Lisboa, por dois fundamentos diferentes, 'se bem que o primeiro dos fundamentos invocados seja suficiente para o não recebimento do recurso'. Em primeiro lugar, por não existir qualquer razão para que os recorrentes se considerassem dispensados do ónus de invocar a inconstitucionalidade das normas impugnadas durante o processo, ou seja, antes de ter sido proferida a decisão recorrida, como exige a citada al. b) do nº 2 do artigo 70º da Lei nº 28/82, porque 'a interpretação dada às ditas normas nada tem de anormal e muito menos de ‘surpreendente e insólita’ ', apenas não coincide com aquela que os recorrentes pretendiam fosse seguida. Esta falta provocaria a ilegitimidade dos recorrentes 'para a interposição do presente recurso', uma vez que, de acordo com o disposto no nº 2 do artigo 72º da mesma Lei, 'os recursos previstos na alínea b) do nº 1 do artº 70 (como é o caso) só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade'. Em segundo lugar, o Tribunal da Relação de Lisboa não admitiu o recurso por o considerar manifestamente infundado (nº 2 do artigo 76º da mesma Lei). Conforme julgou, de entre os preceitos constitucionais invocados pelos recorrentes,
'quanto aos artigos 2º, 20º e 202º é óbvio que os mesmos nada têm a ver com a questão'; 'também é óbvia a aplicação do artigo 204º a todos os casos submetidos a tribunal, mas nada tem a ver com o caso sub iudice, ou com qualquer outro em concreto. Este artigo é aplicável sempre que se suscite qualquer questão de inconstitucionalidade perante os tribunais'; e, quanto ao artigo 13º, 'também
(...) parece destituído de qualquer fundamento' pretender que tenha sido violado.
3. Reclamaram então A... e outros para este Tribunal, 'ao abrigo do artigo 76º, nº 4 e 77º da lei do Tribunal Constitucional', insistindo em que a interpretação das normas impugnadas perfilhadas pelo acórdão recorrido foi 'razoavelmente imprevisível, mesmo insólita', o que os dispensaria de invocar a inconstitucionalidade em momento anterior ao da interposição de recurso; e acrescentaram que 'não tiveram necessidade, ou qualquer espécie de justificação, ou qualquer oportunidade processual, para invocarem a inconstitucionalidade. Essa necessidade só surgiu com a prolação do Acórdão recorrido'. Não se pronunciaram quanto ao segundo fundamento de não admissão do recurso. Notificado para o efeito, o Ministério Público veio pronunciar-se no sentido do indeferimento da reclamação, 'já que o ora reclamante não suscitou, durante o processo, – podendo tê-lo feito – a questão da inconstitucionalidade normativa a que reportou o recurso de fiscalização interposto. Importará notar, desde logo, que a questão da validade da assinatura a rogo, constante da carta através da qual o arrendatário pretendia obter a redução a escrito do contrato de arrendamento rural, sempre esteve presente no espírito dos litigantes – propugnando os réus, na contestação, pela indispensável validação notarial de tal rogo e os autores, na resposta à contestação pela tese oposta. A tese da indispensabilidade da validação notarial do rogo é, aliás, retomada pelos réus no âmbito das contra-alegações produzidas (cf. fls. 138), o que bem denota que as partes sempre tiveram bem presente a eventualidade de a dirimição do litígio – ao valorar a validade e eficácia da carta destinada a obter a redução a escrito do contrato – passar pela interpretação da norma constante do nº 4 do art. 373º do CC. Deste modo, cumpria inteiramente aos recorridos terem oportunamente ponderado as possíveis interpretações que poderia sofrer a regime normativo da assinatura a rogo, suscitando logo, nomeadamente nas contra-alegações produzidas perante a relação, para a eventualidade de tal questão se vir a configurar como decisiva para dirimição do litígio – como veio a suceder – a questão de constitucionalidade que apenas vieram a suscitar, perante a decisão já proferida'.
Terminando o parecer, Ministério Público pronuncia-se também pela manifesta falta de fundamento do recurso.
4. Trata-se de uma questão simples, razão pela qual se procede à emissão da decisão sumária prevista no nº 3 do artigo 77º da Lei nº 28/82. Com efeito, a reclamação é manifestamente improcedente, pois falta um pressuposto indispensável ao conhecimento do objecto do recurso: não foi suscitada durante o processo, nos termos exigidos pela al. b) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82, a inconstitucionalidade das normas que o reclamante pretende seja apreciada pelo Tribunal Constitucional. Como este Tribunal tem reiteradamente afirmado, este requisito da invocação da inconstitucionalidade de uma norma ou de uma sua interpretação durante o processo traduz-se na necessidade de que tal questão seja colocada perante o tribunal recorrido de forma a proporcionar-lhe a oportunidade de a apreciar. Só nos casos excepcionais e anómalos, que aqui manifestamente não ocorrem, em que o recorrente não dispôs processualmente dessa possibilidade, é que será admissível a arguição em momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os acórdãos deste Tribunal com os nºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II, de 28 de Maio de 1994). Sustenta o reclamante não lhe ser exigível o cumprimento deste ónus, nos termos relatados. Todavia, a verdade é que, como justamente observa o Ministério Público, foi controvertida ao longo de todo o processo a possibilidade de ser considerada a notificação em causa não obstante a falta de reconhecimento notarial da assinatura a rogo, nos termos previstos nas diversas disposições impugnadas. Não se pode, pois, considerar que o reclamante tenha sido colocado perante uma interpretação das normas impugnadas com a qual não pudesse, razoavelmente, contar. Não se tratará, em rigor, de falta de legitimidade, uma vez que este pressuposto de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade não é consumido pelo ónus de invocação da inconstitucionalidade durante o processo, como parece entender a decisão reclamada. Não deixa por isso de carecer de fundamento a presente reclamação. Finalmente, sempre se diz que se torna desnecessário conhecer do segundo fundamento da decisão de não admissão do recurso.
Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão de não admissão do recurso. Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs. Lisboa, 2 de Dezembro de 1999 Maria dos Prazeres Beleza Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida