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Proc. n.º160/00
1ª Secção Cons. Vítor Nunes de Almeida ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL: I – RELATÓRIO:
1. – AV, ER, AB e MS, LDA foram acusados e julgados no Tribunal Judicial de Montemor-o-Velho pela prática, em concurso efectivo, da contra-ordenação ao disposto no artº3º, n.º1, do Decreto-Lei n.º245/96, de
20.12, da contra-ordenação ao disposto no art.º 2º do Decreto-Lei n.º 420/84, de
31.12, e dos crimes previstos e punidos no art.º 22º, n.º2, e art.º 24º, n.º1, al. c), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20.01.
2. - Realizado o julgamento, veio a considerar-se preenchida a factualidade objectiva típica do crime previsto e punido no artigo
22º, n.º1, alíneas a) e b), do Decreto-Lei n.º 28/84, relativamente ao 1º arguido, pelo que veio a ser condenado na pena de três meses de prisão e quarenta dias de multa, à razão de 2.000$00 por dia, o que perfaz a multa de
80.000$00, sendo declarada perdoada a pena de prisão, nos termos do que se dispõe no artigo 1º, n.º1, da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio. Mais foi o 1º arguido condenado pela prática de um crime previsto e punido no art.º 24º, n.ºs
1 e 2, al. c) do Decreto-Lei n.º 28/84, na pena de um mês de prisão, que se substituiu por igual tempo de multa, à razão de 2.000$00 por dia, e 30 dias de multa, à mesma razão diária, o que perfaz a multa de 120.000$00, e em cúmulo jurídico, na pena de 160.000$00 de multa, por cujo pagamento é solidariamente responsável a 4ª arguida, MS, Lda.
Os 2º e 3º arguidos foram absolvidos e a 4ª arguida foi também condenada.
A decisão proferida resolveu também que a decisão fosse publicada, por extracto, nos termos do artigo 28º, n.º4, do Decreto-Lei n.º
28/84.
3. - AV não se conformando com o assim decidido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo suscitado, entre outras questões, a seguinte: 'o tribunal a quo fez incorrecta aplicação do art.º 24º, n.º4, uma vez que aplicou automaticamente a sanção acessória aí prevista, sem qualquer tipo de motivação, sendo certo que a determinada publicação da sentença não se justifica, em face das circunstâncias do caso concreto.'
A esta questão deu a Relação a seguinte resposta:
'12. Finalmente, quanto á pena acessória de publicação da sentença, por extracto
[art.ºs 8º, I),19º e 24º, DL 28/84]: Contrariamente ao sustentado pelo arguido, decorre em termos inequívocos das disposições legais citadas que – em caso de condenação pela prática de um crime p. e p. pelo artigo 24º, DL 28/84 – a imposição na sentença da respectiva publicação é sempre obrigatória (cfr. neste sentido, por todos, Ac. desta Relação de 15/12/94, CJ, 94, V,67). Compreende-se que assim seja, pois, como de todos é sabido, são muito elevados os danos materiais e morais provocados pela criminalidade económica, a qual atinge relevantes interesses colectivos, o que explica suficientemente que o legislador imponha a publicação da sentença na criminalidade desta natureza, por evidentes razões de prevenção geral, sendo certo que «o juízo sobre a necessidade de lançar mão desta ou daquela reacção penal cabe, obviamente, em primeira linha, ao legislador, em cuja sabedoria tem de confiar-se, reconhecendo-se-lhe uma larga margem de discricionaridade' (Ac. TC, de 1/7/98, DR-II Série, de 25/11/99, que seguimos de muito perto). Com efeito, a limitação da liberdade de conformação legislativa só pode ocorrer em caso de arbítrio legislativo, ou quando a sanção se apresente como manifestamente excessiva, situações que não se vislumbram na situação em apreciação. Na verdade, a norma sub judicio não viola qualquer princípio consagrado na ordem jurídico-constitucional, v.g. o da igualdade (a pena acessória em análise é cominada quanto a vários outros crimes graves, em matéria de atentados contra a economia e a saúde pública) ou o da necessidade das sanções penais, tal como, noutro plano, não viola o direito à reserva da intimidade da vida privada (a sentença é proferida na sequência de uma audiência pública) ou o direito ao bom nome do arguido (o que o atinge é a conduta delituosa). Por outro lado, está fora de causa a eventual violação das normas ínsitas nos art.ºs 30º, nº4, CRP, e 65º, nº1. CP ('nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de direitos civis, profissionais ou políticos'), desde logo porque a pena acessória em causa se encontra ligada a um determinado conteúdo do ilícito e não à natureza da pena aplicada: 'do princípio do Estado de direito democrático não decorre directa e necessariamente que ele seja violado pelo facto de, por força de lei formal, à condenação de um crime e à imposição da pena respectiva acrescerem outros efeitos de natureza penal' (Figueiredo Dias, As consequências jurídicas do crime, 159).'
É desta decisão que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, não tendo o recorrente identificado no requerimento de interposição os elementos exigidos pelo artigo 75º - A da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que foi notificado para os fornecer (fls. 245).
Na sequência deste convite, o recorrente veio esclarecer que o recurso de constitucionalidade é interposto ao abrigo da alínea b) do nº1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo o recorrente que o Tribunal aprecie a conformidade constitucional do nº4 do artigo 24º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, face ao nº 4 do artigo 30º da Constituição, tendo a questão de constitucionalidade sido suscitada no recurso para o tribunal judicial e para a Relação.
Produzidas as respectivas alegações, o recorrente concluiu as suas pela forma seguinte:
'21 – A aplicação da pena acessória de publicidade da decisão condenatória, nos termos do nº 4 do artigo 24º do D.L. nº 28/84, de 22/01, de forma automática, cega, sem qualquer tipo de motivação e apenas porque 'à primeira vista', parece resultar da Lei ('...decorre em termos inequívocos das disposições legais citadas que – em caso de condenação pela prática de um crime p. e p. pelo artº
24º, D.L. nº 28/84 – a imposição na sentença da respectiva publicação é sempre obrigatória') – como se verificou no caso dos autos – faz com que esta norma, com a interpretação que lhe foi dada, seja ilegal – por violação do disposto no nº1 do artº 65º do CP – e inconstitucional – por violação do disposto no nº 4 do artº 30º da CRP'.
Pelo seu lado, o Procurador-Geral da República, em exercício neste Tribunal, concluiu as suas alegações pela forma seguinte:
'1º - A circunstância de, por evidentes razões de prevenção geral, a lei estabelecer que as decisões condenatórias, proferidas por crimes contra a saúde pública – em que o bem jurídico tutelado tem natureza necessariamente colectiva, estando conexionado com a defesa dos interesses dos consumidores – devem ser especialmente publicitadas, designadamente em publicação periódica – reforçando a natural e normal 'publicidade' que sempre resultaria do carácter público da audiência – não viola os princípios da igualdade e da necessidade das sanções penais, não implicando perda automática de qualquer direito civil, profissional ou político do arguido.
2º - Termos em que deverá improceder o presente recurso.'
Corridos que foram os vistos legais cumpre apreciar e decidir. II – FUNDAMENTOS
4. – A questão que vem suscitada nos autos é a de saber se a norma do artigo 24º, nº 4 ou a norma do artigo 28º, nº 6, (e não nº 4 , como se refere na decisão de 1ª instância) ambas do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, ao determinarem, no caso de condenação pela prática dos crimes nelas previstos, que 'a sentença será publicada', violam o artigo 30º, nº 4, da Constituição.
O ora recorrente e 1º arguido nos autos foi condenado pela prática de um crime previsto e punido no artigo 22º, nº1, alíneas a) e b) do Decreto-Lei nº 28/84, na pena de três meses de prisão e em 40 dias de multa à razão de 2000$00 por dia, no total de 80.000$00, tendo sido declarada perdoada a pena de prisão (artigo 1º, nº1, da Lei nº 29/99, de 12 de Maio). Mais foi ainda condenado pela prática de um crime previsto e punido no artigo 24º, nºs 1 e 2, alínea c) do referido diploma, na pena de um mês de prisão, substituída por igual tempo de multa, à razão de 2000$00 por dia e em 30 dias de multa, à mesma razão diária, o que perfaz a multa total de 120.000$00; feito o cúmulo jurídico, o recorrente foi condenado na pena de 160.000$00 de multa, sendo solidariamente responsável pelo pagamento de tal multa a 4ªarguida, MS, Lda.
O Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, veio redefinir as infracções contra a economia e contra a saúde pública, estabelecendo as penas correspondentes aos crimes e contra-ordenações que nele se previram.
Assim, o artigo 22º prevê o crime de abate clandestino como crime contra a saúde pública, considerando que comete tal crime ‘quem abater animais para consumo público sem a competente inspecção sanitária, fora de matadouros licenciados ou recintos para esse efeito destinados pelas autoridades competentes (...)’.
Pelo seu lado, o artigo 24º, do diploma em apreço, considera que pratica um crime contra a economia e, especificamente contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares, ‘quem produzir, preparar, confeccionar, fabricar, transportar, armazenar, detiver em depósito, vender, tiver em existência ou exposição para venda, importar, exportar ou transaccionar por qualquer forma, quando destinados ao consumo público, géneros alimentícios e aditivos alimentares anormais não considerados susceptíveis de criar perigo para a vida ou para a saúde e integridade física alheia (...)’.
Em ambos os preceitos, a lei estabelece que ' a sentença será publicada'.
Sobre a ‘publicidade da decisão’, prescreve o artigo
19º, do Decreto-Lei nº 28/84: 'Sempre que o tribunal aplicar a pena de publicidade da decisão, será esta efectivada, a expensas do condenado, em publicação periódica editada na área da comarca da prática da infracção ou, na sua falta, em publicação periódica da comarca mais próxima, bem como através da afixação de edital, por período não inferior a 30 dias, no próprio estabelecimento comercial ou industrial ou no local de exercício da actividade, por forma bem visível ao público (nº1)'.
Em casos particularmente graves, a lei prevê que a publicação seja feita no Diário da República ou em qualquer outro meio de comunicação social, designadamente quando a infracção importe lesão ou perigo de lesão de interesses que não se circunscrevam a determinada área territorial, sendo a publicitação feita, em qualquer caso, por extracto de onde constem os elementos da infracção, as sanções aplicadas e a identificação dos agentes.
O diploma em apreço concebe a publicitação da decisão condenatória como uma de entre as várias penas acessórias, susceptíveis de serem aplicadas nos crimes previstos no Decreto-Lei nº 28/84, de acordo com o estabelecido no seu artigo 8º.
O legislador do Decreto-Lei nº 28/84, depois de afirmar no preâmbulo do diploma que, no capítulo das sanções, se respeitou a dosimetria do Código Penal, escreve:
'Não se enveredou, todavia, por um direito penal de terror, traduzido em sanções exageradamente graves, de comprovada ineficácia e comportando o risco de violar o princípio da proporcionalidade, sem falar em indesejáveis disjunções no plano económico-social. Adoptou-se, no entanto, um vasto elenco de sanções acessórias, que a experiência mostra serem as mais adequadas ao particular tipo de agente de se trata e que permitem uma correcta individualização. Cumpre referir, a propósito, que as sanções acessórias susceptíveis de implicar privação de direitos, nomeadamente profissionais, nunca são previstas como efeito necessário da pena principal, em consonância com o nº 4 do artigo 30º da Constituição da República Portuguesa. A sua aplicação dependerá das circunstâncias de cada caso e ficará entregue ao critério do julgador.'
5. – No caso dos autos, o arguido foi condenado pela prática de um crime contra a saúde pública, especificamente dirigido contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios, prevendo a lei, como se referiu, para além da punição do crime, a aplicação da pena acessória de publicação da sentença (nº 4 do artigo 24º), a qual deverá ser feita de acordo com o artigo 8º do diploma.
Entende o recorrente que a norma em causa, tal como foi aplicada na decisão recorrida, é ilegal por violar o nº 1 do artigo 65º do Código Penal. Porém, desta questão não pode o Tribunal conhecer: de facto, a competência do Tribunal para as questões de ilegalidade está delimitada nas alíneas a), b( e c) do nº2 do artigo 280º da Constituição. Ora, o caso em apreço não se pode inserir em nenhuma destas alíneas, pelo que o Tribunal conhecerá apenas da questão de constitucionalidade que vem suscitada.
6. – De acordo com o recorrente, esta questão de constitucionalidade resulta de a pena acessória de publicação da sentença ter sido imposta de forma automática, sem fundamentação, em violação do nº4 do artigo 30º da Constituição, segundo o qual 'nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos'.
O Tribunal Constitucional tem-se pronunciado pela inconstitucionalidade das normas que impõem a perda de direitos civis, profissionais e políticos como efeito necessário e automático da condenação em certas penas e por certas infracções, por violação do artigo 30º, nº4, da Constituição, por se entender que, com tal norma a Constituição pretendeu proibir que, em resultado de quaisquer condenações penais se produzam, de forma automática e pura e simplesmente ope legis, efeitos que envolvam a perda daqueles direitos (veja-se, neste sentido, o Acórdão nº 362/92, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 23º V., pág. 489 e a jurisprudência anterior aí citada).
No caso em apreço, o facto de no artigo 8º se estabelecer que, relativamente aos crimes previstos no diploma podem ser aplicadas diversas penas acessórias, entre as quais a de publicitação da decisão condenatória, mostra logo que a aplicação de tal pena não decorre automaticamente da lei, ainda que no artigo 24º (tal como noutras disposições do mesmo diploma – artigos 22º, nº5; 23º, nº4; 25º, nº3; 28º, nº6; 30º, nº4; 31º, nº3; 32º, nº 3; 35º, nº5; 37º, nº5; 38º, nº5 e 40º, nº4)) se determine que 'a sentença será publicada'.
Desta referência legal apenas decorre que a pena acessória em causa, quando a lei a menciona, tem de ser sempre aplicada desde que seja aplicada a pena principal de prisão ou multa. Mas desta imposição legal não resulta qualquer colisão com a proibição da automaticidade. É que, face ao tipo de crime que está em causa – crimes contra a saúde pública (artigo 22º ) ou contra a economia (artigo 24º) – e aos relevantes interesses colectivos protegidos pelas infracções previstas no diploma e ainda face aos graves danos materiais e morais provocados pela criminalidade económica, a publicitação da decisão condenatória aparece como particularmente adequada, em especial se concebida como pena acessória, à realização da protecção da condições sociais indispensáveis ao viver comunitário, que podem ser profundamente afectadas pelos crimes em causa.
Atenta a natureza das infracções apuradas e constantes da decisão condenatória, considerando a elevada danosidade social dos comportamentos identificados a pena acessória da publicação da condenação surge como adequada e necessária.
É certo que a decisão de 1ª instância aplica tal pena acessória para ser cumprida 'após o trânsito' e sem formular uma fundamentação autónoma. Porém, a decisão recorrida – o acórdão da Relação de Coimbra – utiliza já uma fundamentação própria para justificar tal pena acessória e a manutenção da decisão recorrida.
O facto de nessa decisão de entender que 'a imposição na sentença da respectiva publicação é obrigatória' citando, neste sentido, um outro acórdão da mesma Relação, não permite concluir que se trata aqui de uma consequência automática da pena ou da infracção.
Com efeito, a aplicação da pena acessória em questão, encontra o seu fundamento na prova do ilícito em que se funda a pena principal e na prova da respectiva culpa, não sendo necessário para a sua aplicação a prova de quaisquer outros factos suplementares.
Existe, por isso, uma conexão bastante entre o ilícito praticado e a necessidade de conhecimento da prática da infracção e dos seus agentes na área em que ocorreu, para protecção dos interesses colectivos e sociais afectados pela violação, conexão essa que justifica a aplicação acrescida da pena acessória da publicitação da decisão.
Não ocorre, consequentemente, qualquer aplicação automática ou por mero efeito ope legis, da norma que manda publicar a decisão condenatória de um crime contra a saúde pública e/ou de um crime contra a economia, o que vale por dizer que não existe qualquer inconstitucionalidade, por violação do nº4 do artigo 30º da Constituição, na norma do artigo 24º, nº4, do Decreto-lei nº 28/84, de 20 de Janeiro.
Deste diploma, já o Tribunal Constitucional tinha apreciado uma outra norma – o artigo 36º, nº4 – que tem exactamente o mesmo conteúdo da norma que acabou de se apreciar, tendo concluído que a norma questionada não violava nem o princípio da igualdade, nem o princípio da necessidade, nem o direito à reserva da intimidade privada (cf. O Acórdão nº
480/98, in 'Diário da República', IIª Série, de 25 de Novembro de 1999).
III – DECISÃO:
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma do nº4 do artigo 24º do Decreto-Lei nº 28/84, de
20 de Janeiro, e, em consequência, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
15 UC’s.
Lisboa, 29 de Novembro de 2000 Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida