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Processo nº 562/2000 Conselheiro Messias Bento
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
Recorrente(s): A. R.
Recorrido(s): Ministério Público I. Relatório:
1. O recorrente vem reclamar para a conferência da decisão sumária, que negou provimento ao recurso por si interposto do acórdão da Relação do Porto, de 7 de Junho de 2000, no qual pediu a apreciação da constitucionalidade da
'interpretação e aplicação, na decisão recorrida, das normas dos artigos 3º, 7º e 24º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro', as quais, em seu entender
(disse-o na resposta ao convite que lhe foi feito nesse sentido), violam o artigo 168º, nºs 1, alínea a), e 2, da Constituição da República Portuguesa, uma vez que – precisou – excedem o âmbito, o objecto e o sentido da autorização legislativa concedida ao Governo pela Lei nº 12/83, de 24 de Agosto.
O recorrente insiste na reclamação em que o Governo editou o citado artigo 24º sem autorização parlamentar, uma vez que – diz – o ilícito nele previsto não é um crime contra a saúde pública, nem contra a economia, mas um 'crime contra a qualidade do produto alimentar' – é dizer: 'um subtipo dos crimes contra a saúde que vinha tipificado como mero ilícito contraordenacional no Decreto-Lei nº
191/83'. O MINISTÉRIO PÚBLICO, respondendo, disse:
1 – É manifesta a improcedência da reclamação deduzida.
2 – Assentando a artificiosa – e absurda – construção do reclamante na tentativa
– obviamente condenada ao insucesso – de procurar demonstrar que não são infracções anti-económicas e contra a saúde pública as que se traduzem em, nos termos do artigo 24º do Decreto-Lei nº 28/84, certo comerciante deter bens impróprios para consumo.
3 – Cumprindo, deste modo, confirmar inteiramente a douta decisão sumária proferida nos autos.
2. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. Escreveu-se na decisão sumária: A questão de constitucionalidade que os autos propõem é uma questão simples, porquanto já anteriormente foi decidida pelo Tribunal, como vai ver-se. No tocante aos artigos 3º e 7º do Decreto-Lei nº 28/84, pretende o recorrente que é 'a extensão e criação da responsabilidade criminal às sociedades, outras pessoas colectivas e patrimoniais' que 'excede o âmbito, objecto e sentido da autorização'. Ora, este Tribunal já teve ocasião de decidir, designadamente no acórdão nº
302/95 (publicado no Diário da República, II série, de 29 de Julho de 1995), que
'não existe qualquer excesso no uso da autorização legislativa, quando o Governo previu a possibilidade de as pessoas colectivas (e equiparadas) poderem ser responsabilizadas criminalmente', uma vez que, para prever essa responsabilidade, 'não se tornava necessário que a lei de autorização legislativa o dissesse expressamente: autorizar o Governo a ‘alterar os regimes em vigor, tipificando novos ilícitos penais’ no domínio das infracções contra a economia e a saúde pública, é permitir-lhe que criminalize condutas que violem os respectivos valores ou bens jurídicos, responsabilizando quem puder ser responsabilizado, seja pessoa física ou moral'. Tal autorização 'conglobava, assim, a possibilidade (melhor ainda, uma injunção política) de o Governo prever a responsabilidade criminal das pessoas colectivas (e equiparadas)'. Também agora se conclui – e pelos fundamentos que in extenso se aduziram naquele acórdão nº 302/95, para os quais se remete – que os citados artigos 3º e 7º não excederam o objecto, o sentido ou a extensão da autorização legislativa constante da Lei nº 12/83, de 24 de Agosto; e que, por isso, não violam a reserva parlamentar atinente à definição de crimes e penas [artigo 168º, nº 1, alínea c), da Constituição, na versão de 1982, que é a aplicável no caso], nem qualquer outra. Quanto ao artigo 24º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, sustenta o recorrente que, ao criar um crime 'contra a confiança do consumidor', em que 'os valores protegidos são a confiança de quem entra na relação comercial com o agente', o Governo tipificou conduta 'que nada tem a ver com o âmbito, objecto e sentido da autorização legislativa', pois que criou um ilícito que não é contra a saúde pública, nem delito antieconómico; e, assim, invadiu, inautorizadamente, a reserva parlamentar. No citado acórdão nº 302/95, a propósito dos tipos de crime previstos nos artigos 36º e 37º daquele Decreto-Lei nº 28/84, este Tribunal já teve ocasião de sublinhar que «o Governo, ao prever estes novos tipos de crime, mais não fez, porém, do que utilizar – e utilizar correctamente – a autorização que a Assembleia da República lhe concedera, justamente para ‘tipifica(r) novos ilícitos penais [...]’». Acrescentou que, «ao definir estes novos tipos de crimes, não excedeu (nem desrespeitou) o objecto, o sentido ou o âmbito da autorização; antes os cumpriu. E, por isso, não violou ele o artigo 168º, nº 1, alínea c), da Constituição, que reserva à Assembleia da República – que, no entanto, pode autorizar o Governo a legislar – a produção de normas sobre
‘definição de crimes, penas [...]’». Também aqui há que concluir pela inexistência de violação da reserva parlamentar. De facto, o Governo, ao definir o crime do artigo 24º do Decreto-Lei nº 28/84, no qual, segundo o acórdão recorrido 'está [...] em causa a impropriedade [dos bens] para consumo' (na formulação do recorrente, a confiança do consumidor), não excedeu a autorização que a Assembleia lhe concedeu. Esta autorizou-o, com efeito, a 'alterar os regimes em vigor, tipificando novos ilícitos penais e contravencionais, definindo novas penas, ou modificando as actuais, tomando para o efeito, como ponto de referência a dosimetria do Código Penal, nas seguintes
áreas: a) em matéria de infracções antieconómicas e contra a saúde pública'. Ora, não se vê como é que um crime como o do citado artigo 24º, em que se protege a confiança do consumidor, pode ser considerado um ilícito estranho ao domínio do direito penal económico. Concluindo-se pela inexistência de inconstitucionalidade, há que negar provimento ao recurso interposto.
4. Antes de mais, sublinha-se que, contrariamente ao que o reclamante parece sugerir, a Lei nº 12/83, de 24 de Agosto, não dispôs que o Governo, 'ao alterar os regimes em vigor' no domínio das infracções contra a saúde pública, se guiasse pelo Código Penal para tipificar os ilícitos penais: desde logo, porque, se apenas pudesse proceder a uma 'importação' desses ilícitos, deixaria de poder criar novos tipos penais. Ora, ele ficou autorizado a fazê-lo ('tipificando novos ilícitos penais', lê-se no artigo 1º da dita lei). O que a Assembleia mandou foi que, na definição de 'novas penas' ou na modificação das então vigentes, o Governo tomasse 'como ponto de referência' a dosimetria desse Código.
Deixada esta nota, há que dizer que o reclamante não tem razão quando, para concluir que o Governo criou um tipo penal desmunido de autorização parlamentar, sustenta que o mencionado artigo 24º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, define um crime que não é um ilícito penal contra a economia, nem contra a saúde pública.
Na verdade, pune-se aí 'quem [...] vender [...], quando destinados ao consumo público, géneros alimentícios [...] anormais não considerados susceptíveis de criar perigo para a vida ou para a saúde e integridade física alheias'. Pune-se, tanto quando esses géneros alimentícios são 'falsificados', como quando estão
'corruptos' ou 'avariados'.
Ora, na linha do que a tal propósito se escreveu na decisão sumária, não se vê que uma tal infracção seja tão estranha ao domínio das infracções contra a saúde pública e contra a economia, que o legislador estivesse impedido de tipificar como crime os comportamentos que descreve nesse artigo 24º e de arrumar tal ilícito na subsecção dos crimes contra a economia, fazendo uso da autorização que lhe foi concedida para criar novos tipos de ilícito nesse domínio do direito penal secundário.
É, assim, insustentável a tese do reclamante de que o dito artigo 24º foi editado à margem da autorização legislativa concedida pela Lei nº 12/83, de 24 de Agosto. Tal autorização permitia que o Governo criasse o tipo penal aí plasmado, pois algum sentido útil ela haveria de ter, quando o habilitou a tipificar novos tipos de ilícito.
Há, por conseguinte, que indeferir a reclamação apresentada contra a decisão sumária de improvimento do recurso.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). indeferir a reclamação apresentada; e, em consequência, confirmar a decisão sumária que negou provimento ao recurso;
(b). condenar o reclamante nas custas, com 15 unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 22 de Novembro de 2000 Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida