Imprimir acórdão
Proc. nº 319/00 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – S.,Lda, identificada nos autos, interpõe recurso para este Tribunal, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 (LTC), do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 150/51, pretendendo que o Tribunal aprecie a inconstitucionalidade do artigo 34º da Convenção Relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, ratificada por Decreto do Presidente da República nº 51/91 e aprovada pela Assembleia da República pela Resolução nº 33/91, ambos publicados no Diário da República de 30 de Outubro de 1991, comummente designada por Convenção de Bruxelas, e de ora em diante apenas referida como Convenção, por violação do princípio do contraditório, 'recolhido' no artigo 16º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Nas suas alegações, apresentou as seguintes conclusões:
1 – Evidencia o próprio teor escrito do artigo 34º da Convenção de Bruxelas que o mesmo afasta, directamente, a aplicação do princípio do contraditório na fase processual que surge com o pedido de reconhecimento de executoriedade da sentença proferida perante jurisdição estrangeira:
2 – Estando tal norma constante da Convenção de Bruxelas sujeita à fiscalização da sua constitucionalidade (artºs 8º, 227º, nº 1, 207º, 278º, nº 1 e 281º da Constituição da República Portuguesa) a verificação da violação do princípio do contraditório, que o texto fundamental recolhe, implica a determinação da viabilidade e da oportunidade da excepção ao mesmo princípio que ele consagra;
3 – Com efeito, impondo-se o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, salvo em caso de justificada e manifesta necessidade, só se admitindo a preclusão do mesmo para salvaguarda do efeito útil da medida judicial requerida, constata-se que não existe qualquer razão, designadamente as invocadas nos autos, que constitua motivo ponderoso para o afastamento do contraditório, tal como processualmente propendido pelo artigo 34º da Convenção de Bruxelas;
4 – De facto, o 'efeito surpresa a que aludem alguns autores não fundamenta a mesma exclusão, desde logo porque o mesmo inexiste, de facto, pois a própria Convenção faz depender o reconhecimento de prévia citação da requerida, não se podendo conferir um estigma de relapso a quem recusa, pelos mais diferentes motivos, um pagamento que lhe é exigido por uma jurisdição estrangeira;
5 – Do mesmo modo que, impondo-se, omnipresentemente, o princípio do contraditório em todas as fases do processo, não é bastante para suprir a efectiva inconstitucionalidade agora suscitada a alegação de que antes ou depois o contraditório será assegurado por via do chamamento da parte contrária ao processo, quer em sede de recurso, quer em sede de oposição à execução.
6 – Donde se concluir pela violação do princípio do contraditório, princípio essencial de direito, como tal recolhido pelo artigo 16º da Constituição da República Portuguesa, pelo artigo 34º da Convenção de Bruxelas, e pela sua inerente inconstitucionalidade.
A recorrida A.,Gmbh pugnou, em contra-alegações, pelo improvimento do recurso.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – Resulta dos autos o seguinte:
a) A ora recorrida requereu no 5º Juízo Cível de Lisboa, com invocação do disposto no artigo 31º da Convenção, a executoriedade das seguintes decisões proferidas pelo Tribunal de Primeira Instância de Wisbaden contra a recorrente:
- sentença decretada em 19/3/96 e que condenou a requerida a pagar à requerente a quantia de 15.769,72 marcos alemães, equivalente a 1.608.511$00, acrescida de 13,75% de juros a partir de 16/5/93, devida por fornecimento de produtos;
- decisões de 3/6/96 e de 5/2/97 que condenaram a requerida, respectivamente, em 319.657$00, com juros a 4% desde 13/5/96 e em 73.950$00, com juros à mesma taxa a contar de 13/5/96, quantias estas relativas a custas do mesmo processo, que a requerente pagou, ficando com direito de regresso contra a parte vencida.
b) O tribunal de 1ª instância julgou procedente a pretensão da requerente e declarou a executoriedade das referidas decisões.
c) Inconformada, a S.,Lda recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de fls. 92 e segs, confirmou a sentença de 1ª instância.
d) De novo inconformada, a S.,Lda. recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, igualmente sem ganho de causa.
e) Em ambas as instâncias, a recorrente arguiu a inconstitucionalidade do citado artigo 34º da Convenção.
3 – Como se deixou dito, a recorrente invoca o artigo 16º da CRP como norma que acolhe o princípio do contraditório como princípio fundamental inscrito fora da Constituição.
Sem por em causa esta construção, a que subjaz o entendimento, entre outros, de Gomes Canotilho e Vital Moreira in 'Constituição da República Portuguesa' Anotada, 2ª ed., I vol. p. 92, citado pela recorrente, certo é que este Tribunal tem sustentado que aquele princípio resulta directamente de outros preceitos constitucionais, designadamente o artigo 2º enquanto consagra o princípio do Estado de direito democrático e, em especial, o artigo 20º nºs 1 e
4 como preceito que estabelece o direito de acesso aos tribunais e o direito a um processo equitativo (cfr. Acórdão nº 259/00, de 2 de Maio de 2000, inédito e arestos aí citados).
Aceitando, deste modo, que o princípio do contraditório tem dignidade constitucional, vejamos, então, se, como a recorrente defende, a norma do artigo 34º da Convenção ofende esse princípio, para o que importa desde já alinhar alguns dos traços fundamentais do processo onde se inscreve aquela norma.
A Convenção regula, no seu Titulo II, Secções II e III, um processo que visa a declaração de exequibilidade e o registo para execução de decisões proferidas nos Estados contratantes. Tais decisões podem, pois ser executadas noutro Estado contratante desde que este, previamente, mediante requerimento do interessado e no referido processo, as declare executórias (artigo 31º).
O requerente deve instruir o seu pedido com os documentos referidos nos artigos 46º e 47, ou seja, certidão da decisão que satisfaça os necessários requisitos de autenticidade, original ou cópia autenticada do documento que certifique que o acto que determinou o início da instância ou um acto equivalente foi comunicado ou notificado à parte revel (se se tratar de decisão proferida à revelia), documento comprovativo de que, segundo a lei do Estado de origem, a decisão é executória e foi notificada, documento comprovativo de que o requerente beneficia de assistência judiciária no Estado de origem (se for caso disso).
O tribunal requerido decidirá 'em curto prazo, não podendo a parte contra a qual a execução é promovida apresentar observações nesta fase do processo' (artigo 34º); a decisão será imediatamente levada ao conhecimento do requerente (artigo 35º).
Sendo conferido o exequatur à decisão, a parte contra a qual a execução é promovida, pode interpor recurso (artigo 36º) 'de acordo com as regras do processo contraditório' para o tribunal da relação (em Portugal), podendo ainda ser impugnada a decisão do recurso, impugnação esta restrita à matéria de direito (também em Portugal) (artigos 36º e 37º).
Durante o prazo de recurso e na pendência deste, apenas se podem tomar medidas cautelares sobre os bens da parte contra a qual a execução foi promovida (artigo 39ª); o recorrente pode, ainda, pedir a suspensão da instância se a decisão estrangeira a executar for no Estado de origem objecto de recurso ordinário ou estiver em curso o prazo para o interpor (artigo 38º)
O indeferimento do requerimento apenas pode ter por fundamento o disposto nos artigos 27º e 28º da Convenção.
Ofenderá a norma do artigo 34º, no segmento em que impede a parte contra a qual é promovida a execução de 'apresentar observações', o princípio do contraditório ?
O Tribunal Constitucional deu já resposta negativa a esta questão no Acórdão nº 366/2000, Nele se entendeu, por remissão para o Acórdão nº 304/2000 de 16 de Junho de 2000, que o recurso de constitucionalidade interposto era mesmo inadmissível por manifestamente infundado.
Tomando, como base, o recorte dado ao princípio pelo artigo 3º do CPC, escreveu-se no supra citado Acórdão nº 259/2000:
'Como o processo civil tem uma estrutura dialéctica ou polémica revestindo a forma de um debate ou discussão entre as partes (audiatur et altera pars) o juiz não pode, em regra, tomar qualquer providência contra determinada pessoa, sem que ela seja previamente ouvida. Excepcionalmente, porém, pode o juiz diferir a audição do requerido para momento ulterior ao decretamento da providência peticionada. Necessário é, contudo, que o deferimento se possa justificar materialmente por razões de eficácia e de celeridade e não limite ou restrinja, de forma intolerável, o direito de defesa.'
No caso, não se põe em causa, que a decisão que confere o exequatur
é proferida em 1ª instância, sem que a parte contra a qual é decretado seja previamente ouvida. E, nesta medida, não sobram dúvidas de que a regra da audição prévia do interessado (prévia ao decretamento de uma providência) não é observada – ela não pode bastar-se com a intervenção da parte em sede de recurso.
A verdade, porém, é que outros interesse e direitos com tutela constitucional devem, no caso ser atendidos.
Desde logo a celeridade processual – a prontidão da justiça – tanto mais justificada no caso quanto a definição do direito exequendo já foi objecto de outra decisão onde a parte exerceu, ou poderia ter exercido, o direito de contraditório.
Por outro lado, o direito do requerente a não ver frustrada a execução de uma decisão que lhe foi favorável, o que a prévia audição da parte contra a qual se pretende mover a execução poderia provocar (pretende-se o que Teixeira de Sousa e Dário Vicente, in 'Comentário à Convenção de Bruxelas', p. 157, chamam de
'efeito--surpresa' para 'evitar (...) que o demandado subtraia os seus bens à execução'); note-se, aliás, que a não citação do requerido se afigura como decorrência lógica da proibição de 'apresentar observações', pelo que não parece legítimo argumentar-se com o facto de a norma convencional não proscrever, expressamente, tal citação.
Tudo isto – a que acresce a própria natureza do processo em causa que, numa fase prévia à execução, apenas assegura a exequibilidade da decisão estrangeira, sem revisão de mérito – não justificaria, contudo, a total eliminação do direito de defesa.
E é aqui que se deve fazer relevar o recurso consagrado no artigo 36º da Convenção (que ele próprio diz ser interposto 'de acordo com as regras do processo contraditório' e pode ser exercido em duplo grau de jurisdição – artigo
37º, última parte), onde são invocáveis os fundamentos de recusa do exequatur que os artigos 27º e 28 prevêem, tal como, no essencial, aconteceria em fase prévia à decisão; foi, aliás, o que a recorrente fez, invocando, mas sem êxito, a violação do artigo 27º nºs 2 e 3 da Convenção.
Na verdade, embora como forma condicionada ou constrangida do contraditório, o recurso permite, nos termos da Convenção, uma defesa bastante dos direitos da parte contra a qual se pretende executar a decisão estrangeira. Mais ainda: apenas autorizadas, na pendência do recurso, medidas cautelares sobre os bens do executado, essa defesa, se procedente, tem garantia de eficácia - nenhuma afectação irreversível do património do recorrente se produz entretanto.
Em suma, pois, a específica configuração do 'contraditório' no processo, enquanto relegado para a fase do recurso, tem uma justificação racional e constitucionalmente admissível – a celeridade do processo e a cobertura do risco de desaparecimento dos bens do executado – num contexto em que as garantias de defesa foram asseguradas no processo de que emergiu a decisão estrangeira e onde o recurso é ainda meio adequado e eficaz para o executado obstar a um exequatur indevido.
Não se mostra, assim violado o princípio do contraditório, decorrência do princípio do Estado de direito democrático e inerente aos direitos de acesso aos tribunais e a um processo justo e equitativo (artigos 2º e 20º nºs 1 e 4 da CRP).
4 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs. Lisboa, 29 de Novembro de 2000 Artur Maurício Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida