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Procº nº 595/00
1ª secção Consº Vítor Nunes de Almeida
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
1. – AA veio reclamar do despacho que, no Supremo Tribunal Militar, lhe indeferiu o requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional.
Fundamentou a reclamação no seguinte encadeamento argumentativo:
· o reclamante foi julgado e condenado no 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa no dia 15 de Março de 2000;
· confrontado com a ilegibilidade do acórdão, o defensor requereu a transcrição dactilográfica da decisão para poder interpor recurso, o que foi deferido;
· a cópia da decisão em causa foi entregue no dia 30 de Março de 2000, tendo o reclamante interposto recurso do acórdão condenatório em 3 de Abril seguinte;
· o Supremo Tribunal Militar (STM), por acórdão de 8 de Junho de 2000, rejeitou liminarmente o recurso, por intempestividade, uma vez que de acordo com o disposto no artigo 411º, nº1, do Código de Processo Penal (CPP), 'o prazo findara em 30 de Março';
· o reclamante, em 16 de Junho de 2000, veio requerer a reforma do acórdão, pedido este que foi indeferido por despacho de 29 de Junho de 2000;
· em 10 de Julho seguinte foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão de fls 354, dos autos;
· por despacho de 14 de Julho de 2000, tal recurso não foi admitido, invocando o STM que o recorrente não tinha suscitado a inconstitucionalidade da aludida norma, 'o que poderia ter feito nas alegações de recurso. De facto, o STM por entender que, mesmo no caso de ser pedida e deferida, a transcrição dactilográfica da decisão de que se pretende recorrer, o início da contagem do respectivo de recurso é o momento do depósito da decisão na secretaria e não a data de entrega da cópia dactilografada.
Face ao acórdão que rejeitou liminarmente o recurso para o STM, o reclamante veio pedir a reforma de tal acórdão, tendo fundamentado o pedido de reforma com a invocação de que é «jurisprudência pacífica» o entendimento de que, 'no caso de o interessado ter solicitado cópia da decisão ao abrigo do disposto no nº 4 do artigo 94º do CPP, o prazo para a interposição do respectivo recurso conta-se a partir da data da entrega ou recebimento dessa cópia' - Acórdão da Relação do Porto de 94-03-16, proc.934 001 072.'
Suscita depois o requerente, no mesmo pedido, a questão da inconstitucionalidade do artigo 94º, nº4, por violação das garantias de defesa e princípio da confiança decorrente da ideia do Estado de direito democrático, consignados nos artigos 32º, nº1 da CRP e 2º da CRP, se interpretado no sentido de não abrir prazo para a interposição de recurso com a entrega da cópia dactilografada requerida.
Por acórdão de 29 de Junho de 2000, o STM indeferiu o pedido de reforma formulado por entender inexistir qualquer «lapso manifesto» no acórdão de fls. 354 e, quanto à invocada inconstitucionalidade, por considerar que dela não pode agora conhecer por não ter sido arguida durante o processo e antes de a norma ser aplicada, sendo certo que, a existir tal inconstitucionalidade, não traduz o «manifesto lapso» que pode fundamentar o pedido de reforma do acórdão.
2. - Inconformado com tal decisão, AA interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade do
'artigo 411º, nº1, do CPP, na interpretação de que, caso o interessado tenha solicitado cópia dactilografada da decisão, ao abrigo do disposto no nº4 do artigo 94º do CPP, o prazo de interposição do respectivo recurso, conta-se a partir do depósito na secretaria e não a partir da data de entrega ou recebimento pelo interessado dessa cópia.'
O recurso de constitucionalidade não foi recebido por o recorrente não ter suscitado durante o processo a questão de constitucionalidade, podendo tê-lo feito nas alegações para o STM.
É desta decisão que vem a presente reclamação.
3. - O Ministério Público teve vista dos autos e aí exarou o seguinte parecer:
'O art. 288º, nº3, do CPC proclama, de forma explícita, o princípio segundo o qual as notificações são sempre acompanhados de todos os elementos e de cópias legíveis dos documentos e peças do processo necessários à plena compreensão do seu objecto. Esta regra de plena intelegibilidade do objecto de qualquer notificação judicial pelo respectivo destinatário constitui emanação do próprio direito de acesso à justiça (cf. ac. 444/91) e tem de valer, por maioria de razão no âmbito do processo penal, subordinado ao princípio constitucional da plenitude das garantias de defesa do arguido. Daqui decorre que certa decisão jurisdicional apenas se pode considerar notificada aos interessados quando se lhes tenha facultado efectiva oportunidade para acederem ao teor integral da decisão jurisdicional em causa – e apenas se iniciando o prazo para o exercício dos meios impugnatórios previstos na lei quando se torne inteligível para a parte ou sujeito processual, de modo integral, a decisão proferida e os respectivos fundamentos. Nesta perspectiva, não podia exigir-se ao recorrente, no caso dos autos, que antecipasse a solução adoptada pelo STM – e traduzida em contar o prazo de interposição do recurso, em processo penal militar, não do momento em que se lhe tornou inteligível o teor de uma decisão condenatória – mas do depósito na secretaria de uma decisão manuscrita, que o próprio Tribunal considerou padecer de 'manifesta inteligibilidade', autorizando a consequente transcrição dactilográfica. Deste modo, verificam-se, no caso dos autos, as circunstâncias legitimadoras da dispensa do ónus de suscitação da questão de constitucionalidade antes da prolacção da decisão recorrida – o que conduz ao deferimento da presente reclamação.'
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
4. – A presente reclamação vem levantada do despacho que não admitiu o recurso de constitucionalidade por o recorrente não ter suscitado tal questão durante o processo, nem se estar perante um caso de uma interpretação normativa inesperada ou anómala.
De facto, o STM no acórdão que não admitiu o recurso interposto da decisão do 1º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, aplicou o artigo 411º numa interpretação 'meramente declarativa', aplicando a norma com o seu sentido literal – o que é correcto.
Porém, o STM aplicou a norma do artigo 411º, nº1 do CPP com o seu sentido literal a uma situação em que o recorrente tinha solicitado, para efeitos de recurso, que lhe fosse fornecida uma cópia da decisão de que pretendia recorrer e que estava manuscrita de tal forma que se tornava patentemente ilegível, pedido este que foi atendido.
Ora, o Tribunal Constitucional já decidiu (Acórdão nº
444/91, in Acórdão do Tribunal Constitucional, 20º Vol., pág. 495) que o direito das partes de um processo judicial conhecerem as decisões que lhes digam respeito e, bem assim, os respectivos fundamentos, é um corolário do direito de acesso aos tribunais e ao direito.
Após a revisão do processo civil de 1995, no respectivo Código introduziu-se um preceito inovador, no qual se determina que 'a citação e as notificações são sempre acompanhadas de todos os elementos e de cópias legíveis dos documentos e peças do processo necessárias à plena compreensão do seu objecto'. Tal disposição constitui a concretização constitucional do direito
á informação efectiva das partes sobre o conteúdo dos despachos, sentenças e acórdãos, tendo o Tribunal considerado no acórdão acima citado que tal concretização só se realiza se o critério de legibilidade deve ser colocado nas mãos dos destinatários.
Consequentemente, não pode deixar de se entender que uma decisão judicial só se pode considerar notificada quando o interessado tenha tido a efectiva oportunidade de conhecer o conteúdo integral da decisão, só podendo começar a contar-se o prazo para reagir contra tal decisão a partir do momento da notificação assim entendida.
5. – No caso em apreço, como se referiu, o recorrente pediu o envio de cópia dactilografada da sentença, por manifesta ilegibilidade do texto, tendo tal pedido sido deferido, o que foi alegado pelo recorrente nas alegações do recurso para o STM, a decisão deste Supremo Tribunal de aplicar o artigo 411º, nº1 do CPP, na sua interpretação literal, afastando expressamente o facto de ter sido pedida e concedida a transcrição dactilográfica da sentença, com a simplista consideração de que o prazo de interposição do recurso é peremptório e o facto alegado não conduz à sua prorrogação.
Ora, uma tal decisão, não estando em causa a natureza do prazo, mas apenas o saber em que momento é que se iniciava a sua contagem é claramente insólita e totalmente imprevista.
Com efeito, de acordo com o que se expôs atrás, à parte só era possível interpor recurso a partir do momento em que dispusesse do conteúdo integral da decisão, o que só aconteceu no dia 30 de Março de 2000, como decorre dos autos, pelo que a interpretação adoptada não pode deixar de ser considerada como insólita e surpreendente.
O recorrente suscitou a questão de constitucionalidade no pedido de reforma do acórdão do STM, relacionando a norma do prazo de recurso
– mas sem a referir – com a norma que permite pedir a transcrição da decisão quando a produzida é ilegível. O recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do nº1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC).
Assim, o recurso devia ser admitido desde que a questão tenha sido suscitado durante o processo e a decisão tenha aplicado a norma questionada. No caso, mesmo admitindo que a questão de constitucionalidade não foi suscitada antes de ser proferida a decisão de não admissão do recurso penal, o certo é que, como se referiu, as circunstâncias ocorridas justificam a admissibilidade do recurso de constitucionalidade.
Na verdade, o insólito da decisão, ao arrepio da jurisprudência citada, integra uma situação que legitima a dispensa do ónus de suscitação da questão de constitucionalidade antes de se proferida a decisão de que se recorre, pois não era admissível a exigência da previsão de uma tal decisão.
Nestes termos, a presente reclamação tem de ser deferida e admitido o recurso interposto para apreciação da constitucionalidade do artigo
411º, nº1, do CPP e do artigo 94º, nº4, também do CPP, se interpretados no sentido de não se abrir o prazo de interposição do recurso penal com a entrega da requerida cópia dactilografada da sentença.
De acordo com o exposto, o Tribunal Constitucional decide deferir a presente reclamação.
Lisboa, 29 de Novembro de 2000 Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida