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Processo n.º 569/12
Plenário
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional
Relatório
O Representante da República para a Região Autónoma da Madeira requereu ao Tribunal Constitucional, nos termos dos n.ºs 2 e 3, do artigo 278.º, da Constituição da República Portuguesa (Constituição), e dos artigos 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), a apreciação da conformidade com a Constituição das normas constantes dos artigos 1.º e 2.º do Decreto que “assegura a devolução proporcional dos descontos realizados pelos trabalhadores da ANAM para um fundo social criado em 1993”, aprovado pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, em sessão plenária de 17 de julho.
O pedido de fiscalização de constitucionalidade apresenta a seguinte fundamentação:
«[…]
I – Enquadramento normativo
1.º
O decreto remetido para assinatura e publicação como decreto legislativo regional visa, de harmonia com o seu artigo 1.º, devolver verbas depositadas num Fundo Social a trabalhadores da ANAM – Aeroportos e Navegação Aérea da Madeira, S.A., determinando, de acordo com o artigo 2.º, o prazo para entrega dos respetivos valores.
2.º
O artigo 1.º do decreto que se submete à sindicância do Tribunal Constitucional dispõe o seguinte:
“Artigo 1.
Objeto
O presente Decreto Legislativo Regional visa atribuir e devolver, de forma definitiva, as verbas depositadas no Fundo Social criado em 1993 por Despacho Conjunto da Secretaria Regional de Economia e Cooperação Externa e Secretaria dos Assuntos Sociais, aos trabalhadores que efetuaram os respetivos descontos, ou em caso de falecimento dos respetivos titulares a entrega deverá ser feita aos respetivos herdeiros legais.”
3.º
Por seu turno, o artigo 2.º do decreto em apreciação determina o seguinte:
“Artigo 2.º
Prazo
Para efeitos do artigo 1.º, a ANAM, no prazo máximo de 60 dias a contar da data de publicação deste diploma, procederá à respetiva entrega dos valores depositados.”
4.º
Por último, o artigo 3.º do diploma dispõe que a entrada em vigor ocorre no dia seguinte ao da sua publicação.
5.º
De acordo com o preâmbulo do diploma sob escrutínio, a criação de um Fundo Social na então Direção Regional de Aeroportos encontrava-se prevista na cláusula 140.º do Acordo de Trabalho, aprovada pela Resolução do Conselho de Governo n.º 651/91, de 20 de fevereiro.
6.º
Através de Despacho Conjunto da Secretaria Regional de Economia e Cooperação Externa e da Secretaria dos Assuntos Sociais de 31 de maio de 1993, o referido Fundo foi criado através de normas essenciais, concedendo um prazo de seis meses para a criação do respetivo regulamento.
7.º
Acrescenta o mesmo preâmbulo que, mais tarde, a 15 de março de 1994, o citado Despacho foi revogado, transferindo, todavia, para a ANAM – Aeroportos e Navegação Aérea da Madeira, as negociações constantes da cláusula 140.º do Acordo de Trabalho.
8.º
Por último registe-se, ainda de harmonia com o preâmbulo que vimos acompanhando, que, “segundo um parecer da Secretaria Regional do Plano e Finanças, que teve a concordância da Secretaria Regional da Cultura, Turismo e Transportes, e que é do conhecimento da ANAM, S.A., “(…) a ANAM, S.A., na qualidade de entidade patronal e cocontratante do Acordo de Trabalho relativo a esses trabalhadores, detém legitimidade bastante para deliberar e acordar com esses trabalhadores, no sentido da satisfação e pagamento desses seus créditos. (…) A atribuição, distribuição ou restituição dos montantes em depósito que integram o dito Fundo Social, por constituírem, de facto, créditos dos trabalhadores quotizados, já que são parte integrante da sua remuneração, decorre, diretamente da Lei (artigo 337.º do Código do Trabalho) e, como tal, não depende de quaisquer instruções ou deliberações do governo regional, seja enquanto entidade que tutela o setor ou concedente.”
9.º
Está em causa, no diploma em apreciação, um Fundo Social criado para os trabalhadores da ANAM não oriundos da função pública para o qual descontaram, no período que mediou entre 1991 e 1994, tendo por base 2% dos salários auferidos.
10.º
O Fundo Social a que se refere o diploma em apreço foi criado por despacho conjunto das Secretarias Regionais da Economia e Cooperação Externa e Assuntos Sociais de 31 de maio de 1993, publicado na II Série do Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira, de 11 de junho de 1993, na esteira do previsto na cláusula 140.º do Acordo de Trabalho da ANAM.
11.º
O mesmo Fundo Social dispunha de uma dotação inicial no valor de 40.651.630$00, atribuída por ocasião do início do contrato de concessão de exploração dos Aeroportos da Madeira, iniciado em 9 de julho de 1993.
12.º
O Fundo Social destinava-se à atribuição futura de benefícios sociais em matéria complementar de pensões de reforma por velhice e invalidez aos trabalhadores dos aeroportos da Região Autónoma, não oriundos da função pública.
13.º
Todavia, o Fundo não chegou a ser executado e posto em prática, uma vez que, para além de outros requisitos e formalidades, carecia igualmente de regulamentação que nunca chegou a ser aprovada.
14.º
Pelo que o referido Fundo foi revogado, com efeitos à data da sua criação, por despacho conjunto das Secretarias Regionais da Economia e da Cooperação Externa, de 15 de março de 1994.
15.º
De acordo com o despacho anteriormente referido, de 15 de março de 1994, pretendia-se que “a extinção do fundo não prejudique os direitos adquiridos pelos trabalhadores abrangidos, podendo os seus representantes retomar junto da ANAM as negociações que originaram a cláusula 140.ª do Acordo de Trabalho.”
16.º
Entre janeiro e fevereiro de 1994 foram efetuados acertos e transferências no montante de 570.556$00, equivalente em moeda atual a 2.845,92 Euros, que viria a acrescer à dotação inicial do Fundo.
17.º
Em 15 de abril de 1994, o conjunto das supras indicadas verbas, perfazendo o total de 41.222.186$00, equivalente em moeda atual a 205.615,40 Euros, foi depositado em conta autónoma aberta no BANIF- Banco Internacional do Funchal.
18.º
Desde então, e de acordo com informação obtida, permanece a indicada verba em conta autónoma, vindo esta a manter-se à guarda da ANAM, sem que todavia e até hoje, se tenha logrado obter o destino a dar à mesma.
19.º
Recentemente, em 6 de julho de 2012, a ANAM propôs uma ação declarativa de condenação sob forma de processo ordinário contra incertos tendo em vista apurar o destino a dar ao Fundo (cfr. documento n.º 2 que se junta em anexo).
II – Da violação dos direitos dos trabalhadores
20.º
O diploma sob escrutínio determina que a ANAM, no prazo máximo de 60 dias a contar da data de publicação do diploma, proceda à respetiva entrega dos valores depositados aos trabalhadores que efetuaram os respetivos descontos, ou em caso de falecimento dos respetivos titulares a entrega deverá ser feita aos respetivos herdeiros legais.
21.º
O diploma impõe assim uma injunção a uma empresa, na qualidade de fiel depositária de um Fundo Social de Trabalhadores – a entrega em 60 dias dos valores depositados -, não especificando de que forma ou sequer a quem especificamente devem ser entregues os valores em causa.
22.º
Interferindo, desta forma, em relações jurídicas privadas subjacentes a um Acordo de Trabalho celebrado entre uma empresa (a qual, ainda que formalmente pública, é uma pessoa coletiva de direito privado – cfr. artigo 3.º, n.º 1, alínea a) do Decreto Legislativo Regional n.º 13/2010/M, de 5 de agosto) e alguns trabalhadores dessa empresa (não-oriundos da função pública).
Com efeito,
23.º
A criação do Fundo Social encontra-se prevista na Cláusula 140.ª do Acordo de Trabalho, aprovado por Resolução do Conselho do Governo n.º 651/91, de 20 de Fevereiro, que se aplica a todos os trabalhadores que prestam serviço nos Aeroportos da Região Autónoma da Madeira abrangidos pelo regime de contrato individual de trabalho, com exclusão dos que prestam serviço no setor da navegação aérea.
24.º
O próprio diploma assinala, no preâmbulo, que está em causa uma relação jurídico-privada quando, citando um despacho, refere que “(…) A atribuição, distribuição ou restituição dos montantes em depósito que integram o dito Fundo Social, por constituírem, de facto, créditos dos trabalhadores quotizados, já que são parte integrante da sua remuneração, decorre, diretamente da Lei (artigo 337.º do Código do Trabalho) e, como tal, não depende de quaisquer instruções ou deliberações do governo regional, seja enquanto entidade que tutela o setor ou concedente.”
25.º
De acordo com o projeto de diploma em apreço que nada refere a este propósito, a Comissão de Trabalhadores da ANAM não foi ouvida, o que viola o direito constitucionalmente protegido de participação na elaboração da legislação do trabalho (cfr. artigo 54.º, n.º 5, alínea d) da CRP) ou quando ocorra alteração das condições de trabalho (cfr. artigo 54.º, n.º 5, alínea c) in fine da CRP).
26.º
Estando em causa matéria relacionada com o direito dos trabalhadores, devia ter sido ouvida, nos termos constitucionais, a respetiva Comissão de Trabalhadores.
27.º
O mesmo se diga relativamente às associações sindicais.
28.º
Com efeito, estando em causa a cláusula 140.º do Acordo de Trabalho, competia às associações sindicais exercer o direito de contratação coletiva – e não à Assembleia Legislativa – como decorre do artigo 56.º, n.º 3 da CRP.
Por outro lado,
29.º
As associações sindicais não foram auscultadas no âmbito da preparação do diploma em apreço, encontrando-se, por conseguinte, posto em crise o disposto no artigo 56.º, n.º 2, alíneas a), b) e e), in fine da Constituição.
III - Da violação do princípio da reserva de administração e do princípio da separação de poderes
30.º
A ANAM é uma sociedade anónima detida exclusivamente por capitais públicos sendo juridicamente qualificada como uma empresa pública regional de harmonia com o artigo 3.º, n.º 1, alínea a) do Decreto Legislativo Regional n.º 13/2010/M, de 5 de agosto sendo, não obstante, qualificada como pessoa coletiva de direito privado (assim, cfr. NUNO CUNHA RODRIGUES, “Golden-shares” – As empresas participadas e os privilégios do Estado como acionista minoritário, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, pp. 79-82).
31.º
Nos termos do artigo 7.º do Decreto Legislativo Regional n.º 13/2010/M, de 5 de agosto a ANAM rege-se por aquele Decreto, pelo diploma de criação, respetivos estatutos e pelas normas aplicáveis às sociedades comerciais.
32.º
O que significa que os direitos dos acionistas públicos da ANAM – nomeadamente o Governo Regional da Madeira – são exercidos enquanto titulares do capital social através dos órgãos societários próprios típicos de uma sociedade anónima – maxime a Assembleia Geral – sem prejuízo dos direitos especiais que lhes assistem em virtude da aplicação do Decreto Legislativo Regional n.º 13/2010/M, de 5 de agosto, nomeadamente no tocante à definição de orientações estratégicas (cfr. artigo 11.º do Decreto Legislativo Regional n.º 13/2010/M); de controlo financeiro (cfr. artigo 12.º do mesmo Decreto); deveres especiais de informação e controlo (cfr. artigo 13.º) e obrigações de informação que impendem sobre estas sociedades.
33.º
O exercício da função acionista nas empresas públicas equivale ao exercício de um poder de natureza administrativa que se insere, no caso do Governo da República, no âmbito da respetiva competência administrativa (cfr. artigo 199.º, alínea d) da CRP), podendo afirmar-se o mesmo, mutatis mutandis, no caso do Governo Regional.
34.º
Não pode, por conseguinte, aceitar-se que um órgão legiferante – como a Assembleia Legislativa – aprove uma instrução dirigida especificamente a uma empresa pública – a ANAM – e aos seus trabalhadores na medida em que tal traduz uma invasão do princípio da reserva de administração.
35.º
Esta instrução, porque invadindo o princípio da reserva de administração, contende com o artigo 111.º, n.º 1 da Constituição e o princípio da separação de poderes nele consagrado.
36.º
E não se diga que o diploma em apreço representa uma lei-medida.
37.º
Não se deve confundir lei concreta e geral com ato administrativo sob a forma de lei.
38.º
Como assinala o Tribunal Constitucional no ac. n.º 365/91, de 7 de agosto de 1991, in acs. Do TC, 19.º volume, 1991, p. 151 “uma coisa é (…) a lei individual, ainda reconduzível ao cerne da generalidade, implícita ou indiretamente; outra coisa o ato administrativo sob a forma de lei, simples decisão de um caso concreto e individual, simples aplicação de regra pré-existente e só válida se com ela se conforma.”
39.º
Estamos, no caso do diploma em apreço, perante uma instrução específica e concreta dirigida a uma empresa pública cuja competência para a adoção, atendendo à natureza administrativa, competiria, em abstrato, ao Governo Regional e não à Assembleia Legislativa.
Se não, vejamos:
40.º
O Governo Regional é um órgão dotado de legitimidade e competências constitucionais próprias, cujo estatuto escapa à decisão do legislador ordinário.
41.º
Como bem afirmou o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 214/2011, na esteira do constante do acórdão n.º 24/1998, a propósito do Governo da República, “(…) dentro dos limites da Constituição e da lei, o Governo é autónomo no exercício da função governativa e da função administrativa. Nas zonas de confluência entre atos de condução política e atos de administração a cargo do Governo a dimensão positiva do princípio da separação e interdependência de órgãos de soberania impõe um limite funcional ao uso da competência legislativa universal da Assembleia da República [artigo 161.º, alínea c), da CRP], de modo que esse poder de chamar a si do Parlamento não transmude a forma legislativa num meio enviezado de exercício de competências de fiscalização com esvaziamento, pelo controlo democrático-parlamentar e pela regra da maioria, do núcleo essencial da posição constitucional do Governo enquanto órgão superior da administração pública (artigo 182.º da CRP), encarregado de dirigir os serviços da administração direta do Estado [artigo 199.º, alínea d) da CRP].”
42.º
Este entendimento pode ser transposto, com meridiana clareza, para as relações entre o Governo Regional da Madeira e a Assembleia Legislativa.
43.º
A Assembleia Legislativa não pode adotar determinadas orientações em instrumentos legislativos.
44.º
Note-se que não se trata do exercício, in casu, do poder regulamentar da Assembleia Legislativa, previsto nos artigos 227.º, n.º 1, alínea d) e 232.º, n.º 1 da Constituição e no artigo 39.º do Estatuto Político-Admininstrativo da Região Autónoma da Madeira.
45.º
Em rigor, está em causa a invasão do princípio de reserva de administração.
46.º
Como o Tribunal Constitucional afirmou no acórdão que vimos citando, “a Assembleia pode rejeitar as propostas do Governo, pode negar-lhe instrumentos de governação (v.g. não aprovação do Orçamento, recusa de autorizações legislativas), pode criticá-lo e pode, em último extremo, provocar a sua demissão mediante moções de censura [artigos 194.º e 195.º, n.º 1, alínea f), da CRP]. Pode mesmo adotar leis contrárias ao programa do Governo, alterando as opções primárias do regime jurídico em determinado domínio – mesmo da função pública, com os limites materiais e o previsto no artigo 167.º, n.º 3, da CRP – a que a Administração tem depois de conformar a sua atuação, seja mediante atos individuais de execução, seja no exercício da competência regulamentar. Compete-lhe, como já se referiu, apreciar os atos do Governo e da Administração, sejam eles de natureza normativa ou de aplicação individual e concreta [artigo 162.º, alínea a) da CRP], podendo criticar o modo como essa atividade é desenvolvida e, inclusivamente, dirigir-lhe recomendações, o que aliás fez, mediante as referidas Resoluções n.º 93/2011 e n.º 94/2011. Mas não pode ordenar-lhe a prática de determinados atos políticos ou a adoção de determinadas orientações (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, loc.cit., pág. 414).”
47.º
Está assim em causa uma intromissão intolerável da Assembleia Legislativa na esfera puramente administrativa do Governo Regional, em domínios que são próprios da sua atividade executiva (o exercício da função acionista) detetando-se, por consequência, um desrespeito dos 'limites constitucionais de natureza funcional à liberdade e extensão de conformação do legislador' (expressão de GOMES CANOTILHO, em anotação ao acórdão nº 1/97, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 129º, pág. 82).
48.º
Ao emitir uma instrução para uma empresa pública, a Assembleia Legislativa está a invadir uma competência típica do Governo Regional – o exercício do poder administrativo – interferindo numa esfera de competência que não lhe pertence e que se retira, implicitamente, do disposto nos artigos 227.º e 231.º da Constituição.
49.º
Como observa PAULO OTERO, “se o princípio da separação de poderes (…) garante à Administração Pública um espaço de execução normativa da lei, a verdade é que também deverá inibir o legislador de se transformar em executor individual e concreto das próprias leis.” (in Legalidade e Administração Pública, Almedina, Coimbra, 2003, pp. 732-733).
50.º
Assim, seguindo o raciocínio do mesmo autor, “todas as leis parlamentares que traduzam o exercício de competência administrativa, violando a “reserva de caso concreto” a favor dos órgãos administrativos são, além de organicamente inconstitucionais, materialmente violadoras do princípio da separação de poderes.” (ibidem, p. 734).
51.º
Pelo que a aprovação, pela Assembleia Legislativa, de um diploma contendo uma instrução precisa e objetiva dirigida a uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, porque equivalendo ao exercício de um poder de um acionista público, de natureza tipicamente administrativa, acarreta a deteção de um vício de inconstitucionalidade orgânica e de um vício de inconstitucionalidade material.
52.º
Registe-se, num plano meramente teórico e especulativo, que a competência administrativa do Governo Regional relativamente às empresas públicas regionais está circunscrita pelo Decreto Legislativo Regional n.º 13/2010/M, de 5 de agosto e pelos poderes conferidos ao acionista público aí previstos (cfr. artigo 32.º do presente requerimento) sendo questionável que o Governo Regional da Madeira pudesse, de harmonia com o Decreto Legislativo Regional n.º 13/2010/M, de 5 de agosto, emitir uma instrução equivalente à prevista no diploma em apreço.
IV - Da violação do princípio da separação de poderes e do direito a um processo justo e equitativo
53.º
O legislador regional não poderia ignorar que se encontra a correr ação judicial contra incertos, proposta em 6 de julho de 2012, e que a aprovação do diploma em apreço representa, de per se, uma injunção para a ANAM que condiciona o julgador, colocando igualmente em causa o princípio da separação de poderes previsto no artigo 111.º, n.º 1 da Constituição e o direito a um processo justo e equitativo, previsto no artigo 20.º, n.º 4 da Constituição.
54.º
Na verdade, o princípio da preeminência do direito e a noção de processo equitativo opõem-se, salvo motivos imperiosos de interesse geral, à ingerência do poder legislativo na administração da justiça no sentido de influenciar a solução judicial do litígio.
55.º
O direito a um processo justo e equitativo extrai-se do artigo 20.º, n.º 4 da Constituição – como tem sido entendido pelo Tribunal Constitucional nomeadamente nos acórdãos n.º 352/98 e 632/99 - pressupondo a densificação do princípio de processo equitativo a análise dos dados jurisprudenciais, desempenhando aqui um papel de relevo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em torno do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (assim, v. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 415), relevando, neste contexto, inter alia, a decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Scordino, n.º 1, de 29 de março de 2006, R06-V, p. 42, parágrafo 126.
Síntese conclusiva
i) As desconformidades com a Lei Fundamental assinaladas determinam e justificam a iniciativa encetada junto do Tribunal Constitucional, de acordo com o princípio da constitucionalidade das leis e demais atos do Estado, das Regiões Autónomas, do poder local e de quaisquer outras entidades públicas, consagrado no artigo 3.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
ii) Do que se vem a expor, poderá concluir-se que as normas constantes dos artigos 1.º e 2.º do decreto em apreço, por ofensa das normas e princípios contidos nos artigos 20.º, n.º 4; 54.º, n.º 5, alíneas c) e d); 56.º, n.ºs 2, alíneas a); b) e e) e 3 e 111.º, n.º 1, todos da Constituição, se encontram feridas do vício de inconstitucionalidade formal, material e orgânica.»
Notificado para se pronunciar, ao abrigo do disposto no artigo 54.º da LTC, o Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira limitou-se a oferecer o merecimento dos autos.
A solicitação deste Tribunal, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira informou que foram ouvidos sobre o Projeto que esteve na origem do Decreto onde de encontram as normas sob fiscalização, na 2.ª Comissão Especializada Permanente de Economia Finanças e Turismo, da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, no dia 27 de junho de 2012, o Presidente do Conselho de Administração da ANAM - Aeroportos e Navegação Aérea da Madeira, S.A. (ANAM), e representantes do SITAVA – Sindicato dos Trabalhadores da Aviação Civil (SITAVA), e no dia 3 de julho de 2012 os “representantes dos trabalhadores que contribuíram para o Fundo Social da Direção Regional de Aeroportos”.
Também a solicitação deste Tribunal, a ANAM informou que não tem Comissão de Trabalhadores.
Elaborado o memorando a que se refere o artigo 58.º, n.º 2, da LTC, e tendo este sido submetido a debate, cumpre agora decidir de acordo com a orientação que o tribunal fixou.
Fundamentação
1. O presente pedido de apreciação preventiva de constitucionalidade formulado pelo Representante da República para a Região Autónoma da Madeira tem por objeto as normas constantes dos artigos 1.º e 2.º de um Decreto aprovado pela Assembleia Legislativa dessa Região, em sessão realizada em 17 de julho de 2012, identificado com o título “assegura a devolução proporcional dos descontos realizados pelos trabalhadores da ANAM, para um fundo social criado em 1993”.
Esses artigos têm o seguinte conteúdo:
«Artigo 1.º
Objeto
O presente Decreto Legislativo Regional visa atribuir e devolver, de forma definitiva, as verbas depositadas no Fundo Social criado em 1993 por Despacho Conjunto da Secretaria Regional de Economia e Cooperação Externa e Secretaria dos Assuntos Sociais, aos trabalhadores que efetuaram os respetivos descontos, ou em caso de falecimento dos respetivos titulares a entrega deverá ser feita aos respetivos herdeiros legais.
Artigo 2.º
Prazo
Para efeitos do artigo 1.º, a ANAM, no prazo máximo de 60 dias a contar da data de publicação deste diploma, procederá à respetiva entrega dos valores depositados.»
No primeiro destes preceitos estabelece-se o destino dos valores depositados num concreto “Fundo Social”, enquanto no segundo se atribui à ANAM a tarefa de proceder à entrega desses valores em 60 dias, segundo o critério estabelecido no artigo anterior.
Estas normas são antecedidas da seguinte fundamentação:
«A criação de um Fundo Social na então Direção Regional de Aeroportos encontrava-se prevista na cláusula 140º do Acordo de Trabalho, aprovada por Conselho de Governo 651/91, de 20 de fevereiro. Através de Despacho Conjunto da Secretaria Regional de Economia e Cooperação Externa e Secretaria dos Assuntos Sociais de 31 de maio de 1993, o referido “Fundo” foi criado através de normas essenciais, concedendo um prazo de seis meses para a criação do respetivo regulamento.
Mais tarde, a 15 de março de 1994, o citado Despacho foi revogado, transferindo, todavia, para a ANAM – Aeroportos e Navegação Aérea da Madeira, as negociações constantes da cláusula 140º do Acordo de Trabalho. Regulamento que nunca foi implementado.
À transferência de responsabilidades da extinta Direção Regional de Aeroportos para a ANAM, correspondeu um depósito de 40.651.630$00, equivalente, em moeda atual, a € 202.769,48, que os trabalhadores entretanto descontaram, tendo por base 2% dos salários auferidos pelos trabalhadores.
O desconto foi legal e feito de boa-fé entre as partes, isto é, pelos trabalhadores e pelo governo, no quadro do citado Despacho Conjunto das Secretarias de Economia e a dos Assuntos Sociais, visando uma assistência social após a aposentação dos trabalhadores.
A ANAM, SA tem sido, até ao presente, fiel depositária e já demonstrou interesse de liberar o depósito, cujo saldo, à data de março de 2010, apresentava o valor de € 370.821,62, aplicado num depósito especial no Millenium BCP, importância esta, hoje, provavelmente superior, em função das operações entretanto realizadas. A liberação do depósito consta, inclusive, de uma posição assumida pela ANA.
Acresce dizer que, segundo um parecer da Secretaria Regional do Plano e Finanças, que teve a concordância da Secretaria Regional da Cultura, Turismo e Transportes, e que é do conhecimento da ANAM, SA, «(...) a ANAM, SA, na qualidade de entidade patronal e cocontratante do Acordo de Trabalho relativo a esses trabalhadores, detém legitimidade bastante para deliberar e acordar com esses trabalhadores, no sentido da satisfação e pagamento desses seus créditos. (...) A atribuição, distribuição ou restituição dos montantes em depósito que integram o dito Fundo Social, por constituírem, de facto, créditos dos trabalhadores quotizados, já que são parte integrante da sua remuneração, decorre, diretamente da Lei (artigo 337º do Código de Trabalho), e, como tal, não depende de quaisquer instruções ou deliberações do governo regional, seja enquanto entidade que tutela o setor ou concedente”.
Daqui se deduz que se trata de quantitativo que urge restituir aos seus titulares e famílias, obviamente, na proporção dos seus descontos.»
Para melhor compreensão do alcance e enquadramento das normas sob fiscalização é necessário recuarmos no tempo e efetuarmos um breve roteiro explicativo da situação que o Decreto aqui em causa procurou solucionar.
Inserido numa política de regionalização, o Decreto-Lei n.º 294/80, de 16 de agosto, transferiu para a Região Autónoma da Madeira as atribuições e competências confiadas até então à Empresa Pública Aeroportos e Navegação Aérea (ANA) nas partes que respeitavam a esta Região, ou seja as que se reportavam às atividades e serviços inerentes aos Aeroportos do Funchal e de Porto Santo.
Nos artigos 4.º e 5.º deste Decreto-Lei previu-se que a transferência das atribuições e competências da ANA para a Região Autónoma da Madeira operar-se-ia mediante a publicação dos diplomas legais que criariam e regulariam as entidades públicas a quem competiria a prestação do serviço público regional de apoio à aviação civil, assim como os aspetos patrimoniais, financeiros, obrigacionais e laborais inerentes à transferência de atribuições e competências, sendo certo que esses diplomas deveriam respeitar os direitos adquiridos pelos trabalhadores ao serviço da ANA.
No seguimento, o Decreto-Lei n.º 538/80, de 7 de novembro, veio regular a transferência de pessoal da ANA para os respetivos órgãos próprios da Região Autónoma da Madeira, o que veio a ser assumido pela Direção Regional de Aeroportos, sendo-lhe aplicável o estatuto de pessoal em vigor na ANA, até à publicação de um regime legal próprio, facto que não veio a ocorrer.
Posteriormente foi celebrado um acordo de trabalho entre a Região Autónoma da Madeira e o SITAVA, cuja redação inicial e sucessivas revisões foram aprovadas por resoluções do Conselho do Governo Regional, aplicando-se a todos os trabalhadores que prestavam serviço nos Aeroportos da Região Autónoma da Madeira abrangidos pelo regime de contrato individual de trabalho, com exclusão dos que prestavam serviço no setor da navegação aérea, em cuja cláusula 140.ª se previa a criação de um Fundo Social a fim de garantir a cobertura de benefícios sociais, nomeadamente em matéria de pensões de aposentação e reforma.
Em 20 de junho de 1991, o Conselho do Governo Regional, pela Resolução n.º 651/91, aprovou uma nova versão do Acordo de Trabalho celebrado entre a Região Autónoma da Madeira e o SITAVA, em que a cláusula 140.ª apresentava a seguinte redação:
«Cláusula 140.ª
1 – Será criado um Fundo Social a fim de garantir a cobertura de benefícios sociais, nomeadamente em matéria de pensões de aposentações e reforma.
2 – As receitas do fundo social serão depositadas em conta ou contas bancárias específicas e autónomas abertas em instituição bancária.
3 – Será constituída uma comissão de gestão do fundo social (CGFS) composta por um representante da DRA, um representante designado pelos trabalhadores e um terceiro elemento designado por consenso entre as partes.
4 – O fundo social será regulamentado pelas partes outorgantes, no prazo máximo de seis meses a contar da data da apresentação duma proposta por qualquer das partes.»
Visando dar cumprimento ao acordado nesta cláusula, foi proferido um Despacho Conjunto das Secretarias Regionais da Economia e Cooperação Externa e Assuntos Sociais, de 31-05-1993 (Publicado na II Série do JORAM, de 11-06-1993), que criou um denominado “Fundo Social da Direção Regional de Aeroportos”, nos seguintes termos:
«A criação do Fundo Social da Direção Regional de Aeroportos encontra-se prevista na Cláusula 140.ª do Acordo de Trabalho, aprovado por Resolução do Conselho do Governo n.º 651/91, de 20 de fevereiro, que se aplica entre o Governo Regional da Madeira e todos os trabalhadores que prestam serviço nos Aeroportos da Região Autónoma da Madeira abrangidos pelo regime de contrato individual de trabalho, com exclusão dos que prestam serviço no setor da navegação aérea.
O Fundo Social visa garantir a cobertura de benefícios sociais, nomeadamente em matéria de pensões de aposentação e reforma.
Nestes termos, é criado o Fundo Social da Direção Regional de Aeroportos, o qual se regerá pelos seguintes princípios gerais:
1º - O Fundo Social tem por fim a atribuição de complementos de pensões de reforma por velhice e invalidez aos trabalhadores não oriundos da Função Pública, em termos de assegurar valores idênticos aos concedidos pela Caixa Geral de Aposentações;
2º - O Fundo Social garantirá ainda a revisão anual de todas as pensões de reforma e de aposentação;
3º - O Fundo poderá, nos termos da respetiva regulamentação, atribuir outros benefícios de natureza social;
4º - O Fundo Social terá, inicialmente, como suporte financeiro as importâncias necessárias aos acertos das remunerações ou vencimentos líquidos entre o pessoal oriundo da Função Pública e o pessoal oriundo do Mercado de Trabalho, em proporção exigida pela compensação da diferença entre as respetivas deduções obrigatórias;
5º - As normas por que se irá reger o Fundo Social serão elaboradas por uma Comissão a constituir por um elemento nomeado pela Direção Regional de Aeroportos, um elemento designado pelos Trabalhadores e um outro por consenso entre as partes;
6º - Será aberta uma conta bancária específica e autónoma em instituição bancária, que será movimentada pela Comissão do Fundo Social;
7º - Aprovado o presente despacho conjunto, as partes interessadas elaborarão e aprovarão, no prazo máximo de seis meses, o Regulamento do Fundo Social.»
Entretanto, o Decreto-Lei n.º 453/91, de 11 de dezembro (que veio a ser alterado pelo Decreto-Lei n.º 273/93, de 4 de agosto), havia criado uma sociedade de capitais exclusivamente públicos, a ANAM - Aeroportos e Navegação Aérea da Madeira, S. A., abreviadamente designada por ANAM, o qual entrou em vigor simultaneamente com o Decreto Legislativo Regional 8/92/M, de 21 de abril, que concedeu a essa sociedade o direito de promover e executar as obras de ampliação do Aeroporto de Santa Catarina, bem como o planeamento, o desenvolvimento e a exploração dos aeroportos da Região Autónoma da Madeira, tendo o respetivo contrato de concessão sido outorgado em 9 de julho de 1993 entre o Governo Regional da Madeira e a ANAM. À luz do artigo 4.º do Decreto Legislativo Regional n.º 13/2010/M, de 5 de agosto de 2010, no âmbito regional, a ANAM pode enquadrar-se na categoria das empresas participadas, uma vez que apenas 20% do capital social é da Região Autónoma da Madeira e não se verificam os condicionalismos constantes das alíneas a) e b), do n.º 1, daquele artigo.
No referido contrato de concessão estabeleceu-se que a concessionária receberia todo o pessoal afeto aos serviços concessionados e assumiria todos os direitos e obrigações da Região Autónoma da Madeira, relativos ao mesmo, sucedendo a concessionária ao Governo Regional nas obrigações contratuais emergentes do Acordo de Trabalho acima referido (cláusulas 9.ª e 33.ª).
Subsequente a esta alteração foi proferido, em 15 de março de 1994, um Despacho Conjunto das Secretarias Regionais da Economia e da Cooperação Externa e Assuntos Sociais que revogou o anterior despacho de 31 de maio de 1993, retroagindo os seus efeitos à data da sua entrada em vigor, com o seguinte texto:
«Por Despacho Conjunto dos Secretários Regionais da Economia e Cooperação Externa e dos Assuntos Sociais, de 31 de maio de 1993, foi criado o impropriamente designado “Fundo Social da Direção Regional dos Aeroportos”, destinado aos trabalhadores que prestam serviço nos aeroportos da Região, abrangidos pelo regime do contrato individual de trabalho, excluindo os do setor de navegação aérea.
Segundo o referido despacho o dito “fundo” teria por objeto a atribuição de complementos de pensões de reforma por velhice e invalidez aos trabalhadores não oriundos da função pública, em termos de assegurar valores idênticos aos concedidos pela Caixa Geral de Aposentações, a par de outras regalias de natureza social que seriam posteriormente definidas em regulamentação própria.
As regras por que se haveria de reger o sobredito “fundo” seriam objeto de regulamento a aprovar no prazo estabelecido no ponto 7º do referido despacho, pelo que o mesmo não chegou a ser executado e a produzir quaisquer efeitos, para além dos já produzidos por força do disposto na Resolução do Conselho de Governo n.º 651/91, de 20 de fevereiro.
Verifica-se, por outro lado, que o referido despacho nada dispunha sobre algumas das formalidades e requisitos exigidos pela lei aplicável.
Acresce que, por força do Contrato de Concessão celebrado em 9 de julho de 1993, a “ANAM – Aeroportos e Navegação Aérea da Madeira, S.A.”, recebeu todo o pessoal afeto aos serviços concessionados, sucedendo ao Governo Regional nas obrigações contratuais emergentes do Acordo de Trabalho em vigor, deixando, assim, de existir alguns dos pressupostos que estiveram na base do sobredito despacho.
Nestes termos, determina-se o seguinte:
1.º - É revogado, com os fundamentos acima referidos, o Despacho Conjunto, de 31 de maio de 1993, publicado no JORAM, II série, n.º 65, de 11 de junho, retroagindo os seus efeitos à data da sua entrada em vigor.
2.º - A presente revogação não prejudica os direitos adquiridos pelos trabalhadores abrangidos, podendo, nomeadamente, os seus representantes retomar, junto da “ANAM – Aeroportos e Navegação Aérea da Madeira, S.A.”, as negociações que originaram a cláusula 140ª do citado Acordo de Trabalho.»
Entretanto, os valores que integravam o suporte financeiro inicial do referido “Fundo Social”, mencionado no artigo 4.º, do Despacho Conjunto de 31 de maio de 1993, haviam já sido transferidos para a ANAM, que os depositou em conta bancária aberta em seu nome.
Nos Acordos de Empresa celebrados entre a ANAM e o SITAVA deixou de figurar a cláusula onde se previa a constituição do Fundo Social.
É perante esta situação, e após várias negociações fracassadas no sentido de dar destino àqueles valores, que o Grupo Parlamentar do Partido Socialista, por requerimento apresentado em 5 de junho de 2012, solicitou, à Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, a apreciação com Processo de Urgência do Projeto de Decreto Legislativo Regional intitulado “assegura a devolução proporcional dos descontos realizados pelos trabalhadores da ANAM para um Fundo Social criado em 1993”.
A apreciação do referido projeto foi iniciada na Reunião Plenária de 19 de junho de 2012 da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira.
No dia 6 de julho de 2012, a ANAM instaurou, no Tribunal Judicial da Comarca de Santa Cruz, ação declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário, contra incertos, representados pelo Ministério Público, em que requereu a intervenção provocada da Secretaria Regional da Cultura, Turismo e Transportes (enquanto entidade que representa a anterior e extinta Secretaria Regional da Economia e Cooperação Externa, no âmbito da criação e extinção do “Fundo Social”) e em que, relativamente aos valores relativos ao “Fundo Social da Direção Regional de Aeroportos”, para si transferidos por ocasião do início da concessão dos aeroportos da Madeira e Porto Santo, pediu que fosse declarado:
A) A impossibilidade do fim e da obrigação de prestar a quantia a que se destina o depósito e guarda confiados à ANAM, considerando os seus pressupostos, com o consequente direito da A. poder liberar-se da obrigação de manutenção e conservação da verba a si confiada;
B) Que enquanto tal forma de se liberar não lhe for determinada, autorizada e consentida a A é tão só fiel depositária da verba confiada, o que à demonstração definitiva da impossibilidade de prestar a indicada quantia por qualquer meio e a quem quer que seja, conduzirá à extinção da obrigação da guarda confiada nos termos do artigo 790.º, n.º 1 do C. Civil, com a consequente restituição ao Depositante;
C) Como forma de tentar obter fim ou destino à indicada quantia depositada, tendo em consideração os seus pressupostos, carece a A. da manifestação de vontade clara e inequívoca da sua forma de distribuição ou repartição, o que à A. na sua qualidade de fiel depositária não compete decidir ou tomar posição, sem prejuízo da salvaguarda dos seus interesses na indicada qualidade;
D) Em consequência, seja declarada a obrigação de Incertos, atual e totalmente desconhecidos, virem a adotar as diligências necessárias para que essa restituição possa ter lugar;
E) Que à manutenção da impossibilidade de obtenção de forma e manifestação de vontade que válida e eficazmente possam determinar a sua restituição ou distribuição, e para salvaguarda de eventuais interesses, seja determinado à Autora a forma de se poder liberar no imediato da obrigação da guarda confiada, afigurando-se que, previamente, para a eventualidade, possível, do recurso à consignação em depósito (artigo 841.º, alínea a) do C. Civil), deverá ser prestado o consentimento pelo Representado, a Região Autónoma da Madeira, bem como de Incertos, totalmente desconhecidos, a representar pelo Ministério Público - artigo 16º, n.º 1 do C. Civil.
F) Que à demonstração da impossibilidade definitiva de qualquer forma de poder prestar a indicada quantia, assiste o direito da A. a ver declarada a extinção da obrigação atinente ao depósito e guarda confiados, com a consequente restituição ao Depositante e seu Representado, liberando e desonerando a A. de toda e qualquer responsabilidade, incluindo perante quaisquer terceiros e atualmente Incertos.”
A versão final do diploma aqui em análise foi aprovada pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, por unanimidade, em sessão plenária de 17 de julho deste ano.
Face ao descrito, constata-se que as normas sob fiscalização determinam o destino dos valores que integraram o suporte financeiro inicial de um “Fundo Social da Direção Regional de Aeroportos” que visava garantir a cobertura de benefícios sociais, nomeadamente em matéria de pensões de aposentação e reforma, aos trabalhadores que prestavam serviço nos aeroportos da Região da Madeira, abrangidos pelo regime do contrato individual de trabalho, excluindo os do setor de navegação aérea.
Tendo esses trabalhadores transitado da Administração Regional para a ANAM, por força dos termos do contrato através do qual foi concessionada a exploração dos aeroportos da Região Autónoma da Madeira, foi revogado o Despacho que havia criado o referido “Fundo Social”, ficando os valores que o integravam na posse da ANAM, para quem entretanto haviam sido transferidos, na expectativa que os mesmos pudessem integrar um novo “Fundo”, a criar por esta empresa, nomeadamente em cumprimento de acordo coletivo de trabalho.
Contudo, esse novo “Fundo” nunca foi criado e os acordos de trabalho posteriormente celebrados entre a ANAM e o SITAVA deixaram de prever a sua existência.
Assim, apesar de criado, aquele “Fundo Social da Direção Regional de Aeroportos” nunca foi executado, nem sequer regulamentado, tendo sido revogado o seu ato criador, com efeitos retroativos à data da criação. Se perante este quadro, juridicamente, o “Fundo” é como se nunca tivesse existido, de facto produziu, pelo menos, o efeito da mobilização dos valores que constituíam o seu suporte financeiro inicial, os quais se encontram na posse da ANAM, sem que integrem o seu património.
Foi esta realidade criada por uma sucessão de atos administrativos do Governo Regional que o Decreto sob fiscalização pretendeu regular, dando destino a esses valores.
2. O Requerente fundamentou o seu pedido de fiscalização preventiva no entendimento que as normas constantes dos artigos 1.º e 2.º do Decreto aqui em causa violavam os seguintes direitos e princípios constitucionais:
- direito de participação das comissões de trabalhadores nos processos de reestruturação da empresa quando ocorram alterações das condições de trabalho e na elaboração da legislação de trabalho (artigo 54.º, n.º 5, c) e d) da Constituição);
- direito das associações sindicais a participar na elaboração da legislação do trabalho, na gestão das instituições de segurança social e outras organizações que visem satisfazer os interesses dos trabalhadores, e nos processos de reestruturação da empresa, especialmente quando ocorra alteração das condições de trabalho (artigo 56.º, n.º 2, a), b) e e), da Constituição);
- direito à contratação coletiva das associações sindicais (artigo 56.º, n.º 3, da Constituição);
- princípios da reserva da administração e da separação de poderes, por intromissão da Assembleia Legislativa na esfera de competência do Governo Regional (artigo 111.º da Constituição);
- princípio da separação de poderes, por ingerência da Assembleia Legislativa na administração da justiça (artigo 111.º da Constituição);
- direito a um processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição).
3. O Requerente alega em primeiro lugar que, não tendo sido ouvida a Comissão de Trabalhadores da ANAM, sobre a iniciativa legislativa que deu origem ao Decreto sob fiscalização, foi violado o direito constitucional das comissões de trabalhadores de participarem nos processos de reestruturação da empresa quando ocorram alterações das condições de trabalho e na elaboração da legislação de trabalho previsto no artigo 54.º, n.º 5, c) e d), da Constituição.
No decurso do procedimento legislativo foram apenas ouvidos, na qualidade de “parceiros sociais”, o Presidente do Conselho de Administração da ANAM, representantes do SITAVA e os “representantes dos trabalhadores que contribuíram para o Fundo Social da Direção Regional de Aeroportos”.
Não existindo Comissão de Trabalhadores na ANAM, conforme informação prestada nos autos por esta empresa, independentemente de se saber se, neste caso, tal audição era exigida pelo disposto nos referidos preceitos constitucionais, nunca seria possível assegurar a participação de tal entidade no procedimento legislativo que conduziu à aprovação do presente Decreto, pelo que não se verifica o vício apontado.
4. Por outro lado apurou-se, conforme informação prestada nos autos, que os dirigentes do sindicato que representa os trabalhadores que prestam serviço nos aeroportos da Região, o SITAVA, foram ouvidos sobre o projeto que deu origem ao Decreto aqui em causa, pelo que, independentemente de se saber se, neste caso, tal audição era exigida pelo disposto no artigo 56.º, n.º 2, a), b) e e), da Constituição, o facto que suportava a existência deste vício procedimental revela-se infirmado.
5. O Requerente alega ainda que as normas sob fiscalização violam a competência atribuída às associações sindicais para exercerem o direito à contratação coletiva, pelo artigo 56.º, n.º 3, da Constituição, uma vez que estava em causa uma cláusula de um Acordo de Trabalho.
Se é verdade que essas normas procedem à atribuição dos valores que integraram o suporte financeiro inicial do “Fundo Social da Direção Regional de Aeroportos” que foi criado por Despacho Conjunto das Secretarias Regionais de Economia e Cooperação Externa e dos Assuntos Sociais, em cumprimento do clausulado em Acordo de Trabalho celebrado entre a Região Autónoma da Madeira e o SITAVA, a respetiva intervenção da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira em nada contende com a atribuição às associações sindicais de competência para exercer o direito à contratação coletiva pelo artigo 56.º, n.º 3, da Constituição.
Tais normas não têm origem em qualquer convenção coletiva, nem o seu conteúdo retira ou subtrai às associações sindicais, nomeadamente ao SITAVA, aquele direito constitucional, pelo que não se vislumbra como elas poderiam constituir uma violação do disposto no artigo 56.º, n.º 3, da Constituição.
6. O Requerente também invoca que a aprovação, pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, de um diploma contendo uma instrução precisa e objetiva dirigida a uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, equivale ao exercício de um poder de um acionista público, de natureza tipicamente administrativa, o que acarreta um vício de inconstitucionalidade orgânica e material.
No seu raciocínio, sendo a ANAM uma sociedade anónima detida exclusivamente por capitais públicos, tal significa que os direitos dos acionistas públicos da ANAM – nomeadamente o Governo Regional da Madeira – são exercidos enquanto titulares do capital social através dos órgãos societários próprios típicos de uma sociedade anónima, sem prejuízo dos direitos especiais que lhes assistem, em virtude da aplicação do Decreto Legislativo Regional n.º 13/2010/M, de 5 de agosto. Equivalendo o exercício da função acionista nas empresas públicas ao exercício de um poder de natureza administrativa que se insere, no caso do Governo da República, no âmbito da respetiva competência administrativa (cfr. artigo 199.º, alínea d) da Constituição), e podendo afirmar-se o mesmo, mutatis mutandis, no caso do Governo Regional, não é, por conseguinte, de aceitar que um órgão legiferante – como a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira – aprove uma instrução dirigida especificamente a uma empresa pública – a ANAM – e aos seus trabalhadores, na medida em que tal traduz uma invasão do princípio da reserva de administração.
Assim, conclui que o diploma em apreço, ao emitir uma instrução específica e concreta dirigida a uma empresa pública, cuja competência para a sua adoção, atendendo à sua natureza administrativa, competiria, em abstrato, ao Governo Regional e não à Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, está a invadir uma competência típica do Governo Regional – o exercício do poder administrativo – e, por isso, contende com o artigo 111.º, n.º 1, da Constituição, e com o princípio da separação de poderes nele consignado.
A questão que o diploma legislativo em causa pretende resolver prende-se com o destino a dar aos valores que integraram o suporte financeiro inicial do “Fundo Social da Direção Regional de Aeroportos”, que foi criado por Despacho Conjunto das Secretarias Regionais de Economia e Cooperação Externa e dos Assuntos Sociais, em cumprimento do clausulado em Acordo de Trabalho celebrado entre a Região Autónoma da Madeira e o SITAVA, tendo esse diploma vindo a ser revogado também por Despacho Conjunto das mesmas Secretarias Regionais. Esses valores, na sequência do contrato de concessão entretanto celebrado entre o Governo Regional da Madeira e a ANAM, que incluía a transmissão do pessoal afeto aos serviços concessionados, à data em que foi proferido o Despacho revogatório, já haviam sido transferidos para aquela empresa, que os depositou em conta bancária aberta em seu nome.
Ora, se este último despacho dispunha que «2.º - A presente revogação não prejudica os direitos adquiridos pelos trabalhadores abrangidos, podendo, nomeadamente, os seus representantes retomar, junto da “ANAM – Aeroportos e Navegação Aérea da Madeira, S.A.”, as negociações que originaram a cláusula 140ª do citado Acordo de Trabalho.», o facto é que, desde então, nunca foi dado qualquer destino aos valores que constituíam o suporte financeiro inicial do referido “Fundo Social da Direção Regional de Aeroportos”, tendo os posteriores Acordos de Trabalho abandonado a previsão da constituição de um novo “Fundo”, mantendo-se tais valores na posse da ANAM, sem integrarem, contudo, o seu património, não se encontrando, por isso, entre os seus poderes, dispor de tal verba.
Por isso, o conteúdo do Diploma integrado pelas normas sob fiscalização nunca pode ser encarado como o exercício dos poderes de superintendência dos órgãos regionais sobre uma empresa pública que exerce a sua atividade na Região, não sendo, assim, possível, afirmar que a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira esteja a exercer poderes de acionista em relação a tal empresa. Não é nessa qualidade e por causa dela que a ANAM é a destinatária dos “comandos” constantes dessas normas, mas apenas pelo facto de, conforme consta do preâmbulo do diploma em causa, ser considerada a “fiel depositária” dos valores em questão.
No entanto, esta conclusão não significa que o conteúdo do Decreto em análise deixe de suscitar qualquer discussão sobre se a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira não terá excedido os seus limites de atuação, invadindo um espaço de autonomia administrativa.
Na verdade, estamos perante um diploma que, pretendendo solucionar uma situação concreta – o destino dos valores integrantes do suporte financeiro inicial do “Fundo Social da Direção Regional dos Aeroportos”, cuja criação foi posteriormente revogada –, estando dele ausente a característica da abstração, estabeleceu no seu artigo 1.º o critério a aplicar na destinação desses valores – as verbas depositadas devem ser atribuídas e devolvidas proporcionalmente aos trabalhadores que efetuaram os respetivos descontos ou, em caso de falecimento dos respetivos titulares, a entrega deverá ser feita aos respetivos herdeiros legais – fornecendo, deste modo, a regra jurídica que define quem são os titulares do direito a receber tais valores. E, no seu artigo 2.º, atribui à ANAM a competência para, no prazo máximo de 60 dias a contar da data de publicação do diploma, proceder à entrega dos valores depositados, segundo o critério adotado no artigo 1.º.
O facto de estarmos perante um diploma direcionado à resolução de uma situação concreta, só por isso, não obsta a que a sua autoria pertença a um órgão com poderes legislativos (cfr., entre outros, o Acórdão n.º 26/85, deste Tribunal, acessível em www.tribunalconstitucional.pt).
De igual modo, a circunstância de o “Fundo Social”, onde se integravam os valores cujo destino foi determinado pelo Decreto em causa, ter sido criado e posteriormente revogada a sua criação por Despachos do Governo Regional, não é suficiente para conferir o monopólio da matéria ao Governo Regional, não impedindo a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira de intervir na regulação das consequências daquela revogação. Estamos num espaço de competência concorrencial, em que era legítima a atuação de qualquer um destes órgãos regionais, sendo certo que uma intervenção legislativa era da competência exclusiva da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira (artigos 232.º, n.º 1, e 227.º, n.º 1, a), da Constituição).
A questão que se coloca é a de saber se, tendo o Decreto sob fiscalização um acentuado grau de concretização na disciplina da matéria em causa, a densidade com que tal regulação foi efetuada implicou uma subtração, por via legal, de um poder exclusivamente confiado à atividade administrativa do Governo Regional.
Sobre a questão da existência de uma reserva de administração, o Tribunal Constitucional já teve a oportunidade de se pronunciar por diversas vezes (cfr. os Acórdãos n.º 461/87, 1/97 e 214/2011, acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt), mas em situações em que estava em causa a separação de poderes entre a Assembleia da República e o Governo da República, tendo perfilhado a opinião de que uma reserva geral de administração surge como inadequada à função atual do princípio da separação de poderes, na medida em que diminuiria as possibilidades de efetivação do controlo democrático do Executivo, limitando as áreas de intervenção legislativa do Parlamento e excluindo-o da direta decisão política, além de que não se consubstancia, no texto constitucional, qualquer estrita correspondência entre separação de órgãos e separação de funções, de modo a que a separação de órgãos tenha o sentido de implicar uma rígida divisão de funções do Estado entre eles, exprimindo até a referência à interdependência dos órgãos do Estado constante do artigo 111.º, n.º 1, da Constituição, uma lógica de colaboração e articulação funcional.
Contudo, isso não impede que se reconheça quer a existência de domínios claramente identificados e delimitados de competência exclusiva da Administração, quer a reserva de um núcleo essencial de atuação de cada um dos poderes do Estado, apurado a partir da adequação da sua estrutura ao tipo ou à natureza da competência em causa, enquanto justificação da sua previsão e expressão da sua igual legitimidade político-constitucional.
Regressando ao caso dos autos, em que, recorde-se, a questão não se coloca entre órgãos de soberania, mas entre a Assembleia Legislativa de uma Região Autónoma e o respetivo Governo, importa, antes de mais, realçar que, embora o princípio da separação e interdependência de poderes se encontre formulado no artigo 111.º, n.º 1, da Constituição, com referência aos órgãos de soberania, ele é coessencial ao Estado de Direito democrático, pelo que, por força do disposto no artigo 2.º, da Constituição, assume-se como princípio fundamental e definidor de toda a organização da comunidade política e do Estado, incluindo a das regiões autónomas.
Há que ter em conta, porém, a particular atribuição de competências entre os diferentes órgãos regionais definida na Constituição. Em ambas as regiões autónomas, num sistema de governo de tipo parlamentar, o exercício da função legislativa é atributo exclusivo dos parlamentos regionais, mas a função administrativa é partilhada, embora em quotas desiguais, entre a Assembleia Legislativa e o Governo Regional (RUI MEDEIROS, em “Constituição Portuguesa Anotada”, de Jorge Miranda/Rui Medeiros, Tomo III, pág. 414, da ed. de 2007, da Coimbra Editora). A Assembleia Legislativa não só tem o monopólio da função legislativa, como partilha a função administrativa com o Governo Regional, nos poderes regulamentares, o que configura um modelo de repartição das funções pelos diferentes órgãos regionais que, em relação àquele que vigora entre os órgãos de soberania, alarga a área de ação da Assembleia Legislativa, conferindo-lhe maiores poderes de intervenção.
Esta diferente repartição orgânico-funcional dos poderes da Região não pode deixar de ser considerada quando está em discussão uma eventual invasão pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira de espaço reservado à atuação do Governo Regional.
O Decreto sob fiscalização, no artigo 1.º, adota um critério normativo, no que respeita ao destino a dar aos valores do “Fundo Social da Direção Regional de Aeroportos”, confiados à guarda da ANAM, dispondo, face à circunstância de os valores em questão não terem chegado a ser aplicados para os fins inicialmente previstos, qual a regra que deve presidir à sua atribuição, não se estando em presença de um puro ato administrativo traduzido na mera aplicação de um regime legal anteriormente existente. O legislador, neste caso, face a uma anterior intervenção do Governo Regional, traduzida no Despacho que procedeu à revogação da criação do referido “Fundo Social” e devido ao vazio entretanto criado pela circunstância de não ter sido dado o destino inicialmente previsto para os valores que constituíram o suporte financeiro inicial desse “Fundo”, veio intervir na matéria, determinando quem teria direito a receber esses valores. E o artigo 2.º do Decreto em apreço, em complemento da definição deste critério normativo, limita-se a atribuir à ANAM a competência para proceder à entrega dos referidos valores de acordo com o estabelecido no referido critério e a fixar um prazo para a prática desse ato.
Ora, embora este segundo preceito possa ser olhado como uma concretização da norma anteriormente consagrada, prescindindo-se, assim, de um ulterior ato ou atividade da administração para a sua aplicação, tal ocupação, pelo poder legislativo, de uma esfera de ação que poderia ter sido diferida aos órgãos da administração, não se traduz, só por isso, na invasão de uma área da reserva do Governo Regional.
Na verdade, o eventual recurso a uma atividade executiva da administração seria sempre a título meramente subsidiário e instrumental, nada impedindo que o ato do poder legislativo a dispense, salvo se este se encontrasse em qualquer espaço especificamente reservado pela Constituição à intervenção do Governo Regional (v.g. o previsto no artigo 231.º, n.º 6) ou se pudesse dizer que o seu conteúdo integrava o núcleo essencial da atividade executiva deste órgão.
Ora, a mera determinação da entidade competente para proceder à entrega dos valores constituintes do suporte financeiro inicial de um “Fundo Social”, cuja criação pelo Governo Regional foi por este entretanto revogada, e a fixação do prazo para a prática desse ato, na sequência da definição pelo legislador do critério normativo que deve regular os termos dessa entrega, não se situam em qualquer domínio constitucionalmente reservado à intervenção do Governo Regional, nem, uma vez que respeitam a matéria alheia à gestão corrente da Administração Pública, se incluem no núcleo essencial da sua atividade executiva.
Por estes motivos, não se revela que a aprovação destas normas pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira viole o princípio da separação de poderes, por intromissão deste órgão na esfera de competência do Governo Regional.
7. Finalmente, o Requerente alega que a intervenção do legislador regional ao emitir as normas em análise viola o princípio da separação de poderes, porque se traduz numa ingerência inadmissível na administração da justiça, no sentido de influenciar a solução judicial de um litígio pendente nos tribunais, e o direito a um processo equitativo.
Previamente à análise da questão convém lembrar que a iniciativa legislativa que conduziu à aprovação deste diploma se iniciou em data anterior à propositura da ação judicial invocada pelo Requerente, pelo que nunca seria possível imputar ao legislador regional uma intenção de moldar a decisão desse pleito judicial.
Contudo, existindo uma reserva de jurisdição, isto é áreas de atuação exclusivamente reservadas à atividade jurisdicional, há que verificar se, objectivamente, face ao conteúdo das normas sob fiscalização, se verifica uma invasão desses domínios, com a inerente violação do princípio da separação de poderes.
A resolução de conflitos de interesses em casos concretos, aplicando critérios jurídicos previamente definidos sem outro fim que não seja o de prover à solução jurídica desses concretos conflitos, é monopólio da função jurisdicional (artigo 202.º, da Constituição).
No presente caso, as normas sob fiscalização, se visaram a resolução de uma situação concreta – o destino dos valores integrantes do suporte financeiro inicial do “Fundo Social da Direção Regional dos Aeroportos”, cuja criação havia sido revogada –, estando delas ausente a característica da abstração, não decidiram um qualquer litigio pré-existente sobre a aplicação de critérios jurídicos vigentes ao caso. Antes foram elas que estabeleceram o critério a aplicar na destinação desses valores – as verbas depositadas devem ser atribuídas e devolvidas proporcionalmente aos trabalhadores que efetuaram os respetivos descontos ou, em caso de falecimento dos respetivos titulares, a entrega deverá ser feita aos respectivos herdeiros legais – fornecendo, assim, a regra jurídica que permitirá aos tribunais solucionar eventuais conflitos relativos à titularidade desses valores.
Isto é, o conteúdo das normas de cuja constitucionalidade se duvida, embora referenciado a uma situação concretizada, não reveste, todavia, a natureza de uma decisão jurisdicional. Ela fornece, sim, o critério de futuras decisões que haja necessidade de proferir para solucionar eventuais litígios sobre a titularidade dos referidos valores face às normas agora emitidas.
Quanto à influência que a aprovação destas normas possa ter sobre a decisão que venha a ser proferida na ação interposta pela ANAM, no Tribunal Judicial de Santa Cruz, há que ter presente que qualquer modificação das regras em vigor no ordenamento jurídico ou a aprovação de novas regras, cuja aplicação se estenda às ações pendentes nos tribunais, poderá sempre interferir com o sentido das decisões que nelas venham a ser proferidas, sem que isso constitua uma ingerência ilegítima da função legislativa na administração da justiça. Apenas é exigível, sendo esse cuidado redobrado nas leis que visem regular situações concretas, que tais medidas legislativas não tenham como escopo conformar o sentido da decisão judicial a proferir numa determinada ação pendente em tribunal. Esse não é o caso das normas sob fiscalização, relativamente à ação instaurada pela ANAM contra incertos, uma vez que, com a propositura daquela ação, a ANAM apenas pretendia libertar-se da obrigação de guarda dos valores integrantes do suporte financeiro inicial do “Fundo Social da Direção Regional dos Aeroportos”, não se discutindo aí a sua titularidade.
A intervenção do legislador regional ao emitir as normas em análise não violou, pois, o princípio da separação de poderes, dado que não se traduziu numa invasão da função jurisdicional do Estado reservada aos tribunais.
Tendo-se verificado que neste caso não ocorre uma invasão da reserva da função jurisdicional, a qual, na Constituição, já resulta do princípio da separação de poderes, fica prejudicada a apreciação desta mesma questão à luz do direito a um processo equitativo invocado pelo Requerente.
8. Da análise efetuada resulta que não se revela que as normas fiscalizadas violem qualquer um dos princípios ou direitos constitucionais invocados pelo Requerente, não se vislumbrando também que possam infringir qualquer outro parâmetro constitucional, pelo que não devem ser declarados inconstitucionais os artigos 1.º e 2.º, do Decreto que “assegura a devolução proporcional dos descontos realizados pelos trabalhadores da ANAM para um fundo social criado em 1993”, aprovado pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, em sessão plenária de 17 de julho de 2012.
*
Decisão
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide não se pronunciar pela inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 1.º e 2.º do Decreto que “assegura a devolução proporcional dos descontos realizados pelos trabalhadores da ANAM para um fundo social criado em 1993”, aprovado pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira em sessão plenária de 17 de julho de 2012.
Lisboa, 22 de agosto de 2012.- João Cura Mariano – Ana Guerra Martins – Catarina Sarmento e Castro – Maria Lúcia Amaral – Maria José Rangel de Mesquita – Maria de Fátima Mata-Mouros – Rui Manuel Moura Ramos.