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Processo nº 635/99
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
1. O Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal Constitucional, como representante do Ministério Público, veio 'requerer, ao abrigo dos artigos 281º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa e 82º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, que o Tribunal Constitucional aprecie e declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 107º, nº 1, alínea b) do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro', dizendo que 'tal norma foi explicitamente julgada organicamente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 168º, nº 1, alínea h) da Constituição, na redacção da Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho, pelos acórdãos nºs 70/99, de 3 de Fevereiro, da 1ª Secção, 269/99 e 273/99, ambos de 5 de Maio e da 3ª Secção deste Tribunal, de que se juntam cópias'.
2. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54º e 55º, nº
3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o Primeiro-Ministro ofereceu o merecimento dos autos.
3. Feito por este Plenário o debate preliminar a que se refere o artigo 63º, da Lei nº 28/82, na redacção do artigo 1º, da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, e fixada que foi a orientação do Tribunal, seguiu-se a distribuição ao relator, cumprindo agora formatar a decisão.
4. O questionado artigo 107º, nº 1, alínea b) do Regime do Arrendamento Urbano
(doravante RAU), dispõe como segue:
'Artigo 107º Limitações
1 - O direito de denúncia do contrato de arrendamento, facultado ao senhorio pela alínea a) do nº 1 do artigo 69º, não pode ser exercido quando no momento em que deva produzir efeitos ocorra alguma das seguintes circunstâncias: a) (...) b) Manter-se o arrendatário no local arrendado há 30 ou mais anos, nessa qualidade.
2 (...)'.
Tal norma foi julgada inconstitucional, por violação do disposto no artigo 168º, nº 1, h), da Constituição, na redacção da Lei de Revisão Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho, no acórdão do Tribunal Constitucional nº 70/99, publicado no Diário da República, II Série, nº 20, de 6 de Abril de 1999, e esse julgamento foi depois seguido nos acórdãos nºs 269/99 e 273/99, publicados no mesmo Diário, II Série, nºs 182, de 6 de Agosto de 1999, e 246, de 21 de Outubro, 476/99 e
682/99, estes inéditos. No citado acórdão nº 70/99 usou-se a seguinte fundamentação:
'5-Nos termos do artigo 168º, nº 1, alínea h), da Constituição, o regime geral de arrendamento urbano integra a reserva relativa de competência da Assembleia da República. O Tribunal Constitucional tem entendido que esse regime compreende 'as regras relativas à celebração de tais contratos e às suas condições de validade, definidoras (imperativa ou supletivamente) das relações (direitos e deveres) dos contraentes durante a sua vigência e definidoras, bem assim, das condições e causas da sua extinção' (cf. Acórdãos nºs 352/92 – inédito - e 311/93 – D.R., II Série, de 22 de Julho de 1993). A definição dos pressupostos condicionantes do exercício pelo senhorio, do direito de denúncia do arrendamento para habitação do andar locado respeita a aspectos significativos e substantivos do regime legal do contrato, pelo que se encontra compreendida no âmbito da reserva de competência legislativa relativa da Assembleia da República. Nessa medida, a alteração do prazo de arrendamento (de vinte para trinta anos) susceptível de impedir o exercício do direito de denúncia pelo senhorio teria necessariamente de estar legitimado pela lei de autorização legislativa (Lei nº42/90, de 10 de Agosto).
6-A única norma da lei de autorização legislativa relevante para a decisão da questão de constitucionalidade em apreciação no presente recurso é a contida na alínea c) do artigo 2º da Lei nº 42/90, de 10 de Agosto. Tal preceito estabelece como directriz do decreto-lei autorizado a 'preservação das regras socialmente
úteis que tutelam a posição do arrendatário'. O Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 311/93, considerou que 'a autorização comporta o entendimento de que o Governo ficou credenciado para eliminar as regras que, visando embora a defesa do arrendatário, no entanto, se revelaram socialmente imprestáveis, designadamente porque se subvertiam princípios basilares do ordenamento jurídico ou tratavam desigualmente os contraentes, sem que para tanto houvesse fundamento'. Ora, o regime anteriormente vigente (prazo de vinte anos para impedir a denúncia do arrendamento pelo senhorio) não subvertia princípios basilares do ordenamento jurídico, nem representava uma solução normativa arbitrária. Com efeito, tal solução, consagrada desde 1979, representava uma opção legislativa fundada na ideia de que uma permanência inquestionavelmente duradoura (vinte anos) no local arrendado deveria ser bastante para obstar à denúncia da relação locatícia, fazendo prevalecer o interesse do inquilino sobre o interesse do senhorio. Tal solução, discutível em sede de opções de política legislativa, não se configurava como 'anómala', 'socialmente imprestável' ou promotora de um claro desequilíbrio ou de uma injusta composição dos interesses em causa, pelo que a sua alteração não estava abrangida pela autorização legislativa contida no artigo 2º, alínea c), da Lei nº 42/90, de 10 de Agosto. Nessa medida, o Governo não se encontrava habilitado para proceder à alteração do prazo previsto no artigo 107º, nº 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano'. Este fundamento foi acolhido nos acórdãos posteriores, que remeteram para a sua doutrina, acrescentando-se ainda no acórdão nº 273/99:
'Desde logo, não pode haver dúvidas de que está em causa uma alteração do
'regime geral do arrendamento urbano' (ver, a este propósito, no que toca à relevância da regulamentação da denúncia do contrato dentro do regime do arrendamento urbano, os acórdãos nºs 311/93, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24º vol., pág. 207 e segs. e 127/98, publicado no Diário da República, II, de 28 de Maio de 1998). Dúvidas também se não levantam quanto à verificação de que a alteração está abrangida pelo objecto da Lei nº 42/90, de 10 de Agosto, cujo artigo 1º estabelece que 'É concedida ao Governo autorização para alterar o regime jurídico do arrendamento urbano'. O que, porém, não foi respeitado, na alteração que nos ocupa, foi o sentido com que a autorização deveria ter sido utilizada, como facilmente se depreende da leitura das diversas alíneas no artigo 2º da mesma Lei. Em particular, pode mesmo dizer-se que a alteração contraria abertamente a directriz traçada pela sua alínea c), que determina que as alterações hão-de preservar as 'regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário'. Como se julgou no acórdão nº 426/98, publicado no Diário da República, II Série, de 9 de Dezembro de 1998, 'um dos vectores fundamentais em que se traduz a tutela da posição do arrendatário na legislação portuguesa em vigor há mais de setenta anos reside precisamente no estabelecimento de limites ao exercício da liberdade de o senhorio pôr termo ao contrato de arrendamento. As regras de que resulta a limitação da autonomia privada do senhorio no domínio da cessação do contrato são seguramente as mais importantes regras de tutela da posição do arrendatário. A lei de autorização legislativa não contém qualquer elemento que permita a diminuição da tutela da posição do arrendatário ou que indicie a intenção de lhe sobrepor um outro interesse – o interesse do senhorio ou dos seus descendentes. Pelo contrário, a lei refere-se expressamente à ‘preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário’. A desconsideração do interesse do arrendatário na regulamentação da cessação do contrato só poderia legitimamente acontecer perante uma determinação nesse sentido do órgão com competência legislativa reservada na matéria'. Havendo que aderir a tal doutrina, pois inexistem motivos que imponham a divergência, segue-se confirmar o mesmo juízo de inconstitucionalidade orgânica, nada mais se adiantando.
5. Fica registado também que a mesma norma do artigo 107º, nº 1, b), do RAU foi ainda julgada inconstitucional, por este Tribunal, por violação do artigo 2º da Constituição, interpretada no sentido de abranger os casos em que já decorrera integralmente, no domínio da lei antiga, o tempo de permanência do arrendatário
, indispensável, segundo essa lei, para impedir o exercício do direito de denúncia pelo senhorio. Assim aconteceu nos acórdãos nºs 259/98 e 270/99, publicados no Diário da República, II Série, nº 258, de 7 de Novembro de 1998 e nº 161, de 13 de Julho de 1999, respectivamente, e 682/99, inédito. Todavia, alcançada a inconstitucionalidade orgânica de toda a norma, não se torna necessário a sua apreciação, na dimensão em que foi julgada parcialmente inconstitucional naqueles arestos.
6. Termos em que, DECIDINDO, o Tribunal Constitucional declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 107º, nº
1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº
321-B/90, de 15 de Outubro, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea h), da Constituição, na redacção da Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho. Lisboa, 16 de Fevereiro de 2000 Guilherme da Fonseca Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida (vencido, nos termos da declaração junta ao Acórdão
70/99, referido no texto do acórdão) Paulo Mota Pinto (vencido, nos termos da declaração de voto que junto) Bravo Serra (vencido, pelas razões aduzidas na declaração de voto aposta ao vertente Acórdão pelo Exmº Conselheiro Paulo Mota Pinto, para a qual, com vénia, remeto) Messias Bento (vencido, pelo essencial das razões da declaração de voto do Exmº Conselheiro Paulo Mota Pinto) José Manuel Cardoso da Costa (vencido, pelo essencial das razões da declaração de voto do Exmº Conselheiro Mota Pinto, bem como das constantes da declaração de voto do Exmº Conselheiro Vítor Nunes de Almeida, no processo nº 70/99).
Declaração de voto Votei vencido pelas razões constantes da declaração de voto que juntei ao Acórdão n.º 70/99, nos termos que se seguem:
«1. A meu ver, o Governo dispunha de autorização legislativa bastante para, no artigo 107º, n.º 1, alínea b) do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), alargar de
20 para 30 anos o tempo de permanência do arrendatário, como tal, no local arrendado, para efeitos de obstar ao exercício pelo senhorio do direito de denúncia para habitação própria. Essa autorização resulta, a meu ver, não só da própria alínea c), do artigo 2º da Lei n.º 42/90, de 10 de Agosto, tal como foi entendida pelo Tribunal Constitucional quando procedeu à fiscalização abstracta da constitucionalidade desse diploma legal, como da alínea b) do mesmo artigo, correctamente interpretada (isto é, com o único sentido que lhe confere utilidade, e que, como tal, é de preferir pelo intérprete).
2. Entendo, na verdade, que o artigo 107º, n.º 1, alínea b), do RAU (norma que, aliás, não foi considerada organicamente inconstitucional por este Tribunal no Acórdão n.º 259/98, publicado no Diário da República, II série, de 7 de Novembro de 1998), respeita a directriz constante da alínea c) do citado artigo 2º, de
'preservação das regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário', com o sentido que para ela foi já precisado pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 311/93 (publicado no Diário da República, n.º 170, de 22 de Julho de 1993) - isto é, o 'de que o Governo ficou credenciado para eliminar as regras que, visando embora a defesa do arrendatário, no entanto se revelavam socialmente imprestáveis, designadamente porque subvertiam princípios basilares do ordenamento jurídico ou tratavam desigualmente os contraentes sem que para tanto houvesse fundamento material.' Ficou nessa ocasião claro, portanto, que não se divisa nessa alínea c) uma prescrição de manutenção de todas e cada uma das concretas regras do regime anterior do arrendamento urbano que fossem favoráveis aos arrendatários. Um tal entendimento, restritivo e divergente do seguido anteriormente pelo Tribunal (e antes defendido apenas em declarações de voto de vencido), não deve, a meu ver, ser adoptado, por desconsiderar a limitação dessa alínea c) às 'regras socialmente úteis' e conduzir a uma inevitável contradição do legislador, por exemplo, entre as alíneas b) e c) do artigo 2º da Lei n.º 42/90 (uma vez que a directriz de facilitação do funcionamento da cessação do contrato, ainda que através da mera simplificação das suas regras substantivas, teria de se considerar violadora do referido imperativo legal de manutenção das concretas regras favoráveis ao arrendatário). A meu ver, o Tribunal Constitucional deverá apenas averiguar se a preservação das regras do arrendamento urbano, efectuada pelo legislador do RAU, se filiou, segundo a ponderação desse legislador, num juízo relativo à 'utilidade social' de tais regras. Já não creio que o Tribunal deva substituir-se ao legislador, para, a propósito do controlo da constitucionalidade orgânica do RAU, refazer
(ou desfazer) aquela consideração de prestabilidade ou 'utilidade social' – deste modo, porventura, também paulatinamente 'desfazendo' as alterações que o legislador entendeu conveniente introduzir nas regras do regime do arrendamento urbano.
3. Não penso, pois, que da alínea c) do artigo 2º da Lei n.º 42/90 resulte qualquer obstáculo ao artigo 107º, n.º 1, alínea b), do RAU. Entendo, antes, que a emanação de tal norma estava credenciada por lei de autorização legislativa nos termos, quer da alínea c), quer da alínea b) do artigo 2º da Lei n.º 42/90
(assim, também, as declarações de voto que juntei aos Acórdãos n.º 426/98 e
427/98 - o primeiro publicado no Diário da República, II série, de 9 de Dezembro de 1998). Segundo esta alínea b), o legislador ficou habilitado a efectuar a
'simplificação dos regimes relativos à formação, às vicissitudes e à cessação do respectivo contrato, de modo a facilitar o funcionamento desse instituto'. Ora, esta disposição não pode, em meu entender, ter um alcance meramente processual, devendo dizer respeito a aspectos verdadeiramente substantivos do regime da cessação do contrato de arrendamento. É que apenas para estes existe necessidade de autorização legislativa (como se salientou no n.º 2 do referido Acórdão n.º
311/93), sendo o entendimento referido o único que confere utilidade ao preceito. Isto, sendo certo que, no presente caso, o alargamento do prazo de permanência no locado como arrendatário, de 20 para 30 anos, nem sequer representou uma verdadeira eliminação de um obstáculo ao funcionamento da cessação do contrato, mas, apenas, uma sua limitação, susceptível de ser reconduzida à autorização para 'facilitar o funcionamento' do instituto da cessação do contrato. Com estes fundamentos, não teria julgado a norma em apreço inconstitucional.» Paulo Mota Pinto