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Proc. nº 606/99
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. J. St. deduziu oposição à execução fiscal a correr termos no Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto, sob o nº 1905/94, na qual foi chamado a responder, subsidiariamente e na qualidade de terceiro adquirente da fracção autónoma pertencente anteriormente ao devedor originário, pela dívida deste à Segurança Social, nos termos do artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio. Para tanto, invocou a inconstitucionalidade do referido preceito, por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição. O Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto, por decisão de 6 de Outubro de
1998, julgou a oposição procedente, não tendo chegado a apreciar a questão de constitucionalidade suscitada, uma vez que a procedência de um dos fundamentos da oposição prejudicou a apreciação dos demais. A Fazenda Pública interpôs recurso da decisão de 6 de Outubro de 1998 para o Supremo Tribunal Administrativo. O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 16 de Junho de 1999, considerou que a norma contida no artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, ao consagrar um privilégio creditório dispensado de registo (não podendo o adquirente do imóvel informar-se das dívidas do proprietário, devido ao sigilo fiscal), viola o princípio da confiança ínsito no artigo 2º da Constituição e é desproporcionada, violando o disposto no artigo 18º, nº 2, da Constituição. O Tribunal entendeu, também, que o Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, carecia de referenda ministerial, originando a sua falta a respectiva inexistência jurídica. Em consequência, recusou a aplicação da referida norma, por inconstitucionalidade, negando provimento ao recurso interposto pela Fazenda Pública.
2. O Ministério Público interpôs recurso obrigatório do acórdão de
16 de Junho de 1999, ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea a), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio.
Junto do Tribunal Constitucional, o Ministério Público apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
1° - O privilégio imobiliário geral conferido à Segurança Social pelo artigo 11º do Decreto-Lei 103/80 - conferindo a esta um direito real de garantia. dotado de sequela, sobre todos os imóveis existentes, à data da instauração de execução, no património da entidade devedora, oponível, independentemente de registo, a todos os adquirentes de direitos reais de gozo sobre aqueles bens, viola, em termos intoleráveis, o princípio da confiança, ínsito no do Estado de direito democrático, bem como a garantia constitucional da propriedade privada.
2° - Na verdade, a eficácia conferida a tal privilégio 'oculto', oponível a quem, confiando de boa fé no registo predial, adquiriu e registou direitos sobre os bens por ele onerados - estando impossibilitado de, em termos práticos e jurídicos, averiguar da existência de dívidas 'privilegiadas', a cargo do transmitente - ao permitir que possa ver o seu património responsabilizado pelo pagamento de avultadas quantias pecuniárias, devidas por quem lhe transmitiu o direito, afecta, em termos desproporcionados, a boa fé, a confiança no comércio jurídico e a garantia da propriedade privada.
3° - Sendo certo que a lesão dos direitos do adquirente não encontra suporte razoável e adequado na natureza e destino dos créditos da Segurança Social. já que a Administração Fiscal dispunha de meios idóneos para - por outras vias e com respeito por tais princípios constitucionais - assegurar a efectividade dos seus créditos.
4° - Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade material formulado na decisão recorrida.
O recorrido não contra-alegou.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
4. O preceito impugnado tem a seguinte redacção: Artigo 11º
(Privilégio imobiliário) Os créditos pelas contribuições, independentemente da data da sua constituição, e os respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo
478º do Código Civil.
A decisão recorrida considerou que a norma contida no artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, é juridicamente inexistente, nos termos do artigo 141º, nº 3, da Constituição, na redacção originária, por falta de referenda ministerial.
Ora, à data do diploma em apreciação, considerava-se genericamente, quer na doutrina quer na jurisprudência da Comissão Constitucional, que a assinatura de um decreto-lei pelo Primeiro-Ministro e pelos membros do Governo podia ser convolada em referenda, nos casos em que não se invocava a sucessão de governos entre a data da aprovação do diploma e a data da sua promulgação (cf. Parecer da Comissão Constitucional nº 5/80 - Pareceres da Comissão Constitucional,. 11º volume, p.129 e ss.).
É a esta luz que se apreciará o vício formal detectado na decisão recorrida, considerando-se o mesmo suprido em função da prévia assinatura pelos membros do Governo que seriam competentes para a aposição de ulterior referenda.
5. Nos presentes autos, o recorrido adquiriu um imóvel, sobre o qual impendia um privilégio creditório não registado (cf. fls. 17), do qual o adquirente não podia tomar conhecimento, vendo-se confrontado, sete anos após a aquisição, com uma execução fiscal por dívidas do anterior proprietário à Segurança Social, à qual é chamado a responder, subsidiariamente, e na qualidade de terceiro adquirente da fracção autónoma onerada. Como se referiu, o recorrido não podia tomar conhecimento das dívidas à Segurança Social do transmitente, em virtude do princípio da confidencialidade tributária. A norma em apreciação, na dimensão em que foi desaplicada na decisão recorrida, consagra, pois, um verdadeiro ónus 'oculto', que surpreende o terceiro proprietário (que, no caso, registou de imediato a propriedade a seu favor já na fase de execução fiscal).
Tal norma não é compatível com o princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito, consagrado no artigo 2º da Constituição, como se demonstrará.
6. O Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 160/2000, de 22 de Março (inédito) procedeu à apreciação da conformidade à Constituição das normas contidas nos artigos 2º do Decreto-Lei nº 512/76, de 3 de Julho, e 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 19 de Maio, interpretado no sentido de o privilégio imobiliário geral neles conferido preferir à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil. Nesse aresto, depois de sublinhar a diferença entre a situação em apreciação e a situação decidida no Acórdão nº 688/98 (D.R., II Série, de 5 de Março de 1999), no qual o Tribunal Constitucional apreciou a conformidade à Constituição do artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80, que estabelece um privilégio mobiliário geral para os créditos da Segurança Social (tendo decidido não julgar inconstitucional tal norma), o Tribunal realçou que a dimensão normativa impugnada confere ao privilégio em causa a natureza de verdadeiro direito real de garantia munido de sequela sobre todos os imóveis existentes no património da entidade devedora das contribuições para a previdência, à data da instauração da execução com preferência sobre outros direitos reais de garantia (nomeadamente, a hipoteca) e à margem do registo.
De seguida, e ressalvando a possibilidade de ser reconhecido algum privilégio aos créditos da Segurança Social, expresso, nomeadamente, na quebra do princípio da 'par conditio creditorum' (como já se havia sustentado no citado Acórdão nº 688/99) ou a possibilidade de se atribuir um regime procedimental específico para a cobrança de tais créditos (Acórdãos nºs 51/99 e 281/99 - D.R., II Série, de 5 de Abril de 1999 e inédito, respectivamente), o Tribunal Constitucional afirmou que 'o princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático, postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhe são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar'.
Interrogando-se sobre 'que segurança jurídica, constitucionalmente relevante, terá o cidadão perante uma interpretação normativa que lhe neutraliza a garantia real (hipoteca) por si registada, independentemente de o ter sido em data posterior ao início da vigência das normas em causa', o Tribunal referiu que, 'por um lado, o registo predial tem uma finalidade prioritária que radica essencialmente na ideia de segurança e protecção dos particulares, evitando ónus ocultos que possam dificultar a constituição e circulação de direitos com eficácia real sobre ímóveis, bem como das respectivas relações jurídicas - que, em certa perspectiva, possam afectar a segurança do comércio jurídico imobiliário' e que, por outro, 'o princípio da confidencialidade tributária impossibilita os particulares de previamente indagarem se as entidades com quem contratam são ou não devedoras ao Estado ou à Segurança Social'.
Assim, o Tribunal Constitucional ponderou o seguinte: 'não estando o crédito da Segurança Social sujeito a registo, o particular que registou o seu privilégio, uma vez instaurada a execução com fundamento nesse crédito privilegiado, ou que ali venha a reclamar o seu crédito, pode ser confrontado com uma realidade - a existência de um crédito da Segurança Social - que frustra a fiabilidade que o registo naturalmente merece'. Não se encontrando este privilégio sujeito ao limite temporal e atento o seu âmbito de privilégio
‘geral’, e não existindo qualquer conexão entre o imóvel onerado pela garantia e o facto que operou a dívida (no caso à Segurança Social), ao contrário do que sucede com os privilégios especiais referidos nos artigos 743º e 744º do Código Civil, a sua subsistência, com a amplitude acima assinalada, implica também uma lesão desproporcionada do comércio jurídico'. O Tribunal sublinhou ainda que a
'Segurança Social dispõe de meios adequados para assegurar a efectividade dos seus créditos, sem frustração das expectativas de terceiros: bastar-lhe-á proceder ao oportuno registo de hipoteca legal, nos termos do artigo 12º do Decreto-Lei nº 103/80'.
Consequentemente, o Tribunal Constitucional concluiu que a interpretação normativa então em apreciação viola o princípio da confiança,
ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição'.
7. Nos presentes autos acolher-se-á o entendimento constante do Acórdão nº 160/2000.
Com efeito, a tutela dos interesses do terceiro adquirente do imóvel impedirá que este venha a ser inesperada e imprevisivelmente confrontado com a existência de um privilégio oculto. Por outro lado, nenhuma das finalidades prosseguidas pela Segurança Social legitima ou exige o benefício de um privilégio com essa natureza. Assim, o privilégio imobiliário geral conferido à Segurança Social pelo artigo
11º do Decreto-Lei nº 103/80, dotado de sequela sobre todos os imóveis existentes à data da instauração da execução no património do devedor, oponível independentemente do registo a todos os adquirentes de direitos reais de gozo sobre os bens onerados (não tendo o adquirente a possibilidade de se informar sobre as dívidas do anterior proprietário, em face do sigilo fiscal), configurando-se como um verdadeiro ónus oculto, afecta, em termos desproporcionados, a boa fé e a confiança no comércio jurídico.
Conclui- se, pois, que a norma em apreciação, no entendimento agora referido, é inconstitucional, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição, em conjugação com o artigo 18º, nº 2, da Constituição
III Decisão
8. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional nega provimento ao recurso.
Lisboa, 5 de Julho de 2000 Maria Fernanda Palma Bravo Serra Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto (vencido, nos termos da declaração de voto junta) José Manuel Cardoso da Costa
Declaração de voto Votei a decisão por entender que a norma do artigo 11º do Decreto-Lei n.º
103/80, de 9 de Maio, se interpretada no sentido de consagrar um privilégio creditório imobiliário geral oponível a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele é inconstitucional, por violação do artigo 2º da Constituição. Entendo, porém, que tal interpretação da norma em apreço – correspondente embora àquela cuja aplicação foi recusada na decisão recorrida – não resulta, nem da sua letra (no citado artigo 11º não se refere qualquer oponibilidade a terceiros), nem do seu enquadramento sistemático (no artigo 12º do mesmo diploma prevê-se uma hipoteca legal para garantia do pagamento das contribuições à segurança social), e que, levando à existência de um direito real, mesmo de garantia, sobre todo o património imobiliário, contraria o princípio da especialidade ou individualização do objecto dos direitos das coisas (v., por todos, Orlando de Carvalho, Direito das coisas, Coimbra, 1977, págs. 220 e segs.). Logo por estas razões, impunha-se-me a conclusão de que aos privilégios imobiliários gerais criados por lei ordinária posteriormente ao Código Civil, como o previsto na norma em apreço, é de aplicar o artigo 749º daquele código, nos termos do qual 'o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente' (neste sentido, expressamente, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das obrigações, 5ª ed., Coimbra, 1991, pág.
825). Para além disto, estando em causa privilégios creditórios – ou seja, e como se sabe, garantias que, por definição (veja-se o artigo 733º do Código Civil), não são registadas –, tal conclusão (segundo a qual, repete-se, a norma em causa atribui uma mera preferência creditícia, não oponível a terceiros adquirentes da coisa ou de um direito real sobre ela) afigura-se-me também a única conforme à Constituição. Frise-se, aliás, que o artigo 12º do Decreto-Lei n.º 103/80 prevê já, como disse, uma hipoteca legal – objecto de registo – sobre os imóveis existentes no património das entidades patronais, e que, como se diz no presente aresto, nada legitima ou exige o estabelecimento do benefício de um privilégio creditório – por definição não registado – oponível a terceiros. Pelo que teria, com base no disposto no artigo 80º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, determinado a aplicação, no caso dos autos, do artigo 11º do Decreto-Lei n.º 103/80 com a interpretação segundo a qual lhe é aplicável o disposto no artigo 749º do Código Civil. Paulo Mota Pinto