Imprimir acórdão
Proc. nº 386/2000
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
I Relatório
1. M. G., M. S., V. B., S. A., M. B. G., A. S., C. S., C. R., A. R., C. A. e M. A., expropriados nos autos de expropriação em que figura como expropriante Valorminho - Valorização e Tratamento de Resíduos Sólidos, SA, interpuseram, junto do Tribunal Judicial de Valença, recurso da decisão arbitral que atribui à parcela exproprianda o valor de 23.478.901$00. No respectivo requerimento de recurso, os expropriados afirmaram que a decisão arbitral violou o artigo 62º, nº 2, da Constituição.
O Tribunal Judicial da Comarca de Valença, por decisão de 15 de Julho de 1999, considerou, de acordo com a classificação dos peritos do Tribunal, que a parcela exproprianda deve ser qualificada como solo apto para outros fins, nos termos do artigo 24º, nº 1, alínea b), do Código das Expropriações. Em consequência, e aplicando os critérios do artigo 26º do Código das Expropriações, fixou a indemnização a pagar pela expropriante no valor de
38.832.000$00, concedendo provimento parcial ao recurso.
2. Os expropriados interpuseram recurso da sentença de 15 de Julho de 1999 para o Tribunal da Relação do Porto. Nas respectivas alegações, sustentaram que a avaliação do terreno efectuada pelos peritos do tribunal viola o artigo 62º da Constituição, afirmando ainda que a 'interpretação' dos peritos
'da maioria' é igualmente inconstitucional. Os expropriados referiram que a interpretação feita pelos peritos e pelo juiz a quo dos artigos 24º, 25º e 26º do Código das Expropriações, nomeadamente a interpretação dos artigos 24º, nº 5, e 26º do mesmo Código 'por forma a atenderem apenas à vertente rústica do prédio e ao seu rendimento florestal', viola o nº 2 do artigo 62º da Constituição, concluindo que a decisão recorrida é inconstitucional. Nas conclusões, afirmaram que os nºs 4 e 5 do artigo 24º do Código das Expropriações viola os artigos 13º e 62º da Constituição e que o laudo de fls. 208 a 210 fez uma interpretação igualmente inconstitucional dos artigos 22º, 23º, 24º, 25º e 26º do Código das Expropriações. Os expropriados disseram ainda que 'o disposto no nº 5 do artigo
24ºdo Código das Expropriações interpretado por forma a excluir da classificação de solo apto para construção os solos integrados em zona de produção florestal é inconstitucional'.
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 28 de Março de 2000, considerou o terreno expropriado como apto para outros fins, nos termos do artigo 24º, nºs 1, alínea b), e 2, do Código das Expropriações, confirmando a sentença recorrida e determinando que a indemnização seja actualizada à data da decisão final.
3. Os expropriados interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e
70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição dos artigos 22º, 23º, 24º, 25º e 26º do Código das Expropriações.
4. Os preceitos impugnados têm a seguinte redacção: Artigo 22º Direito à indemnização
1. A expropriação por utilidade pública de quaisquer bens ou direitos confere ao expropriado o direito de receber o pagamento contemporâneo de uma justa indemnização.
2. A justa indemnização não visa compensar o beneficio alcançado pelo expropriante, mas ressarcir o prejuízo que para o expropriado advém da expropriação, medida pelo valor do bem expropriado, fixada por acordo ou determinada objectivamente pelos árbitros ou por decisão judicial, tendo em consideração as circunstâncias e as condições de facto existentes à data da declaração de utilidade pública.
3. Para determinação do valor dos bens não pode tomar-se em consideração a mais-valia que resultar da própria declaração de utilidade pública da expropriação para todos os prédios da zona em que se situa o prédio expropriado. Artigo 23º Cálculo do montante da indemnização
1. O montante da indemnização calcula-se com referência à data da declaração de utilidade pública, sendo actualizado à data da decisão final do processo de acordo com a evolução do índice de preços no consumidor, com exclusão de habitação.
2. O índice referido no número anterior será o publicado pelo Instituto Nacional de Estatística relativamente ao local da situação dos bens ou da sua maior extensão. Artigo 24º Classificação de solos
1. Para efeito do cálculo da indemnização por expropriação, o solo classifica-se em: a) Solo apto para a construção; b) Solo para outros fins.
2. Considera-se solo apto para a construção: a) O que dispõe de acesso rodoviário e de rede de abastecimento de água, de energia eléctrica e de saneamento, com características adequadas para servir as edificações nele existentes ou a construir; b) O que pertença a núcleo urbano não equipado com todas as infra-estruturas referidas na alínea anterior, mas que se encontre consolidado por as edificações ocuparem dois terços da área apta para o efeito; c) O que esteja destinado, de acordo com plano municipal de ordenamento do território plenamente eficaz, a adquirir as características descritas na alínea a); d) O que, não estando abrangido pelo disposto nas alíneas anteriores, possua, todavia, alvará de loteamento ou licença de construção em vigor no momento de declaração de utlidade pública.
3. Para efeitos da aplicação do presente Código é equiparado a solo apto para construção a área de implantação e o logradouro das construções isoladas até ao limite do lote padrão, entendendo-se este como a soma da área de implantação da construção e da área de logradouro até ao dobro da primeira.
4. Considera-se solo para outros fins o que não é abrangido pelo estatuído nos dois números anteriores.
5. Para efeitos da aplicação do presente Código é equiparado a solo para outros fins o solo que, por lei ou regulamento, não possa ser utilizado na construção.
Artigo 25º Cálculo do valor do solo apto para a construção
1. O valor do solo apto para a construção calcula-se em função do valor da construção nele existente ou, quando for caso disso, do valor provável daquela que nele seja possível efectuar de acordo com as leis e regulamentos em vigor, num aproveitamento economicamente normal, à data da declaração de utilidade pública, devendo ter-se em conta a localização e a qualidade ambiental.
2. Num aproveitamento economicamente normal, o valor do solo apto para a construção deverá corresponder a 10% do valor da construção, no caso de dispor apenas de acesso rodoviário, sem pavimento em calçada, betuminoso ou equivalente.
3. A percentagem a que se refere o número anterior será acrescida nos termos seguintes: a) Pavimentação em calçada, betuminoso ou equivalente junto da parcela -
1%; b) Rede de abastecimento domiciliário de água, com serviço junto da parcela – 1%; c) Rede de saneamento, com colector em serviço junto da parcela - 1,5%; d) Rede de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão, com serviço junto da parcela - 1%; e) Rede para drenagem de águas pluviais, com colector em serviço junto da parcela - 0,5%; f) Estação depuradora, em ligação com a rede de colectores de saneamento junto da parcela - 2%; g) Rede distribuidora de gás - 2%; h) Localização e qualidade ambiental - 15%.
4. Se o custo da construção for substancialmente agravado ou diminuído pelas especiais condições do local, o montante do acréscimo ou da diminuição daí resultante será reduzido ou adicionado ao valor da edificação a considerar para efeito da determinação do valor do terreno.
5. A parte do solo apto para a construção que exceder a profundidade de 50 m, relativamente a todos os arruamentos que o ladeiam, e que não possa ser aplicada na construção corresponderá, no caso de ser economicamente justificável, um valor unitário de 20% do valor unitário da parte restante, determinado nos termos dos números anteriores.
6. Num aproveitamento economicamente normal, o valor do solo apto para a construção, em áreas críticas de recuperação e reconversão urbanística, legalmente fixadas, terá ainda em consideração que: a) A percentagem será aplicada ao valor da construção efectivamente nele inserida e considerada até ao limite do lote padrão; b) Tratando-se de terreno livre, o volume e o tipo de construção a considerar, para cálculo do seu eventual valor, não deverão exceder os da média das construções existentes do lado do traçado do arruamento em que se situem, compreendido entre dois arruamentos consecutivos.
Artigo 26º Cálculo do valor do solo para outros fins
1. O valor dos solos para outros fins será calculado tendo em atenção os seus rendimentos efectivos ou possível no estado existente à data da declaração de utilidade pública, a natureza do solo e do subsolo, a configuração do terreno e as condições de acesso, as culturas predominantes e o clima da região, os frutos pendentes e outras circunstâncias objectivas susceptíveis de influírem do respectivo cálculo.
2. Sendo necessário expropriar solos classificados como zona verde ou de lazer por plano municipal de ordenamento do território plenamente eficaz, o valor de tais solos será calculado em função do valor médio das construções existentes ou que seja possível edificar nas parcelas situadas numa área envolvente cujo perímetro exterior se situe a 300 m do limite da parcela expropriada.
5. A relatora proferiu Decisão Sumária ao abrigo do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, no sentido do não conhecimento do objecto do recurso, em virtude de não ter sido suscitada durante o processo qualquer questão de constitucionalidade normativa.
Os recorrentes vêm agora reclamar para a Conferência, ao abrigo do artigo 78º-A, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, sustentando, em síntese, que foram prejudicados pela Decisão Sumária; que se verificam os pressupostos processuais do recurso interposto, dado terem suscitado a inconstitucionalidade dos artigos 22º, 23º, 24º, 15º e 26º do Código das Expropriações; que 'para fazer a subsunção do caso concreto à norma é, antes de mais, necessário que esteja feita uma correcta e constitucional interpretação da lei a ser aplicada'; que não importa a forma como ocorreu a suscitação da inconstitucionalidade durante o processo; e que cabe ao Tribunal Constitucional 'velar pelo respeito do texto fundamental - CRP'.
Os reclamantes não se pronunciaram sobre a questão apreciada no ponto 6 da Decisão Sumária reclamada (não aplicação pela decisão recorrida da dimensão normativa impugnada referente ao artigo 25º, nº 5, do Código das Expropriações).
6. Cumpre decidir.
III Fundamentação
7. Uma vez que os reclamantes não se pronunciaram sobre a questão decidida no ponto 6 da Decisão Sumária reclamada, a presente reclamação não abrange tal questão. Os reclamantes sustentam que nenhum preceito legal exige mais do que aquilo que efectivamente verteram nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação do Porto.
Porém, o artigo 72º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional, estabelece que o recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º do mesmo diploma legal só pode ser interposto pela parte que haja suscitado de modo processualmente adequado a questão de inconstitucionalidade normativa perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida.
Como se referiu na Decisão Sumária reclamada, o Tribunal Constitucional tem vindo a considerar que uma questão de constitucionalidade normativa só se considera suscitada de modo processualmente adequado, quando o recorrente indica a norma que considera inconstitucional, quando identifica o princípio ou norma constitucional violado e quando apresenta uma fundamentação, ainda que sucinta, da inconstitucionalidade apontada. Como também se sublinhou na decisão impugnada, não se considera suscitada uma questão de inconstitucionalidade normativa quando o recorrente imputa o vício de inconstitucionalidade a um conjunto de preceitos mais ou menos vasto, sem identificar com um mínimo de precisão a dimensão normativa impugnada (como aconteceu nos presentes autos).
Sobre os reclamantes impendia, pois, o ónus de identificar a específica dimensão normativa dos artigos 22º, 23º, 24º, 25º e 26º do Código das Expropriações (ou só de algum ou alguns deles) que consideravam inconstitucional. Porém, e como se demonstrou na Decisão Sumária sob reclamação, os reclamantes não cumpriram tal ónus. Na verdade, e, mais uma vez, como se notou na Decisão Sumária, os reclamantes apenas se insurgiram contra a classificação do terreno como apto para outros fins, realçando as
'características', os 'factores' e as 'circunstâncias envolventes', tais como a
'localização', a 'qualidade ambiental', as 'infraestruturas', os 'acessos', as
'potencialidades edificativas' e as 'proximidades de unidades industriais e comerciais', para sustentar que devia ter sido atribuído outro valor à indemnização.
Os reclamantes procuraram sempre e apenas manifestar a sua divergência quanto à aplicação dos critérios normativos. Na perspectiva dos reclamantes, os critérios legais, em face das circunstâncias do caso, levariam a solução diversa da acolhida pelo Tribunal da Relação do Porto. Nunca formularam um juízo de inconstitucionalidade sobre tais critérios, tratando sempre e somente de demonstrar que as características do terreno, de acordo com a lei, implicariam classificação e avaliação diversas daquelas que foram acolhidas no processo.
Ora tal actuação processual não consubstancia a impugnação dos critérios normativos na perspectiva da constitucionalidade. Com efeito, afirmar
(como o fazem os reclamantes nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação do Porto) que, de acordo com a lei vigente, o terreno, com as suas características específicas, deve ser classificado e avaliado de um dado modo, sob pena de inconstitucionalidade e de ilegalidade dessa classificação e dessa avaliação, não implica a inconstitucionalidade dos critérios invocados. Ao invés, pressupõe a bondade (no que interessa no presente recurso, a não inconstitucionalidade) do critério normativo. A estratégia processual adoptada pelos reclamantes nos autos consistiu, portanto e apenas, na reiterada impugnação da concreta classificação dos terrenos e da sua avaliação, ou seja, na impugnação da mera subsunção dos factos à norma, ou ainda de outro modo, na impugnação da decisão judicial, como, de resto, é expressamente afirmado pelos reclamantes a fls 322.
Não foi, pois, suscitada uma questão de constitucionalidade normativa.
6. Por outro lado, não procede o entendimento segundo o qual não importa a forma como ocorreu a suscitação da questão de inconstitucionalidade normativa. Com efeito, os artigos 70º, nº 1, alínea b), e 72º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional, referem, como se demonstrou, que a questão de constitucionalidade normativa tem de ser suscitada de modo processualmente adequado.
Não basta, pois, e, mais uma vez, como se referiu, afirmar que os artigos 22º, 23º, 24º, 25º e 26º do Código das Expropriações são inconstitucionais. Essa afirmação é de tal forma genérica que não permite identificar com um mínimo de precisão a norma ou dimensão normativa impugnada, assim como não permite a percepção do fundamento do vício apontado.
7. Admitindo, porém, que relativamente ao artigo 24º, nº 5, ainda foi identificada uma dimensão normativa, a verdade é que tal norma não foi aplicada pelo Tribunal da Relação do Porto, o qual fundamentou a sua decisão exclusivamente no artigo 24º, nº 2.
8. Por último, sublinhar-se-á que não ocorreu qualquer confusão entre os requisitos de admissibilidade do recurso e os requisitos de conhecimento do objecto do mesmo. Na verdade, na Decisão Sumária reclamada, não se tomou conhecimento do objecto do recurso interposto, em virtude de não se verificarem os respectivos pressupostos processuais.
Improcede, pois, a presente reclamação.
III Decisão
9. Em face do exposto, decide-se indeferir a reclamação, confirmando-se, consequentemente, a Decisão Sumária reclamada.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs.
Lisboa, 28 de Novembro de 2000 Maria Fernanda Palma Bravo Serra Luís Nunes de Almeida