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Processo nº 526/99
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, na 2ª Secção, do Tribunal Constitucional:
1. J. e F., com os sinais identificadores dos autos, vem reclamar junto do Tribunal Constitucional, “ao abrigo do disposto no nº 4 do art. 76º da lei nº
28/82 de 15 de Novembro”, do despacho do Relator dos autos no Supremo Tribunal de Justiça (2ª Secção), que indeferiu o recurso interposto para o Tribunal Constitucional do acórdão do mesmo Supremo, de 18 de Março de 1999, invocando, no que aqui importa, o seguinte:
a) Nesse acórdão, de 18 de Maio de 1999, face a uma arguição de nulidade apresentada pelo ora reclamante, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu, no essencial que:
“Quem, pede uma aclaração de um Acórdão na óptica dos arts. 667º e 669º ambos do C.P.C. – aplicáveis na lógica dos invocados arts. 716 nº 2 e 749º - mostra que concorda com a essência da decisão .../... Ora se concorda, não pode, como é
óbvio, mais tarde, pedir a nulidade do sentenciado”.
b) Ora, a “interpretação e aplicação dos normativos legais indicados naquele aresto é de todo insólita e inesperada” e é “insólita porque não é defensável, sob o ponto de vista lógico, que quem pede uma aclaração de acórdão mostra que concorda com a essência da decisão”.
c) Face ao nº 3 do artigo 670º, aplicável por força do disposto no nº 1 do artigo 716º e no artigo 749º, todos do Código de Processo Civil, a “decisão de rejeitar o requerimento de reclamação por nulidades baseou-se, pois, numa interpretação insólita e inesperada da lei, de que resultou a criação de uma norma que é a de que, como se viu, o prévio requerimento de aclaração de sentença prejudica uma posterior reclamação por nulidades, em virtude de o requerimento da aclaração ter o sentido de concordância com a essência da decisão aclaranda”, pretendendo-se, pois, “ver apreciada a conformidade de tal norma e da sua criação com o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”
E acrescenta ainda o reclamante, para pedir que seja atendida a reclamação, e, em consequência, admitido o recurso de constitucionalidade:
“9- No caso em apreço, tendo a decisão criado, de modo tão particular, tal norma, não era exigível ao ora recorrente prever que essa criação viria a ser possível e viesse a ser adoptada na decisão.
11- O uso inesperado e insólito de tal norma levou a que o ora recorrente não tivesse podido, em momento anterior ao da decisão, representar a possibilidade da sua aplicação.
12- Assim sendo, não se mostra adequado exigir-lhe, no caso concreto, um qualquer juízo de prognose relativo à aplicação dessa norma, em termos de se antecipar ao proferimento da decisão, suscitando desde logo a questão de inconstitucionalidade(s), nos termos da al. b) do nº 1 do art. 70º da Lei nº
28/82 de 15 de Novembro.
13- Só perante a decisão proferida se viu o ora recorrente na possibilidade de arguir a(s) inconstitucionalidade(s) em causa.
14- Tal norma é inconstitucional, por violação do princípio da legalidade. a que os tribunais estão adstritos (art. 203º da C.R.P.). E,
15- É, ainda, inconstitucional por violar o núcleo essencial do direito fundamental de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (art. 20º da C.R.P.), Além disso,
16- A criação de tal norma violou o princípio da separação de poderes, invadindo a esfera da competência do Governo, em matéria legislativa (al. a) do nº 1 do art. 198º da C.R.P.) porquanto, no caso em apreço, não se estava perante uma lacuna da lei que devesse ser integrada nos termos do nº 3 do art. 10º do Cód. Civil, sendo, por isso, inconstitucional”
2. No seu visto, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de que “a presente reclamação deverá ser julgada procedente”, alinhando, para o efeito, as seguintes considerações:
“No caso dos autos, não era efectivamente exigível ao reclamante que tivesse antecipado a interpretação normativa que o STJ fez acerca dos preceitos da lei processual civil que regem a articulação e sequência dos 'incidentes' de aclaração é arguição de nulidade dos acórdãos proferidos pelos Tribunais Superiores - de modo a questionar, no momento em que apresentou o pedido de aclaração, a constitucionalidade do entendimento que, porventura, considerasse precludida a ulterior arguição de nulidade da decisão proferida.
Na realidade a própria literalidade do nº 3 do art. 670º da CRP e o 'praxis' jurisprudencial existente acerca da precedência ou encadeamento de tais meios impugnatórios não tornavam normalmente possível a interpretação normativa que o STJ acabou por fazer no acórdão de fls. 550 - e, nessa medida, não convence o argumento utilizado na decisão de rejeição do recurso de fiscalização concreta interposto. Na verdade, não sendo previsível tal interpretação normativa, não incidia sobre o recorrente o ónus de suscitar, durante o processo, a questão da respectiva inconstitucionalidade, sendo-lhe lícito colocá-la, pela primeira vez, no requerimento de interposição do recurso.
Afigura-se, por outro lado, que o ora reclamante acaba por suscitar, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, de fls. 553/556, uma questão de inconstitucionalidade, relativamente à interpretação normativa que o STJ fez, na decisão recorrida, dos arts. 667º, 669º e 670º, aplicáveis à tramitação do agravo no Supremo - sendo patente, nomeadamente, que o reclamante não imputa directamente a violação do seu direito de acesso à justiça à própria decisão 'construindo', em termos que nos parecem bastantes, a questão
'normativa' a que se reporta o seu recurso.
E tal questão - traduzida afinal , em saber se do direito de acesso aos tribunais, consagrado no art. 20º da Lei Fundamental, flui a pretendida articulação entre os dois meios impugnatórios em causa (a aclaração da decisão proferida, seguindo-se a eventual arguição de nulidades, mesmo que a pretendida aclaração seja rejeitada) - não poderá, a nosso ver, numa análise liminar, considerar-se como 'manifestamente infundada'.
3.Com vistos, vêm os autos à conferência.
Do processo - remetido todo ele para este Tribunal Constitucional, ao arrepio do disposto no artigo 688º, nº 3, do Código de Processo Civil – ressalta, com interesse para a decisão, que, por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de Janeiro de 1999, foi negado provimento ao recurso de agravo interposto pelo reclamante, mantendo-se o decidido, “inclusive na condenação do agravante como litigante de má fé”.
Desse acórdão pediu o agravante a sua aclaração, o que foi indeferido por acórdão de 16 de Março de 1999.
A seguir veio a agravante apresentar “reclamação por nulidades”, por entender, no essencial, que “o acórdão reclamado padece dos vícios de excesso de pronúncia e contradição entre os fundamentos e decisão (als. d) e c) do nº 1 do art. 668º do Cód. Proc. Civil', o que foi indeferido por acórdão de 18 de Maio de 1999, do seguinte teor:
'A - Após ter sido proferido, por este Tribunal, em Acórdão a conhecer de um agravo interposto por J. e F., de uma decisão contida num Acórdão da Relação de Lisboa, veio o agravante pedir a aclaração daquele Acórdão.
Tal pretensão foi desatendida pelo Acórdão de fls. 537 e 538.
Vem, agora, o mesmo agravante apresentar, por novo requerimento, uma reclamação
'por nulidades' do acórdão deste Tribunal que conheceu do agravo.
Notificado o agravado – B. B., PLC - nada disse.
B - Cumpre decidir.
A circunstância do agravante ter pedido a aclaração do Acórdão deste tribunal que conheceu do agravo, ao abrigo dos artºs 716 nº 2 e 749, ambos do Código P. Civil; e o facto de só actualmente - depois do Acórdão que conheceu e decidiu a reclamação - surgir a arguir a nulidade do 1º Acórdão, leva indiscutivelmente, à conclusão seguinte:
A arguição de nulidade, mostra-se legalmente impossível;
Porquê?
Pelas razões que abaixo, em síntese, se deixam escritas.
Quem pede uma aclaração de um Acórdão na óptica dos artºs 667 e 669 ambos do C.P.C. - aplicáveis na lógica dos invocados artºs 716 nº 2 e 749 - mostra que concorda com a essência da decisão.
Ora, se concorda não pode, como é óbvio, mais tarde, pedir a nulidade do sentenciado'. Veio então o agravante interpor com dois requerimentos da mesma data recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade desse acórdão de 18 de Maio de
1999:
x) um relativo à 'interpretação e aplicação dos normativos legais indicados naquele aresto' - tendo a ver com o entendimento do acórdão de que 'o prévio requerimento de aclaração de sentença prejudica uma posterior reclamação por nulidades, em virtude de o requerimento da aclaração ter o sentido de concordância com a essência da decisão aclaranda' - e que é 'de todo insólita e inesperada'.
y) outro, 'ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do art. 70º da Lei nº 82 de
15 de Novembro' relativamente ao 'juízo de inconstitucionalidade, por violação do disposto no art. 20º da C.R.P., dos argumentos erigidos a normas que determinaram a condenação do ora recorrente como litigante de má-fé'. Por despacho de 20 de Junho de 1999, o Relator decidiu assim:
'1. A problemática dos recursos - como meios de impugnação específicos das decisões jurisdicionais - obedece, entre outros, ao princípio da tipicidade.
Este princípio, por sua vez, significa que, não só são admissíveis os recursos nas modalidades expressas na lei, como, apenas os fundamentos legais são atendíveis.
2. O artº 70º nº 1 al b) da Lei 28/82 de 15/11 proclama caber recurso para o Tribunal Constitucional das decisões que 'apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo'. Esta regra - bem como as demais contidas nas outras alíneas daquele nº 1 - tem natureza imperativa e apresenta uma interpretação que não oferece dúvida.
Quer ela referir que, ou existe na decisão questionada, a aplicação de uma norma cuja inconstitucionalidade foi durante o processo suscitada, ou não existe.
No primeiro caso, é impossível recorrer para o Tribunal Constitucional; no segundo caso não o é.
3. Pelo requerimento de fls. 553 a 556 o agravante pretende recorrer para o Tribunal Constitucional do Acórdão que lhe desatendeu a arguição de nulidade do acórdão que conheceu do agravo.
O agravante não invoca que aquele 1º Acórdão haja aplicado qualquer norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Pretende, porém, interpor o referenciado recurso, nos termos do artº. 70 nº 1 al b) da dita Lei.
Que dizer?
Que à evidência, o Acórdão em questão com os fundamentos invocados não é passível de recurso para o Tribunal Constitucional.
4. Por todo o exposto ex vi artºs 69, e 70 nº 1 al. b) da Lei nº 28/82 de 15.11, e, artº 687 nº 3 entre outros, do C.P. Civil, indefere-se o requerimento de interposição de recurso apresentado pelo agravante J. e F. a quem se condena nas custas com 2 U.C.'
É a este despacho que se reporta a presente reclamação e vê-se logo, até pela identificação do respectivo requerimento, que apenas está questionada a não admissão do recurso de constitucionalidade ( o recurso da alínea x)), respeitante à 'interpretação e aplicação dos normativos legais indicados naquele aresto' (por isso, não releva aqui a reclamação para a conferência também apresentada pelo agravante no Supremo Tribunal de Justiça daquele mesmo despacho, por não caber na órbita de competência do Tribunal Constitucional, quanto a ser 'completamente omisso, relativamente ao outro recurso para o Tribunal Constitucional', o recurso da alínea y), reclamação esta que o Supremo Tribunal de Justiça terá ainda de conhecer e decidir oportunamente).
4. Face ao descrito e à transcrição propositada das peças processuais, é patente que a razão está do lado do reclamante, acompanhado aqui pelo Parecer do Ministério Público.
Na verdade, apresentada por ele uma reclamação por nulidades, na base de vícios próprios da decisão, ao abrigo do regime do Código de Processo Civil, foi surpreendido com o entendimento do acórdão recorrido de que tal arguição
'mostra-se legalmente impossível', fazendo-se uma interpretação e aplicação desse regime processual que o reclamante não esperaria, desde logo, por não corresponder ao entendimento corrente dos tribunais superiores (face ao disposto no nº 1 do artigo 716º e nos artigos 732º e 749º, a aplicação do artigo 670º sempre foi entendida com a possibilidade de processamento de duas fases: à rectificação ou aclaração segue-se o prazo para arguir nulidades ou pedir a reforma, o que tem de ser conhecido quando há essa arguição ou esse pedido, nada tendo a ver com a concordância ou discordância da decisão de fundo). E daí que só no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade podia o reclamante, como fez, arguir a questão de inconstitucionalidade em causa, localizada na tal 'interpretação insólita e inesperada da lei, de que resultou a criação de uma norma que é a de que, como se viu, o prévio requerimento de aclaração de sentença prejudica uma posterior reclamação por nulidades, em virtude de o requerimento da aclaração ter o sentido de concordância com a essência da decisão aclaranda” .
Tanto basta para concluir, e encurtando razões, que não pode subsistir o despacho reclamado.
5. Termos em que, DECIDINDO, defere-se a reclamação Lisboa, 24 de Novembro de 1999 Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Luís Nunes de Almeida