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Proc. nº 134/99 Acórdão nº 639/99
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
II
1. A. interpôs, em 17 de Agosto de 1994, junto do Supremo Tribunal Administrativo, recurso contencioso de anulação do despacho conjunto do Ministro do Planeamento e da Administração do Território, do Ministro da Agricultura e da Ministra do Ambiente e Recursos Naturais, datado de 3 de Março do mesmo ano, que suspendeu a eficácia do despacho conjunto de 25 de Janeiro anterior, através do qual havia sido levantada a proibição estabelecida no nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 327/90, de 22 de Outubro.
Alegou que:
– tendo deflagrado, em 15 de Setembro de 1992, um incêndio em terreno de que é proprietária, identificado nos autos, situado no Cabo Raso, em Cascais – o qual afectou cerca de 90% da respectiva cobertura vegetal –, requereu, em Novembro seguinte, nos termos do nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 327/90, de 22 de Outubro, o afastamento da proibição que, por força do nº 1 da mesma disposição legal, incidia sobre o referido prédio, na sequência do dito incêndio, e que abrangia qualquer das acções de transformação do terreno mencionadas em tal diploma;
– tendo as autoridades competentes proferido despacho em que determinaram o levantamento da referida proibição às acções a empreender no prédio, por considerarem demonstrado que o incêndio ocorrido em 15 de Setembro de 1992 se ficou a dever a causas a que a A., é alheia (despacho conjunto do Ministro do Planeamento e da Administração do Território, do Ministro da Agricultura e da Ministra do Ambiente e Recursos Naturais, de 25 de Janeiro de
1994, Diário da República, II Série, nº 33, de 9 de Fevereiro de 1994, p. 1296), a eficácia desse despacho foi suspensa por despacho conjunto de 3 de Março de
1994 (Diário da República, II Série, nº 66, de 19 de Março de 1994, p. 2549),
'até à conclusão dos processos pendentes nas autoridades judiciais e à decisão que face às suas conclusões for tomada'.
A recorrente imputou ao acto impugnado os vícios de desvio de poder e de violação de lei, designadamente por se fundar em norma inconstitucional – a norma do artigo 1º do mencionado Decreto-Lei nº 327/90, que contraria o artigo
32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa e o artigo 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, bem como o artigo 168º, nº 1, alíneas b), c) e d), da Constituição.
Responderam as autoridades recorridas, sustentando a legalidade do despacho impugnado.
Afirmou, além do mais, a Ministra do Ambiente e Recursos Naturais:
'– as entidades ministeriais em causa apenas se preocuparam em respeitar, quer a Constituição, quer a lei ordinária, não orientando a sua actuação para fins privados ou para fins públicos estranhos aos interesses – protecção da floresta, que o Decreto-Lei nº 327/90, visa proteger.
– o despacho não revogou qualquer acto constitutivo de direitos, antes limitando-se a suspender os efeitos de um anterior despacho; não houve assim violação do artigo 18º, nº 2 da «LOSTA»;
– o Decreto-Lei nº 327/90, de 22 de Outubro, não estabeleceu nenhuma presunção de culpa, pois limitou-se a consagrar uma restrição ao «jus aedificandi» dos proprietários de terrenos percorridos por incêndios;
– não legislou assim em matéria criminal, pelo que o artigo 32º, nº 2, da C.R.P. não foi violado;
– também não foram violados os artigos 62º, nº 1, da C.R.P. e 1305º do Código Civil, em virtude de o «jus aedificandi» dos proprietários do solo não estar consagrado na nossa lei fundamental e a própria lei civil admitir restrições ao direito de propriedade;
– o Decreto-Lei nº 327/90, de 22 de Outubro, por não ter legislado em matéria criminal, disciplinar e contra-ordenacional, não carecia de qualquer autorização da Assembleia da República, pelo que o artigo 168º, nº 1, alíneas b), c) e d) da C.R.P. não foi violado.'
Disse, por sua vez, o Ministro do Planeamento e da Administração do Território:
'[...]
21º – Alega a recorrente no art. 46º que a sanção cominada no art. 1º, do Decreto-Lei 327/90 presume a culpa em vez da inocência.
[...]
25º – O que esta norma impõe, isso sim, é uma restrição ao direito de propriedade.
26º – Expressa na proibição do direito à construção, pelo prazo de 10 anos, a contar da data do fogo.
[...]
29º – No tocante ao «jus aedificandi» o Tribunal Constitucional vem decidindo que a lei fundamental não o tutela expressamente como um direito que se inclua no direito de propriedade, necessariamente em todos os casos – acórdão 259/94, in DR, II Série, nº 175, de 94/07/30.
30º - Consequentemente, inexiste violação quer do art. 1305º do Código Civil, quer do art. 62º nº 1, da CRP.
[...]
37º – Quanto à alegada inconstitucionalidade do Decreto-Lei 327/90, por violação do art. 168º, nº 1, alínea b) da Constituição, dir-se-á:
38º – Como já referido, a CRP não tutela expressamente o «jus aedificandi» como um direito que se inclua no direito de propriedade.
39º – Logo, o Governo não tinha que solicitar autorização para legislar sobre restrições ao direito à construção nos terrenos florestais, percorridos por fogos.
[...]
42º – O Decreto-Lei nº 327/90 apenas impõe restrições ao direito à construção, não contendo as suas disposições matéria de natureza criminal.
[...]
44º – No que toca à invocada violação da alínea d), a matéria legislada não respeita a infracções disciplinares nem a ilícitos de mera ordenação social.
45º - Porque não procede nenhuma das alegadas violações, não havia lugar ao pedido de autorização legislativa à Assembleia da República.'
Finalmente, concluiu o Ministro da Agricultura:
'Não pode, assim, aceitar-se a inconstitucionalidade do artigo 1º do citado Dec-Lei nº 327/90, invocado pela recorrente, sendo certo também que o direito de propriedade não é um direito absoluto, pois o seu exercício tem de se conformar com outros preceitos constitucionais, designadamente com as normas protectoras do ambiente e da qualidade de vida (artigo 66º da Constituição). Termos em que deve ser negado provimento ao recurso e mantido o acto impugnado.'
2. No acórdão de 13 de Fevereiro de 1996 (fls. 248 e seguintes), o Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso.
Pronunciando-se sobre as questões de inconstitucionalidade suscitadas pela recorrente, o Supremo Tribunal Administrativo refutou-as, nos seguintes termos:
'O regime decorrente da norma do nº 1 do DL nº 327/90, com as limitações que impõe aos proprietários dos terrenos com povoamentos florestais percorridos por incêndios, não tem qualquer natureza sancionatória. Trata-se antes de uma medida administrativa, de carácter cautelar, de cariz objectivo, ligada à simples ocorrência de um facto – fogo em povoamentos florestais – independentemente da pessoa do respectivo proprietário, qual visa impedir que durante certo prazo quem tenha responsabilidade no desencadear do fogo possa vir a beneficiar em termos urbanísticos ou outros da acção do mesmo. Medida cautelar essa que só poderá ser levantada pela Administração, antes de decorrido o prazo previsto em princípio para a sua duração (10 anos), no uso de um poder discricionário, como resulta do nº 2 do mesmo art. 1º e se verá mais adiante. Sendo pois o efeito resultante do nº 1 dessa disposição uma medida de cariz administrativo, incidente sobre as coisas a que diz respeito (prédios rústicos com povoamentos florestais percorridos por fogos), encontra-se fora do campo do art. 32º, da CRP, onde se definem os direitos fundamentais dos cidadãos em matéria de processo criminal, como o está também do art. 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de natureza paralela. Por outro lado, contrariamente ao que defende a ora recorrente, também o preceito do nº 1 do art. 1º do DL nº 327/90 não viola a norma do art. 62º, da CRP, uma vez que o direito de propriedade daquela não resulta no caso atingido em qualquer das dimensões que o aludido preceito constitucional garante. Até porque a limitação imposta por aquele nº 1 do art. 1º pode sempre, a todo o tempo, como se viu, ser levantada pela Administração, podendo o interessado em caso de recusa desta socorrer-se dos tribunais administrativos. Como também, e contrariamente à tese da recorrente, o Governo, ao legislar na matéria, não invadiu a esfera de competência da AR – art. 168º, nº 1, als. b), c) e d). Não se integra a medida prevista no nº 1 do art. 1º do DL nº 327/90 nesta al. b) porque, como se viu, a mesma assume natureza administrativa e cautelar, de cariz temporário, não dizendo pois respeito, como se exige naquela alínea, à matéria dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. O chamado jus aedificandi do proprietário do terreno – independentemente do problema de saber se tal direito se integra no núcleo do direito de propriedade garantido constitucionalmente – não resulta pois posto em jogo pela medida resultante do nº 1 do art. 1º do DL nº 327/90. Que se não integra também no campo de previsão da al. c) do nº 1 do art. 168º, da CRP, na qual se incluem apenas as matérias relativas à definição de crimes, penas, medidas de segurança a respectivos pressupostos, bem como o processo criminal, isto pelos motivos mais acima expostos aquando da apreciação da invocada violação pelo preceito do nº 1 do art. 1º do DL nº 327/90 da norma do art. 32º da CRP. Resta, finalmente, no domínio das inconstitucionalidades alegadas pelo recorrente, a que resultaria, segundo defende, de o despacho proferido pela Administração ao abrigo do nº 2 do art. 1º, do DL nº 327/90, poder assumir feição jurisdicional se representasse a antecipação de uma decisão judicial, como aconteceu no caso, ainda segundo a mesma recorrente, com o despacho contencioso impugnado. Mas aqui não se trataria de um problema de inconstitucionalidade, mas antes de usurpação de funções jurisdicionais por acto administrativo (que envolveria nulidade deste), que aliás se não verificou, e isto porque, no caso, a Administração, na sua decisão resultante do acto impugnado, se limitou a aguardar, sem interferir, aquilo que resultaria eventualmente do procedimento criminal em curso. Em resumo, pois, quanto às alegadas inconstitucionalidades: improcede a matéria da conclusão 7ª das alegações (1ª parte). Passemos à apreciação da invocada violação, pelo despacho recorrido, do princípio da proporcionalidade. Tal despacho, já se viu, foi proferido pela Administração ao abrigo do nº 2 do art. 1º do DL nº 327/90, o qual permite que a limitação resultante para os terrenos com povoamentos florestais percorridos por incêndios pode ser levantada sobre «pedido fundamentado dos interessados em que se demonstre, nomeadamente, que o incêndio na propriedade em causa se ficou a dever a causas fortuitas, a que estes interessados são totalmente alheios». A utilização pelo legislador neste preceito do verbo «poder» e do advérbio
«nomeadamente» inculca de modo claro que através dele se pretendeu conferir à Administração em matéria de levantamento da medida imposta pelo nº 1 do mesmo preceito, um poder discricionário. A Administração é pois livre de apreciar toda e qualquer circunstância susceptível de levar ao levantamento da aludida medida restritiva. Só que ela terá de o fazer respeitando, entre outros, o princípio da proporcionalidade, que, como é sabido, constitui um dos limites aos actos praticados no uso de um poder discricionário. Vejamos, pois, se o despacho contenciosamente impugnado desrespeitou, como defende a recorrente, semelhante princípio, que aliás tem guarida constitucional
(art. 266º, nº 2, da CRP). Ora, o que resulta do texto do despacho recorrido é que o motivo determinante do acto foi a circunstância, que só então se ponderou, de não se encontrarem então encerradas as averiguações policiais decorrentes do incêndio em questão, o que só se verificou, como se viu, posteriormente com a prolação em 11/4/94 pelo delegado do procurador da República na câmara de Cascais de despacho que no respectivo inquérito ordenou o seu arquivamento, por não se indiciar suficientemente a origem do incêndio nem a identidade dos seus eventuais autores. Ora, a questão que agora se coloca é a de saber se a medida tornada pelo acto impugnado, de suspender a eficácia da decisão anterior, que a pedido da recorrente levantara a proibição que incidia sobre o seu prédio, respeitou o aludido princípio da proporcionalidade através da escolha que fez – atento o interesse público prosseguido – do meio menos gravoso no caso para a mesma recorrente. Julga-se que a resposta deverá ser afirmativa.
É que sem a conclusão do inquérito respeitante ao fogo a autoridade administrativa não dispõe de elementos suficientemente seguros para o efeito de ajuizar sobre a origem do mesmo fogo, em ordem a salvaguardar o interesse público da preservação dos povoamentos florestais. Entre, pois, o simples levantar das aludidas limitações em tais circunstâncias, com o consequente perigo para a satisfação do interesse público, e a decisão de aguardar pelo decurso do prazo de 10 anos previsto no nº 1 do art. 1º do DL nº
327/90, afigura-se que a decisão elegida – de esperar pela conclusão do inquérito para então ponderar de novo a situação – constitui, sem ofensa da satisfação do interesse público, a menos gravosa para a recorrente.
Improcede, assim, a matéria da conclusão 7ª das alegações (2ª parte).'
3. Não se conformando com a decisão, A., interpôs, 'à cautela', recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, para apreciação da inconstitucionalidade da norma do nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 327/90, de 22 de Outubro, e, na mesma data, interpôs recurso para o Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo.
Por despacho de 20 de Março de 1996, proferido a fls. 264 dos autos, o Conselheiro Relator, no Supremo Tribunal Administrativo, recebeu o recurso para o Tribunal Constitucional e determinou que o recurso interposto para o Pleno da Secção ficasse a aguardar a decisão do Tribunal Constitucional.
No Tribunal Constitucional, após notificação ao recorrente para completar o requerimento de interposição do recurso, foi proferido despacho para a produção de alegações.
O Tribunal Constitucional, porém, na sequência de despacho proferido pelo Conselheiro Relator (fls. 420), decidiu não tomar conhecimento do recurso
(acórdão de 9 de Abril de 1997, fls. 438 e seguintes), por entender que não se encontravam esgotados os recursos ordinários, não podendo assim dar-se como verificado um dos requisitos do recurso de constitucionalidade utilizado pela recorrente – a exaustão dos recursos ordinários que no caso caibam (artigo 70º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional).
4. Remetido o processo de novo ao Supremo Tribunal Administrativo, a recorrente reiterou, nas alegações então apresentadas (fls. 455 a 611), as acusações de inconstitucionalidade quanto aos nºs 1 e 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 327/90, sustentando que tais normas infringem os artigos 2º, 3º, nºs 2 e 3, 9º, alínea b), 12º, nº 2, 13º, 18º, nºs 2 e 3, 22º, 26º, nº 1, 30º, nº 4, 32º, nº s 1, 2, 4, 5 e 8, 61º, 62º, 66º, nº 2, 168º, nº 1, alíneas a), b), d), l), e 2, 205º, nº 2, 266º, nºs 1 e 2, e 272º, nºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa.
Por acórdão do Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 8 de Outubro de 1998 (fls. 677 e seguintes), foi negado provimento ao recurso.
O Supremo Tribunal Administrativo confirmou o julgamento de não inconstitucionalidade constante do acórdão recorrido e, quanto aos fundamentos invocados de novo no recurso para o pleno, afastou-os designadamente por entender que não pode equiparar-se o regime consagrado nas normas impugnadas ao do acto de expropriação ou nacionalização dos meios de produção e solos (fls.
711 a 714 dos autos).
Notificada do acórdão, A., arguiu a sua nulidade, nos termos do artigo 668, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, invocando, por um lado, excesso de pronúncia e, por outro lado, omissão de pronúncia.
5. Tendo sido indeferida a arguição de nulidade, por acórdão de 9 de Dezembro de 1998 (fls. 739 e seguintes), veio A., interpor recurso dos acórdãos do Tribunal Pleno (de 8 de Outubro de 1998 e de 9 de Dezembro de 1998) para o Tribunal Constitucional, com fundamento no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82 (certamente por lapso indica o artigo 75º-A, nº 1, alínea b), da Lei nº
28/82), para apreciação da inconstitucionalidade das normas dos nºs 1 e 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 327/90, de 22 de Outubro, por violação dos artigos
2º, 3º, nºs 2 e 3, 9º, alínea b), 12º, nº 2, 13º, 18º, nºs 2 e 3, 22º, 26º, nº
1, 30º, nº 4, 32º, nº s 1, 2, 4, 5 e 8, 61º, 62º, 66º, nº 2, 168º, nº 1, alíneas a), b), c), d), l), e nº 2, 205º, nºs 1 e 2, 207º, 266º, nºs 1 e 2, e 272º, nºs
2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, e por violação dos princípios da igualdade, da justiça, da imparcialidade e da proporcionalidade (requerimento de fls. 749 e seguintes).
O recurso foi admitido por despacho de fls. 752.
6. Nas alegações de recurso para o Tribunal Constitucional (fls. 761 a
809), a recorrente começou por suscitar uma questão prévia quanto ao conhecimento do recurso, sustentando a sua inutilidade superveniente, face à revogação das normas impugnadas operada pelo Decreto-Lei nº 34/99, de 5 de Fevereiro.
Formulou, entre outras, as seguintes conclusões:
'[...]
3ª - [...] os recorridos aplicaram as normas dos nºs 1 e 2 do artigo
1º do Decreto-Lei nº 327/90, de 22/10, na redacção à data vigente, com o seguinte sentido inconstitucional: a. o de proibirem, durante 10 anos, o loteamento e a intervenção urbanística e turística em terrenos percorridos por um incêndio ocorrido em 15 de Setembro de 1992, situados ao Cabo Raso, no concelho de Cascais, abrangidos pelo Plano de Urbanização da Quinta da Marinha de 1957, pelo Plano de Macrozonamento da Área de Paisagem Protegida de Sintra-Cascais e pelo Plano de Ordenamento do Parque Natural de Sintra-Cascais, aprovado pelo Decreto-Regulamentar nº 9/94, de 11/3, que transformou aquela Área Protegida em Parque Natural, instrumentos reguladores do aproveitamento urbanístico da área, estando pendente, desde 26 de Fevereiro de 1992, na Câmara Municipal de Cascais, um projecto urbanístico e turístico para esses mesmos terrenos, apresentado pela interessada, ora recorrente; b. e, bem assim, o de caber à interessada e proprietária dos referidos terrenos fazer a prova, para fins de um despacho ministerial conjunto de afastamento da citada proibição, de que o incêndio foi devido a causas fortuitas a que ela é completamente alheia c. bem como o de, feita a referida prova, e proferido o citado despacho conjunto, dever este ser suspenso, se estiverem em curso «averiguações policiais» tendo por objecto o incêndio em causa – ainda que a pendência de tais
«averiguações» tenha sido expressamente considerada nas informações e pareceres em que se fundou o despacho suspenso, e tenham as mesmas «averiguações» sido desencadeadas designadamente por «queixa» contra desconhecidos deduzida pela interessada e proprietária da área afectada.
[...]
25ª - As normas questionadas violam, pois, designadamente, as seguintes normas da Constituição: as dos artigos 2º; 3º - 2 e 3; 9º - b); 12º -
2; 13º - 1; 18º - 2 e 3; 26º - 1; 30º - 4; 32º - 1, 2, 4, 5 e 8, e 266º - 1 e 2, todos da CRP, na redacção à data vigente.
Nestes termos e nos demais do douto suprimento de Vossas Excelências, deve: a. conhecer-se da questão prévia e declarar-se a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide; ou conceder-se provimento ao recurso: b. declarando-se a inconstitucionalidade material das normas dos nºs 1 e 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 327/90, de 22/10, na redacção vigente à data dos factos, enquanto interpretadas, conjugadamente, com o sentido aludido na conclusão 3ª da presente alegação de recurso; c. e/ou declarando-se a inconstitucionalidade material das mesmas normas, independentemente do mencionado sentido que no presente caso concreto os Ministros recorridos lhes atribuíram e determinando que o Tribunal a quo julgue o recurso contencioso em conformidade com a decisão de inconstitucionalidade.'
O Ministro do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território concluiu assim as suas alegações:
'a) A decisão recorrível é, apenas, a parte do douto Acórdão do Pleno de
98/10/08, que confirmou o Acórdão da 1ª Secção, do STA, que julgou a inexistência de violação, pelo art. 1º, nºs. 1 e 2, do Decreto-Lei 327/90, das normas da Constituição, convocadas pela Recorrente – fls. 708 a 714, do III Vol. b) O objecto do presente recurso é a constitucionalidade, ou não, das normas do nº 1, e nº 2, do art. 1º, do aludido Decreto-Lei 327/90; c) A norma do nº 2 confere, apenas, aos Recorridos, a competência para levantarem ou não, em cada caso concreto, a proibição consagrada na norma do nº
1;
[...] e) Impendia sobre a Recorrente o ónus de demonstrar a alegada postergação dos princípios constitucionais da igualdade, da imparcialidade, da justiça e da proporcionalidade, na prolação do despacho suspensivo e não, apenas, a sua mera enunciação; f) O ónus jurídico previsto no nº 2, do art. 1º, consiste no comportamento necessário, que está na disponibilidade do proprietário do terreno ardido observar ou não, sabendo que a sua observação é condição necessária à satisfação do seu interesse – o eventual levantamento da proibição; g) O nº 1 do art. 1º prevê uma medida administrativa, de carácter objectivo, de cariz cautelar, ligada à simples ocorrência de um facto – fogo em povoamentos florestais – independentemente da pessoa do proprietário; h) Visa impedir que durante certo prazo, quem tenha responsabilidade no desencadear do fogo possa vir a beneficiar, em termos urbanísticos ou outros, da acção dos mesmos; i) Tal medida não tem natureza sancionatória, não sendo enquadrável no art. 32º da CRP, que respeita às garantias de pessoas, em matéria criminal; j) O Decreto-Lei em causa nestes autos versa, inequivocamente, matéria que tem a ver com a satisfação de interesses públicos essenciais: a defesa do património florestal, como elemento integrante que é de um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, que incumbe ao Estado proteger; k) O despacho suspensivo de 94/03/03 visa proteger a satisfação daquele interesse público essencial e não a composição ou resolução de um litígio; l) A actuação dos Recorridos constitui o claro exercício de uma função administrativa, tendente à satisfação de interesses públicos essenciais que lhes incumbe prosseguir, não consubstanciando qualquer usurpação do poder jurisdicional previsto no art. 205º, nº 2, da CRP; m) O princípio constitucional da igualdade não funciona por forma geral e abstracta, mas perante situações concretas, ou quando o legislador estabelece distinções discriminatórias; n) O princípio em causa exige que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento desigual a situações de facto desiguais, proibindo tratamento desigual de situações iguais e tratamento igual de situações diferentes; o) A decisão de esperar pela conclusão do inquérito para, então, ponderar de novo a situação, foi a menos gravosa para a Recorrente, não se enxergando desrespeito do princípio da proporcionalidade. p) Os recorridos, ao aplicarem as normas do nº 1 e nº 2, do art. 1º, aqui arguidas de inconstitucionalidade, não violaram nenhum dos preceitos da Constituição, convocados pela Recorrente, nem nenhum dos princípios constitucionais estruturantes alegados.'
Por sua vez, o Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas formulou as seguintes conclusões:
'1ª) A alteração introduzida pelo DL 34/99 ao regime do DL 327/90 só dispõe para o futuro pelo que se mantém o objecto do recurso consistente em saber se os Ministros recorridos na prolação do despacho conjunto datado de 3.03.94 violaram ou não as normas e os princípios constitucionais ao aplicaram nesse acto as normas contidas nos números 1 e 2 do artigo 1º do DL 327/90, na redacção vigente na época.
2ª) A norma do nº 1 do artigo 1º do Dec-Lei nº 327/90 é de natureza administrativa, não tem carácter sancionatório e observa o princípio constitucional de prevenção de degradação do ambiente e da qualidade de vida previsto no artigo 66º, nº 2, alínea a) e d) da Constituição da República Portuguesa.
3ª) A norma do nº 2 do citado artigo atribui poderes discricionários à Administração que esta usou dentro dos limites constitucionais impostos pelo princípio da proporcionalidade.
4ª) As normas citadas não enfermam da inconstitucionalidade arguida pela recorrente e a sua interpretação seguida pelo despacho ministerial impugnado e pelo douto acórdão do STA não desrespeitou os preceitos e os princípios constitucionais e os fundamentos do Estado de Direito democrático invocados pela recorrente.'
Só a Ministra do Ambiente não alegou.
II
6. A recorrente submete à apreciação do Tribunal Constitucional as normas constantes dos nºs 1 e 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 327/90, de 22 de Outubro.
É o seguinte o teor das normas impugnadas (tal como resulta da alteração, por ratificação, pela Lei nº 54/91, de 8 de Agosto):
'1. Nos terrenos com povoamentos florestais percorridos por incêndios ficam proibidas, pelo prazo de 10 anos a contar da data do fogo: a. Todas as acções que tenham por objecto, ou simplesmente tenham por efeito, a divisão em lotes de qualquer área de um ou vários prédios destinados, imediata ou subsequentemente, à construção; b. A realização de obras de urbanização previstas na alínea b) do nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 400/84, de 31 de Dezembro; c. Todas as operações preparatórias previstas nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 400/84, de 31 de Dezembro; d. A realização de obras novas para fins habitacionais, industriais ou turísticos; e. A construção, remodelação ou reconstrução e demolição de quaisquer edificações ou construções; f. O estabelecimento de quaisquer novas actividades agrícolas, industriais, turísticas ou outras que possam ter um impacte ambiental negativo; g. A substituição de espécies florestais por outras, técnica e ecologicamente desadequadas (redacção da Lei nº 54/91, de 8 de Agosto); h. O lançamento de águas residuais industriais ou de uso doméstico ou quaisquer outros efluentes líquidos poluentes; i. O corte ou colheita de espécies botânicas não cultivadas e introdução de espécies exóticas, de cultivo ou não; j. O campismo fora de locais destinados a esse fim.
2. A proibição referida no número anterior apenas pode ser levantada mediante despacho conjunto dos Ministros do Planeamento e da Administração do Território, da Agricultura, Pescas e Alimentação e do Ambiente e Recursos Naturais, sobre pedido fundamentado dos interessados em que se demonstre, nomeadamente, que o incêndio da propriedade em causa se ficou a dever a causas fortuitas, a que estes interessados são totalmente alheios.'
6.1. Nas alegações produzidas junto do Tribunal Constitucional, a recorrente começa por suscitar a questão prévia de não conhecimento recurso, invocando a sua inutilidade superveniente, tendo em conta que as normas arguidas de inconstitucionais durante o processo foram revogadas e substituídas por outras, constantes do Decreto-Lei nº 34/99, de 5 de Fevereiro.
Sustenta a recorrente que, tendo o Decreto-Lei nº 34/99 alterado o artigo 1º do Decreto-Lei nº 287/90, designadamente quanto ao âmbito da proibição de realização de acções para aproveitamento dos terrenos percorridos por incêndios e quanto aos termos em que pode ser levantada a proibição,
'perdem eficácia, por caducidade, o despacho conjunto suspensivo, de cuja impugnação emergem os presentes autos – diverso entendimento afrontando, salvo melhor opinião, o princípio constitucional da igualdade e desrespeitando o princípio da aplicação da lei restritiva de direitos, liberdades e garantias mais favorável, que se afigura ter sempre de extrair- -se da essência da ordem jurídica fundamental de um Estado de Direito Democrático' e que,
'a ser assim, o presente recurso tornou-se supervenientemente inútil, a partir da entrada em vigor do DL 34/99, de 5/2'.
Não pode no entanto proceder a questão prévia suscitada pela recorrente.
A averiguação sobre a eventual caducidade do despacho ministerial conjunto de 3 de Março de 1994 excede obviamente a competência atribuída ao Tribunal Constitucional no âmbito de um recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade normativa. Tal despacho, impugnado no recurso contencioso, não constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade.
Por outro lado, no recurso contencioso de que emerge o recurso de constitucionalidade, foi proferida uma decisão judicial a propósito do despacho impugnado – o acórdão do Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Admnistrativo, de 8 de Outubro de 1998, aqui sob recurso – que, mesmo após a revogação do Decreto-Lei nº 327/90, de 22 de Outubro, subsiste na ordem jurídica.
Conforme tem sido afirmado por este Tribunal, em jurisprudência constante, a revogação ou a alteração da norma que constitui o objecto de um recurso de constitucionalidade não obsta ao conhecimento do recurso. Na verdade, intervindo o Tribunal Constitucional no domínio da fiscalização concreta da constitucionalidade para decidir recursos de decisões judiciais, torna-se claro que a revogação ou a alteração da norma que serviu de base a essas decisões, só por si, subsistindo a decisão recorrida, é inapta a produzir a perda de interesse na apreciação da questão de constitucionalidade (mesmo o interesse na fiscalização abstracta da constitucionalidade de normas revogadas tem sido afirmado, em certos casos, pelo Tribunal Constitucional).
Há pois que apreciar o presente recurso, pois ele respeita a uma decisão concreta, que subsiste na ordem jurídica, mesmo após a alteração das normas em que se fundamentou.
6.2. Nas alegações que apresentou no âmbito do presente recurso de constitucionalidade, a recorrente parece pretender que o Tribunal Constitucional julgue inconstitucional uma determinada interpretação dada na decisão recorrida
às normas impugnadas. Cumulativa – ou subsidiariamente – a recorrente pede que este Tribunal julgue inconstitucionais tais normas 'independentemente do mencionado sentido' (cfr. conclusão 25ª, alíneas b) e c), antes transcritas).
A delimitação do sentido que a recorrente considera ter sido atribuído às normas questionadas e que qualifica de inconstitucional consta da conclusão 3ª, também antes transcrita.
A ser assim delimitado o objecto do recurso, este Tribunal não poderia dele tomar conhecimento.
Com efeito, ao colocar a questão desse modo, a recorrente estaria a dirigir a censura de inconstitucionalidade não a uma ou mais normas aplicadas na decisão recorrida mas à própria decisão recorrida – ou até ao próprio despacho ministerial contenciosamente impugnado. Nessas circunstâncias, e considerada apenas essa parte do pedido, chegar-se-ia à conclusão que, através do recurso de constitucionalidade, a recorrente pretenderia obter um novo julgamento da matéria discutida no processo. Ora, como o Tribunal Constitucional tem afirmado reiteradamente, uma decisão judicial – ou um acto administrativo – não é uma norma, pelo menos no sentido em que o termo é usado no artigo 280º da Constituição da República Portuguesa. O controlo de constitucionalidade que, nos recursos das decisões dos outros tribunais, a Constituição e a lei cometem ao Tribunal Constitucional é um controlo normativo, que apenas pode incidir, consoante os casos, sobre as normas jurídicas que tais decisões tenham aplicado, não obstante a acusação que lhes foi feita de desconformidade com a Constituição, ou sobre as normas jurídicas cuja aplicação tenha sido recusada com fundamento em inconstitucionalidade. As decisões judiciais, bem como os actos administrativos, considerados em si mesmos, não podem, no sistema português de fiscalização concreta de constitucionalidade, ser objecto de tal controlo.
Atendendo porém a que a recorrente suscitou durante o processo, de modo claro e perceptível, a inconstitucionalidade de tais normas independentemente daquela interpretação que vem explicitada nas alegações, e considerando ainda o pedido cumulativo – ou subsidiário – formulado pela recorrente para que seja apreciada a inconstitucionalidade de tais normas
'independentemente do mencionado sentido', o Tribunal Constitucional poderá apreciar as normas impugnadas, interpretadas com o sentido que decorre da aplicação dos cânones hermenêuticos gerais.
Será esse portanto o objecto do presente recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade normativa.
6.3. Por último, se é certo que, durante o processo, a recorrente invocou a desconformidade das normas questionadas perante os artigos 2º, 3º, nºs 2 e 3,
9º, alínea b), 12º, nº 2, 13º, 18º, nºs 2 e 3, 22º, 26º, nº 1, 30º, nº 4, 32º, nº s 1, 2, 4, 5 e 8, 61º, 62º, 66º, nº 2, 168º, nº 1, alíneas a), b), d), l), e nº 2, 205º, nº 2, 207º, 266º, nºs 1 e 2, e 272º, nºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, e em confronto com os princípios da igualdade, da justiça, da imparcialidade e da proporcionalidade (cfr. conclusões 29ª, 32ª e 37ª das alegações de recurso para o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo, fls. 605,
606, 607, e requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, fls. 751), já nas alegações produzidas junto do Tribunal Constitucional a recorrente deixou de referir-se explicitamente à inconstitucionalidade por violação dos artigos 22º, 61º, 62º, 66º, nº 2, 168º, nº 1, alíneas a), b), d), l), e nº 2, 205º, nº 2, 207º, 272º, nºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa.
Deste modo, e sem prejuízo do disposto no artigo 79º-C da Lei do Tribunal Constitucional, não constitui objecto do presente recurso a eventual violação, pelos preceitos questionados, dos artigos 22º, 61º, 62º, 66º, nº 2,
168º, nº 1, alíneas a), b), d), l), e nº 2, 205º, nº 2, 207º, 272º, nºs 2 e 3, da Constituição.
7. O diploma em que se insere a norma impugnada – o Decreto-Lei nº
327/90, de 22 de Outubro – veio regular a ocupação do solo em que tenha ocorrido um incêndio florestal.
O preâmbulo do referido Decreto-Lei, depois de lembrar a 'perda de milhares de hectares em povoamentos florestais' verificada em Portugal nos
últimos anos, em consequência de incêndios, 'com grandes prejuízos para o património ambiental e para a economia nacional', refere que 'as motivações subjacentes a alguns desses incêndios podem ter por finalidade a destruição das manchas florestais, com vista à posterior ocupação dos solos para outros fins, designadamente urbanísticos e de construção' e afirma a necessidade de 'adoptar medidas rigorosas para a defesa do património florestal, evitando o desaparecimento insensato de zonas verdes que tão indispensáveis são à qualidade de vida dos cidadãos'.
Nessa conformidade, o diploma estabelece, relativamente aos terrenos com povoamentos florestais percorridos por incêndios, uma proibição, a vigorar pelo período de dez anos a contar da data do fogo, de realização das acções de transformação de terrenos enumeradas no artigo 1º, nº 1. Tal proibição apenas pode ser levantada, nos termos do nº 2 da mesma disposição, mediante despacho conjunto dos Ministros do Planeamento e da Administração do Território, da Agricultura, Pescas e Alimentação e do Ambiente e Recursos Naturais, mediante pedido fundamentado dos interessados, desde que se demonstre, nomeadamente, que o incêndio da propriedade em causa se ficou a dever a causas fortuitas, a que os interessados são totalmente alheios.
Determina-se também que são nulos os despachos que violem o disposto nos preceitos mencionados (artigo 1º, nº 3) e que a infracção à proibição estabelecida pela lei constitui contraordenação punível nos termos da legislação aplicável ao licenciamento das operações e actividades em causa (artigo 1º, nº
4).
Estabelecem-se ainda regras destinadas a promover a necessária coordenação com os instrumentos de planeamento, designadamente com os planos directores municipais (artigo 4º, nºs 1 e 2).
O Decreto-Lei nº 327/90 veio assim introduzir no ordenamento jurídico português medidas de prevenção e de protecção contra os incêndios nas florestas, a fim de evitar a 'destruição de manchas florestais' e a 'posterior ocupação dos solos para outros fins, designadamente urbanísticos e de construção'. Essa preocupação é tanto mais evidente quanto se admite que 'as motivações subjacentes a alguns desses incêndios podem ter por finalidade' precisamente estes objectivos (cfr. preâmbulo do diploma).
Este diploma legal regula matéria relativa ao ordenamento do território e visa a prossecução de um interesse público essencial: a defesa do património florestal, como elemento integrante de um ambiente de vida humano sadio e ecologicamente equilibrado, e como via para um correcto ordenamento do território, que ao Estado incumbe assegurar, nos termos dos artigos 9º, alínea e), e 66º da Constituição.
8. Ora são precisamente estas soluções – maxime, a proibição de quaisquer acções de aproveitamento dos terrenos durante dez anos e a possibilidade de levantamento da proibição, a que se referem os nºs 1 e 2 do artigo 1º que a recorrente contesta e que estão na origem das questões de constitucionalidade por ela suscitadas.
Na sua perspectiva, o regime instituído contraria os artigos 2º, 3º, nºs 2 e 3, 9º, alínea b), 12º, nº 2, 13º, 18º, nºs 2 e 3, 26º, nº 1, 30º, nº 4,
32º, nº s 1, 2, 4, 5 e 8, 266º, nºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e os princípios da igualdade, da justiça, da imparcialidade e da proporcionalidade.
9. Começa a recorrente por afirmar que o poder atribuído à Administração pela norma do nº 2 do artigo 1º 'escapa ao poder/dever de ponderação na formação da vontade decisória, e, consequentemente, aos princípios da igualdade, da imparcialidade, da justiça e da proporcionalidade, consignados no artigo 266º -
2 da Constituição, nos quais, aliás, o dever de fundamentação se funda, e cuja realização constitui o fim da mesma ponderação e a legitimação do poder/dever de decidir' (fls. 780).
Determina o artigo 266º, nº 1, da Constituição que a Administração Pública deve visar a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. Consagra também a Constituição Portuguesa os princípios fundamentais a que se encontra sujeita a actuação da Administração Pública: no exercício das suas funções, os órgãos e agentes administrativos devem respeitar os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé (artigo 266º, nº 2, na redacção introduzida pela Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro).
A norma constitucional invocada reporta-se directamente à actuação da Administração Pública e à prática, pelos órgãos e agentes administrativos, de actos administrativos, estabelecendo os critérios orientadores da actividade administrativa. Da norma mencionada podem seguramente retirar-se os parâmetros face aos quais deve aferir-se a conformidade constitucional dos preceitos de direito ordinário que disciplinam a actividade administrativa ou que prevêem a prática de actos administrativos.
As normas que integram o direito do ordenamento do território – ou o direito do urbanismo – são, pela sua natureza intrínseca, 'discriminatórias' ou
'desigualitárias', pois assentam na ideia de que o tipo e a medida de utilização do solo não podem ser os mesmos seja qual for a sua localização, antes devem ser diferentes conforme as características das zonas em que se situam os terrenos. Todavia, por imperativo constitucional – expresso nos artigos 13º e 266º, nº 2, da Constituição –, essa característica dos preceitos jurídico-urbanísticos deve ser eliminada ou pelo menos atenuada, através da adopção pelo ordenamento jurídico de instrumentos ou mecanismos adequados (cfr. Fernando Alves Correia, Direito do urbanismo, in 'Alguns conceitos de direito administrativo', Coimbra,
1998, p. 31 ss, p. 34).
Ora, quer a solução geral do diploma em apreço, quer os mecanismos instituídos nas normas questionadas no processo, permitem afastar a violação dos princípios fundamentais a que se encontra sujeita a Administração Pública.
9.1. O nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 327/90 proíbe, pelo prazo de dez anos, a realização de quaisquer acções com vista à urbanização, construção ou alteração do solo ou das espécies vegetais dos terrenos com povoamentos florestais percorridos por incêndios.
Existe um interesse público – o interesse público na protecção do ambiente e na promoção de um correcto ordenamento do território – com relevo suficiente para justificar as eventuais limitações a que, em cada caso, possa conduzir a proibição constante do nº 1 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 327/90.
O direito de propriedade não é um direito absoluto nem ilimitado; o seu exercício tem de se coordenar com outros imperativos constitucionais, como os que decorrem, no que aqui interessa considerar, das normas que asseguram a protecção do ambiente e do ordenamento do território.
Não pode sequer no caso dos autos invocar-se um direito a edificar no solo a que se refere a proibição contida na lei. Na verdade, não chegou a ser aprovada qualquer licença de loteamento, de urbanização ou de construção, que pudesse fundamentar um eventual direito da recorrente susceptível de ser ponderado em conjunto com o interesse público referido.
Aliás, o Tribunal Constitucional decidiu recentemente que, mesmo a ablação do direito a licença de loteamento já concedida, que venha a tornar-se incompatível com um plano regional de ordenamento do território – e a consequente afectação das expectativas do seu titular –, pode ser considerada constitucionalmente admissível, porque justificada pelo interesse público de um correcto ordenamento do território (acórdão nº 329/99, Diário da República, II Série, nº 167, de 20 de Julho de 1999, p. 10576 ss).
9.2. Concretamente, a norma do nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 327/90 – a que a recorrente reporta, quanto a este aspecto, a alegação de inconstitucionalidade –, admite, como ficou referido, que, por despacho conjunto dos Ministros mais directamente relacionados com a matéria em causa, seja levantada a proibição estabelecida no nº 1 do mesmo preceito, e fixa os pressupostos de que depende a decisão. Exige-se que o pedido, a formular pelos interessados, seja fundamentado e demonstre, nomeadamente, que o incêndio se ficou a dever a causas fortuitas, a que os interessados são alheios. A norma vem assim contemplar as situações em que, comprovadamente, não existe qualquer relação entre a origem do fogo e as suas consequências.
As exigências estabelecidas relacionam-se directa e imediatamente com a finalidade do diploma – a luta contra os incêndios e contra os prejuízos dele decorrentes para o património ambiental, dando como assente que as motivações subjacentes a alguns dos incêndios verificados nos últimos anos tiveram por finalidade a destruição das manchas florestais com vista à ocupação dos solos para fins urbanísticos e de construção.
A demonstração de que o incêndio da propriedade em causa se ficou a dever a causas fortuitas, a que os interessados são alheios, não é desadequada nem se afigura excessiva ou desproporcionada, pois visa acautelar valores de interesse público, tais como a protecção do ambiente e a defesa de um correcto ordenamento do território.
Por outro lado, a vinculação da Administração à verificação dos pressupostos de que depende o levantamento da proibição afasta qualquer violação dos princípios da justiça, da imparcialidade e da boa fé.
De todo o modo, in casu, não impendia sobre o recorrente o ónus de provar determinados factos para poder exercer um direito que lhe coubesse. É que, na verdade, não dispunha o recorrente de qualquer direito de edificar num terreno que não estava urbanizado.
Finalmente, a fixação dos pressupostos de que depende o levantamento da proibição – ao permitir o tratamento diferenciado entre as situações em que se demonstre que o incêndio se ficou a dever a causas fortuitas e as situações em que tal demonstração não seja feita – assegura a existência de um fundamento material de distinção, impedindo assim a violação do princípio da igualdade.
Com efeito, segundo a jurisprudência uniforme e constante do Tribunal Constitucional, o princípio da igualdade reconduz-se a uma proibição de arbítrio, sendo inadmissíveis quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios objectivos constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente diferentes. A caracterização de uma medida legislativa como inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, depende, em última análise, da ausência de fundamento material suficiente, isto é, da falta de razoabilidade e da falta de coerência com o sistema jurídico. Em contrapartida, as medidas de diferenciação hão-de ser materialmente fundadas, 'sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da solidariedade' (acórdão do Tribunal Constitucional nº 750/95, Diário da República, II Série, nº 99, de
27 de Abril de 1996, p. 5677 ss).
À luz destas considerações, a solução consagrada na norma do nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 327/90 não se apresenta pois injustificada nem desrazoável.
Na verdade, não são iguais – não se impondo portanto constitucionalmente que sejam tratadas de modo igual – as situações dos requerentes que provem que o incêndio ficou a dever-se a causas fortuitas e as situações dos requerentes que não façam tal prova. No primeiro caso, sendo ilidida a presunção de 'destruição das manchas florestais, com vista à posterior ocupação dos solos para outros fins', pode ser autorizado o regime de excepção à proibição; no segundo caso, não sendo ilidida tal presunção, não poderá ser levantada a proibição geral estabelecida na lei.
10. Invoca depois a recorrente a 'natureza delitual e punitiva ou inibitória' do normativo conjugado dos nºs 1 e 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº
327/90, violando os artigos 2º, 3º, nºs 2 e 3, 9º, alínea b), 12º, nº 2, 13º,
18º, nºs 2 e 3, 26º, nº 1, 30º, nº 4, 32º, nº s 1, 2, 4, 5 e 8 da Constituição, por conterem 'uma presunção de ilicitude da prática de um facto, e, ainda, uma presunção da respectiva imputabilidade aos proprietários de terrenos ardidos – presunções do foro delitual e punitivo que o legislador admite poder a Administração julgar ilididas, pelos automaticamente onerados, se estes fizerem a prova, praticamente impossível, de que o incêndio foi devido «a causas fortuitas ... a que são totalmente alheios»' (fls. 789, 790).
Não tem razão a recorrente.
10.1. O regime que decorre das normas em apreço não tem natureza sancionatória, nem pode caracterizar-se como respeitando ao direito penal ou ao direito processual penal.
As eventuais limitações impostas aos proprietários dos terrenos com povoamentos florestais percorridos por incêndios têm natureza cautelar e fundamentam-se num elemento objectivo – a ocorrência do fogo nesses terrenos – independentemente da pessoa do proprietário dos terrenos. Tem-se em vista impedir que o proprietário venha a beneficiar em termos urbanísticos da destruição florestal provocada pelo incêndio.
É assim manifesto que nem a norma que assegura o 'direito à plenitude das garantias de defesa em processo criminal' (o artigo 32º da Constituição) nem a norma que proíbe a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos como efeito necessário das penas (o artigo 30º, nº 4, da Constituição) – invocadas pela recorrente – podem constituir parâmetros de referência a ter em conta na apreciação da conformidade constitucional das normas questionadas no presente processo.
10.2. Por outro lado, admitindo o diploma que as motivações subjacentes a alguns incêndios possam ter for finalidade a destruição de manchas florestais para posterior ocupação dos solos para outros fins, designadamente urbanísticos e de construção, prevê-se a possibilidade de ser ilidida a presunção relacionada com a origem do fogo, através da demonstração de que o incêndio se ficou a dever a causas fortuitas, a que os interessados são alheios. Sendo feita tal demonstração, existe, como antes se concluiu, fundamento material para a adopção de uma medida administrativa de levantamento da proibição.
Esta solução legal, nas condições em que se encontra regulada, não é constitucionalmente censurável.
Mesmo no âmbito da responsabilidade criminal, o Tribunal Constitucional tem considerado que uma presunção de um puro facto, meramente relativa, 'se não traduz numa manipulação arbitrária do princípio in dubio pro reo – o que é decisivo para concluir que a norma que a estabelece não é contraditória, ao cabo e ao resto, do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido' (acórdão nº 447/87, Diário da República, II Série, nº 41, de 19 de Fevereiro de 1988, p. 1616 ss.). A argumentação foi retomada em diversos acórdãos posteriores (por exemplo, acórdão nº 448/87, Diário da República, II Série, nº 41, de 19 de Fevereiro de 1988, p. 1619 ss; acórdão nº
135/92, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol., p. 541 ss; acórdão nº
147/99, Diário da República, II Série, nº 154, de 5 de Julho de 1999, p. 9635 ss).
Para aplicação do regime de excepção previsto no nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 327/90, é indispensável a prova de que o incêndio da propriedade em causa se ficou a dever a causas fortuitas, a que os interessados são alheios. Não estando em causa qualquer questão de responsabilidade criminal do proprietário, a imposição deste ónus da prova não surge como desadequado, desnecessário, nem desproporcionado ao objectivo imediato pretendido – impedir que o proprietário venha a beneficiar em termos urbanísticos da destruição florestal provocada pelo incêndio – e aos fins públicos da protecção do ambiente e da promoção de um correcto ordenamento do território
Não existe em tal exigência qualquer medida discriminatória ou excessiva, susceptível de constituir violação dos artigos 9º, alínea b), 13º,
18º, nºs 2 e 3, 26º, nº 1, da Constituição.
10.3. Por último, invoca-se no presente recurso a violação do artigo 12º, nº
2, da Constituição.
Em ponto algum da argumentação expendida pela recorrente vem explicitado qual o sentido de tal violação. Nem se vê como possam as normas questionadas contrariar a norma constitucional segundo a qual 'as pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza'.
11. Conclui-se, assim, que as normas em apreciação não violam o princípio da protecção da confiança inerente à ideia de Estado de direito (artigos 2º, 3º,
9º, alínea b), da Constituição), 'entendido aquele princípio como garantia de um direito dos cidadãos à segurança jurídica – da segurança que assenta no facto de os cidadãos poderem confiar na ordem jurídica para, nos limites dela, ordenarem e programarem as suas vidas' (citado acórdão nº 329/99).
III
12. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) não julgar inconstitucionais as normas constantes dos nºs
1 e 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 327/90, de 22 de Outubro;
b) consequentemente, negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta. Lisboa, 23 de Novembro de 1999 Maria Helena Brito Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida