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Processo n.º 369/99 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. M... e sua mulher, MR..., interpõem o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de Abril de 1999, para apreciação da constitucionalidade da norma constante do artigo 47º da Lei n.º 68/78, de 16 de Outubro.
O acórdão recorrido (do Supremo Tribunal de Justiça) negou a revista do acórdão da Relação, que confirmou a sentença da 1ª instância, que, por sua vez, julgou improcedente a acção proposta pelos aqui recorrentes contra as seguradoras A..., SA, COMPANHIA DE SEGUROS B...,SA, T..., SA, COMPANHIA DE SEGUROS I..., SA, COMPANHIA DE SEGUROS P...., SA, F..., SA, e MC..., SA. Nessa acção, os ora recorrentes pediram a condenação daquelas seguradoras no pagamento das seguintes quantias: 4.243.000$00, 2.000.000$00, 4.000.000$00,
1.000.000$00, 35.000$00, 600.000$00 e 832.200$00, respectivamente, acrescidas de juros legais desde a citação, tendo fundado o pedido no facto de terem sido donos de uma unidade fabril (sita no Largo do Mosteiro, Leça do Balio), que, em
1979, fora destruída por um incêndio, ascendendo os prejuízos a 25.000.000$00, cobertos até ao valor de 13.026.000$00 pelos contratos de seguro que tinham celebrado com as rés. Na mesma acção, o ESTADO aceitou o chamamento à autoria.
A improcedência da acção ficou a dever-se ao facto de se ter entendido que, não obstante os contratos de seguro invocados, os aqui recorrentes não tinham direito a receber qualquer indemnização pelos danos provocados pelo incêndio da unidade fabril, em virtude de, na data em que ocorreu o incêndio, o estabelecimento se encontrar em autogestão, pois que o não reivindicaram no prazo de 120 dias a contar da data da entrada em vigor da Lei n.º 68/78, de 16 de Outubro.
Neste Tribunal, alegaram os recorrentes que concluíram como segue a sua alegação:
(a). O artigo 47º da Lei n.º 68/78 é inconstitucional, desde logo por violação do artigo 62º da Constituição.
(b). Nenhuma das disposições invocadas no acórdão do Tribunal Constitucional de
11 de Julho de 1984, perfilhado sem reservas pelo acórdão sob recurso, pode ser tomada como restritiva do direito reconhecido nesse preceito constitucional.
(c). Trata-se, como é fácil de ver, de simples preceitos reguladores de situações previsivelmente verificadas e que, pressupondo o desapossamento regular e legítimo dos seus antigos donos, os classificam nas várias categorias indicadas e determinam o respectivo regime.
(d). E se tais preceitos, em grande parte desaparecidos ou modificados, alguma coisa significassem em abono da tese do acórdão, já hoje não podiam ser invocados na forma que ostentavam na altura, por força do disposto no artigo
290º da Constituição, necessariamente aplicável a todas as situações passadas, presentes e futuras, já que não é admissível em qualquer caso que haja leis vinculativas contrárias à Constituição em vigor.
(e). E a todos os argumentos extraídos no direito interno, pode e deve acrescentar-se o que dimana do Protocolo n.º 1 anexo à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que impõe o respeito pelos bens das pessoas, singulares ou colectivas, ressalvando apenas, quando os estados façam a respectiva reserva, a regulamentação do uso desses bens, o que não significa a perda do direito de quem os possua, ou carta branca para dispor deles, negando a sua titularidade a quem realmente for dono deles.
(f). Julgando como julgou, o acórdão violou os artigos 8º, 62º, 82º, 88º e 290º da Constituição, o primeiro deles em conjugação com o Protocolo n.º 1 anexo à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
As seguradoras alegaram, dizendo que 'as conclusões das alegações dos recorrentes devem improceder e o douto acórdão recorrido ser integralmente confirmado'.
O MINISTÉRIO PÚBLICO, em representação do Estado, apresentou alegações que concluiu como segue:
1º - Face ao circunstancialismo político-económico e social vigente em 1978 e perante o quadro constitucional – emergente da versão originária da Constituição
– então existente, não representa solução violadora de qualquer preceito ou princípio constitucional a que se traduz em condicionar o direito à reivindicação das empresas autogeridas por parte dos respectivos proprietários a um prazo de caducidade de 120 dias, contados da entrada em vigor do diploma legal que – pela primeira vez – veio regular as numerosas situações de autogestão pelos trabalhadores, até então criadas no plano fáctico.
2º - Na verdade, tal prazo visava dar resposta à complexa situação então verificada procurando obstar, de acordo com valores constitucionalmente relevantes, a que se protelasse indefinidamente a definição da situação jurídica das empresas em autogestão pelos trabalhadores, com naturais efeitos nocivos no tecido económico e no emprego.
3º - Termos em que deverá confirmar-se inteiramente o juízo de não inconstitucionalidade, pelos fundamentos que constam do Acórdão nº 76/84.
2. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. A norma sub iudicio. A Lei n.º 68/78, de 16 de Outubro, a que pertence o artigo 47º, questionado sub specie constitutionis neste recurso, foi editada para regular juridicamente a situação de um numeroso grupo de empresas e estabelecimentos, cuja gestão, depois de 25 de Abril de 1974, tinha sido assumida de facto pelos respectivos trabalhadores. Dispõe-se, com efeito, no n.º 1 do artigo 1º de tal lei que ela se aplica 'às empresas e estabelecimentos comerciais, industriais, agrícolas ou pecuárias em que, por uma evolução de facto não regularizada ainda nos termos gerais de direito, os trabalhadores assumiram a gestão entre 25 de Abril de 1974 e a data da entrada em vigor da presente lei, sob forma cooperativa, autogestionária ou qualquer outra, tenham ou não sido credenciados por qualquer Ministério'. E acrescenta-se no n.º 2 do mesmo artigo que ela se não aplica às empresas e estabelecimentos referidos no n.º 1, em relação aos quais 'a situação sempre haja sido juridicamente regular ou se encontre actualmente regularizada, nos termos gerais de direito' [ alínea a)] ou em que essa 'situação jurídica tenha sido definida por decisão judicial com trânsito em julgado, não meramente cautelar, à data da entrada em vigor do presente diploma' [ alínea b)] . As empresas a que a lei se aplica são, todas elas, consideradas empresas em autogestão (cf. o n.º 3 do artigo 1º). E, de acordo com o que preceitua o artigo
2º, a autogestão é: (a). litigiosa, quando há oposição do proprietário, singular ou colectivo, da empresa ou do estabelecimento (n.º 1); (b). viciada, quando se constituiu ou manteve por actos graves ou censuráveis, designadamente de violência ou fraude (n.º 2); (c). justificada, nomeadamente: (c1). quando, no momento da sua constituição, se verificavam os pressupostos da falência fraudulenta; (c2). quando, por culpa do proprietário, ficou comprometida gravemente a viabilidade económica da empresa ou do estabelecimento; (c3). quando o proprietário revelou manifesto desinteresse equivalente ao abandono [ n.º 3, alíneas a), b) e c)] . A autogestão será, no entanto, considerada injustificada - prescreve o n.º 4 do artigo 2º -, quando, 'ponderadas as circunstâncias de cada caso, não se poderia razoavelmente exigir do empresário normal que se mantivesse à frente da sua empresa ou estabelecimento na altura em que se iniciou a autogestão'.
Enquanto a autogestão não foi regularizada definitivamente - e, para essa regularização, os proprietários dispuseram de um prazo de 120 dias a contar da data da entrada em vigor do diploma aqui em causa [ cf. artigos 39º, n.º 1, alínea b), 40º, n.º 1, e 47º] -, a lei manteve as situações de facto existentes, ficando as empresas ou estabelecimentos na situação de autogestão provisória. Nessa situação - preceituam os artigos 3º e 30º -, os proprietários das empresas ou estabelecimentos mantiveram a nua titularidade do seu direito, dela podendo dispor entre vivos ou por morte, do mesmo modo que podiam dispor das partes sociais de pessoas colectivas (artigo 33º). Decorrido aquele prazo de 120 dias, se os proprietários não reivindicaram as empresas ou estabelecimentos, nem pediram judicialmente a restituição da respectiva posse, ou, tendo-o feito, se não tiveram êxito nas respectivas acções - e a improcedência das acções era inevitável (diz o artigo 40º, n.º 2), sempre que se provasse que a autogestão fora justificada, nos termos dos nºs 3 e 4 do artigo 2º -, a dita nua titularidade transferiu-se para o Estado (artigo 47º, nºs 1 e 2).
A referida nua titularidade - dispõe o artigo 31º - confere ao proprietário da empresa ou do estabelecimento as seguintes faculdades: (a). a faculdade de recuperar a plenitude dos seus direitos cessada a situação de autogestão, salvo se essa cessação implicar outros efeitos jurídicos; (b). a faculdade de ser indemnizado, nos termos gerais de direito, se for privado da nua titularidade, salvo nos casos de autogestão justificada nos termos do artigo 2º; (c). a faculdade de denunciar ao INEA (Instituto Nacional das Empresas em Autogestão) quaisquer irregularidades cometidas na ou pela empresa, no ou pelo estabelecimento, devendo o INEA investigá-las e comunicar-lhe fundamentadamente os resultados da investigação; (d). a faculdade de solicitar em juízo, em acção de processo comum proposta contra o colectivo de trabalhadores representado pela comissão de gestão em exercício, a qualificação da autogestão, nos termos do artigo 2º, para efeitos de definição do respectivo regime; (e). a faculdade de solicitar ao INEA que lhe seja fixada uma renda mensal, a pagar pela empresa ou pelo estabelecimento, no caso de carecer dela para assegurar a satisfação das suas necessidades essenciais ou do seu agregado familiar, sendo que, dessa decisão da INEA, cabe recurso para o tribunal, a interpor pelo proprietário ou pela comissão de gestão da empresa ou do estabelecimento.
Na autogestão, a posse útil da empresa ou estabelecimento - que compreende 'a detenção e fruição de todos os bens da empresa ou estabelecimento e a possibilidade de exigência daqueles que não detenha' (artigo 11º, n.º 1) - pertence ao colectivo dos trabalhadores permanentes da mesma, em contitularidade, ou, se assim se organizarem, à pessoa colectiva (artigo 12º, n.º 1). Essa posse útil - que cessa automaticamente, uma vez exercido, com
êxito, pelo proprietário o direito à restituição da respectiva posse (artigo
41º) - é, no entanto, intransmissível e insusceptível de conduzir à usucapião
(artigo 12º, n.º 2).
Nos termos do disposto no artigo 38º, a regularização definitiva da autogestão deu lugar a uma das seguintes situações: (a). definição da situação do proprietário; (b). aquisição pelo Estado da propriedade plena da nua titularidade da empresa ou do estabelecimento; (c). aquisição pelo colectivo dos trabalhadores da nua titularidade da empresa ou do estabelecimento.
A situação do proprietário - dispõe o artigo 39º - pôde definir-se por algum dos modos seguintes: (a). acordo entre o proprietário e o colectivo dos trabalhadores, homologado pelo INEA, celebrado por escritura pública; (b). decurso do prazo de 120 dias, a contar da data da entrada em vigor da lei, sem que o proprietário tenha intentado acção de reivindicação da empresa ou do estabelecimento ou da restituição da sua posse; (c). decisão judicial proferida em acção intentada dentro do referido prazo de 120 dias; (d). expropriação da empresa ou do estabelecimento ou da nua titularidade sobre a mesma.
Os trabalhadores podem adquirir a nua titularidade da empresa ou do estabelecimento por acordo com o proprietário, homologado pelo INEA, ou, sempre que a nua titularidade pertencer ao Estado, por acordo com este, que, para o efeito, é representado pelo mesmo INEA (artigo 48º).
O Estado - preceitua o artigo 43º - pode adquirir as empresas ou estabelecimentos em autogestão por algum dos seguintes modos: (a).mediante expropriação da própria empresa ou estabelecimento ou da sua nua titularidade;
(b). por caducidade do direito do proprietário a reivindicar a empresa ou o estabelecimento ou a exigir a restituição da sua posse; (c). por acordo com o proprietário.
De acordo com este artigo 43º, a expropriação, cujo objecto - repete-se - pode ser a própria empresa ou estabelecimento ou a sua nua titularidade, faz-se 'nos termos gerais de direito, sob proposta fundamentada do INEA, do colectivo de trabalhadores ou dos proprietários da nua titularidade', não havendo lugar ao pagamento de qualquer indemnização pela posse útil (artigo 44º, nºs 1 e 2). A caducidade do direito do proprietário a reivindicar a empresa ou o estabelecimento ou a exigir a restituição da sua posse - caducidade que implica a aquisição pelo Estado da empresa ou do estabelecimento (ou da sua nua titularidade) - dá-se nos termos do artigo 47º, aqui sub iudicio, que prescreve:
1. O direito de reivindicar a empresa ou de exigir judicialmente a restituição da sua posse caduca decorridos 120 dias sobre a data da entrada em vigor do presente diploma.
2. Verificando-se a caducidade do direito a reivindicar a empresa ou a exigir a restituição da sua posse ou o decaimento nas mesmas acções, a nua titularidade transfere-se para o Estado.
Por força deste preceito, passou a impender sobre o proprietário da empresa (ou estabelecimento) em autogestão (provisória) - a quem a lei reconheceu apenas a nua titularidade do direito - o ónus de reivindicar essa empresa (ou estabelecimento) ou de exigir judicialmente a restituição da sua posse, no prazo de 120 dias a contar da data da entrada em vigor da Lei n.º 68/78, de 16 de Outubro, sob pena de caducidade do direito de acção. Caducando o direito do proprietário a propor a acção, em virtude de o não ter feito no apontado prazo de 120 dias ou de a ter visto soçobrar, a nua titularidade transferiu-se para o Estado.
É esta uma aquisição (a aquisição pelo Estado da nua titularidade) que, obviamente, decorre directamente da lei e que, por isso, se distingue da que tem lugar mediante expropriação da empresa ou do estabelecimento, ou da expropriação da nua titularidade dos mesmos, ao abrigo da alínea a) do artigo 43º, a qual, como se disse, se faz 'nos termos gerais de direito, sob proposta fundamentada do INEA, do colectivo de trabalhadores ou dos proprietários da nua titularidade'
(artigo 44º, nºs 1 e 2).
A questão de constitucionalidade que o mencionado artigo 47º coloca é, pois, a de saber se é constitucionalmente legítima a desapropriação a favor do Estado da nua titularidade das empresas ou estabelecimentos em autogestão, cujos proprietários os não reivindicaram, nem exigiram judicialmente a restituição da sua posse, no prazo de 120 dias a contar da entrada em vigor da dita Lei n.º
68/78, ou que, tendo-o feito, viram soçobrar as respectivas acções.
4. Considerações preliminares.
4.1. Recorda-se que os recorrentes, para sustentar a inconstitucionalidade da norma sub iudicio, invocam - para além do artigo 62º da Constituição (e, bem assim, dos artigos 82º e 88º) - também o Protocolo n.º 1 adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que, no seu artigo 1º, prescreve: Qualquer pessoa singular ou colectiva tem direito ao respeito dos seus bens. Ninguém pode ser privado do que é sua propriedade a não ser por utilidade pública e nas condições previstas na lei e pelos princípios gerais de direito internacional. As condições precedentes entendem-se sem prejuízo do direito que os Estados possuem de pôr em vigor leis que julguem necessárias para a regulamentação do uso dos bens, de acordo com o interesse geral, ou para assegurar o pagamento de impostos ou outras contribuições ou de multas.
Nesta impostação do problema, vai, naturalmente, implícita a ideia de que, em matéria de direitos fundamentais (ou de direitos do homem), o controlo de constitucionalidade abrange a apreciação da conformidade das normas internas com princípios jurídico-internacionais recebidos in foro doméstico - ou seja: que a competência do Tribunal Constitucional para um tal controlo inclui também essa faculdade de apreciação.
O Tribunal não precisa, porém, de tomar posição sobre esta questão.
É que, o preceito jurídico-internacional invocado, recebido in foro domestico com a publicação da Lei n.º 68/78, de 13 de Outubro, que o aprovou para ratificação (cf. o artigo 8º, n.º 2, da Constituição), nada diz que se não contenha já nos preceitos constitucionais pertinentes.
Por isso, à semelhança do que este Tribunal ponderou noutras ocasiões [ cf., entre outros, os acórdãos 440/87, 99/88, 149/88, 124/90, 186/92 e 322/93
(publicados no Diário da República, II série, de 17 de Fevereiro de 1988, 22 de Agosto de 1988, 17 de Setembro de 1988, 8 de Fevereiro de 1991, 18 de Setembro de 1992 e 29 de Outubro de 1993, respectivamente)] , tal preceito jurídico-internacional será aqui tomado em consideração apenas 'enquanto elemento coadjuvante da clarificação do sentido e alcance' do direito de propriedade, e não 'como padrão autónomo de um juízo de inconstitucionalidade'.
Sempre se registará, no entanto, que o mencionado Protocolo n.º 1 foi aprovado para ratificação com a seguinte reserva: 'O artigo 1º do Protocolo não obsta a que, por força do disposto no artigo 82º da Constituição, as expropriações de latifundiários e de grandes proprietários e empresários ou accionistas possam não dar lugar a qualquer indemnização em termos a determinar por lei' (cf. o artigo 4º da citada Lei n.º 65/78). Esta reserva foi, no entanto, retirada posteriormente, pela Lei n.º 12/87, de 7 de Abril, que revogou aquele artigo 4º.
4.2. Também no propósito de demonstrar que a norma sub iudicio viola o artigo
62º da Constituição, afirmam os recorrentes que, ainda que os preceitos invocados pelo acórdão n.º 76/84 deste Tribunal (publicado no Diário da República, II série, de 11 de Fevereiro de 1985), 'perfilhado sem reservas pelo acórdão sob recurso', 'alguma coisa significassem em abono da tese do acórdão' - ou seja: em abono da conclusão de que a norma constante do artigo 47º da Lei n.º
68/78, de 16 de Outubro, não é inconstitucional -, a verdade é que se trata de
'preceitos em grande parte desaparecidos ou modificados', que já hoje não podem
'ser invocados na forma que ostentavam na altura, por força do disposto no artigo 290º da Constituição, necessariamente aplicável a todas as situações passadas, presentes e futuras, já que não é admissível em qualquer caso que haja leis vinculativas contrárias à Constituição em vigor'.
Há-de convir-se que a invocação do artigo 290º da Constituição - que dispõe que
'as leis constitucionais posteriores a 25 de Abril de 1974 não ressalvadas neste capítulo são consideradas leis ordinárias, sem prejuízo do disposto no número seguinte' (n.º 1) e que 'o direito ordinário anterior à entrada em vigor da Constituição mantém-se, desde que não seja contrário à Constituição ou aos princípios nela consignados' (n.º 2) - não faz sentido. De facto, o referido aresto não se arrima a qualquer lei constitucional posterior a 25 de Abril de 1974, mas à Constituição de 1976. E, por outro lado, a Lei n.º 68/78, de 16 de Outubro, cujo artigo 47º aqui está sub iudicio, não é, obviamente, direito ordinário anterior à entrada em vigor da Constituição.
É, por isso, improcedente o argumento que os recorrentes pretendem extrair desse artigo 290º no sentido da inconstitucionalidade da norma constante do dito artigo 47º.
Sucede, no entanto, que, do discurso dos recorrentes, ressalta a ideia de que eles tomam cada uma das versões saídas das várias revisões constitucionais como uma nova Constituição: na verdade, no n.º 4 das alegações, referem-se à Constituição de 1976 e à Constituição de 1982. E mais: os recorrentes sustentam que as alterações introduzidas pelas sucessivas revisões constitucionais 'não podem deixar de ser tomadas em conta quando se trate de avaliar o mérito ou demérito do preceito posto em causa, ou seja, o artigo 47º da Lei n.º 68/78'. A Constituição de 1976, embora alterada nas revisões constitucionais de 1982,
1989, 1992 e 1997, continua a ser a mesma Constituição. As revisões introduziram alterações mais ou menos profundas e produziram um novo texto, mas não uma nova Constituição. As revisões, tendo sido feitas com respeito pelos limites materiais fundamentais que a própria Constituição põe ao poder de revisão (cf. o artigo 290º, na versão originária, e o actual artigo 288º), produziram textos que, em muitos e significativos pontos, são bastante diferentes do primitivo. A Constituição continua, porém, a ser a mesma: Portugal continua a assumir-se como
'uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária'
(artigo 1º); e a afirmar-se como 'um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa'
(artigo 2º). Continua a afirmar a subordinação do Estado à Constituição e a apontar a legalidade democrática como fundamento do próprio Estado (artigo 3º, n.º 1) e a fazer depender 'a validade das leis e dos demais actos do Estado, das regiões autónomas, do poder local e de quaisquer outras entidades públicas' da sua conformidade com a Constituição (artigo 3º, n.º 2). Mais: fixa as regras por que Portugal se há-de reger nas relações internacionais (artigo 7º); afirma que as normas e os princípios de direito internacional ou comum fazem parte integrante do nosso direito (artigo 8º, n.º 1); e fixa as condições de vigência na ordem jurídica interna do direito internacional convencional (artigo 8º, n.º
2). Além disso, no artigo 9º, fixa ao Estado importantes tarefas fundamentais, cujo cumprimento concorrerá decerto para a construção de uma sociedade e de uma comunidade internacional mais justas e solidárias; e, no artigo 10º, acentua que
'o povo exerce o poder político através do sufrágio universal, igual, directo, secreto e periódico, do referendo e das demais formas previstas na Constituição'
(n.º 1) e que 'os partidos políticos concorrem para a organização e para a expressão da vontade popular, no respeito pelos princípios da independência nacional, da unidade do Estado e da democracia política' (n.º 2). Em suma: mantém-se a ideia de que o Estado há-de servir o homem, respeitando-o na sua dignidade e nos seus direitos, enquanto pessoa, enquanto cidadão e enquanto trabalhador. Mantém-se a concepção originária de Estado e a mesma arquitectura institucional. E o Estado continua empenhado na construção de uma sociedade mais justa e solidária, e em participar no estabelecimento de uma ordem internacional que se reja pela justiça, promova a paz e respeite os direitos das pessoas e dos povos.
Há, então, que abordar a questão de saber se o artigo 47º, aqui sob exame, deve ser avaliado à luz da última revisão constitucional ou, antes, confrontado com o texto constitucional vigente na data em que ele produziu os seus efeitos, que era a versão original da Constituição.
Deve começar-se por ponderar que, quando estão em causa normas constitucionais de competência, de forma ou de procedimento (ou seja: questões de inconstitucionalidade orgânica ou formal), o princípio a observar é o do tempus regit actus, segundo o qual a competência e a forma dos actos normativos devem aferir-se pelas normas constitucionais vigentes no momento da sua produção. E que, quando se trata de apurar a existência de contradição entre o conteúdo de uma norma de direito ordinário e o conteúdo normativo da Constituição (é dizer: quando tem que decidir-se uma questão de inconstitucionalidade material) - e isso é o que sucede no caso -, as normas ou princípios constitucionais a ter em conta são as que estiverem em vigor no momento em que esse confronto houver de ser feito: há-de atender-se, designadamente, às normas e princípios constitucionais resultantes de uma revisão constitucional posterior a essas normas infraconstitucionais, as quais, por virtude dessa mesma revisão, podem tornar-se supervenientemente inconstitucionais [ cf. o acórdão n.º 468/89
(publicado no Diário da República,. II série, de 30 de Janeiro de 1990)] . Isto, porém, não resolve a questão de saber se, para ajuizar da constitucionalidade do mencionado artigo 47º, deve ele, no presente caso, ser confrontado com as normas constitucionais resultantes da revisão de 1997, se com as do texto constitucional original, que eram as que estavam em vigor no momento em que ele produziu os seus efeitos. Como decorre do que preceitua o artigo
282º, n.º 2, da Constituição, a inconstitucionalização superveniente de uma norma infraconstitucional como consequência de uma revisão constitucional posteriormente ocorrida, que tenha introduzido norma ou princípio com que aquela
é incompatível, só opera para o futuro (ex nunc), e não para o passado (ex tunc). E, por isso, tal norma de direito ordinário só passa a ser inconstitucional a partir da revisão constitucional que acarrete a sua inconstitucionalização [ cf. J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 1993, página 995)] .
Pois bem: o artigo 47º da Lei n.º 68/78, de 16 de Outubro, já produziu - e esgotou - há muito, os seus efeitos. Tal sucedeu com o decurso do prazo de 120 dias, contados da data da sua entrada em vigor, aí fixados para os proprietários da unidade fabril atrás referida a reivindicarem ou pedirem a restituição judicial da sua posse, e, bem assim, com a transferência para o Estado da nua titularidade do direito, em virtude de os proprietários, a quem a mesma pertencia, não terem, naquele prazo, proposto nenhuma daquelas acções ou de as terem visto soçobrar. Por isso, se devessem aplicar-se, in casu, as normas constitucionais, que, após qualquer das revisões constitucionais efectuadas
(designadamente, da revisão de 1997), regulam o instituto do direito de propriedade privada; e se essas normas, porventura, importassem a inconstitucionalização superveniente da norma do dito artigo 47º, ao abrigo da qual se operou a transferência da nua titularidade dos proprietários para o Estado; e se, por isso, houvesse agora de considerar-se inconstitucional tal transferência; as normas resultantes daquela revisão estariam a aplicar-se retroactivamente. Com efeito, estar-se-iam a valorizar ex novo os factos constitutivos da referida transferência da nua titularidade [ cf., a propósito, o artigo 12º, n.º 2, primeira parte, do Código Civil; e BAPTISTA MACHADO (Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, Coimbra, 1968, página 49 e seguintes)] . Ou seja: estar-se-iam a aplicar as normas constitucionais saídas da revisão de 1997 para o passado, e não para futuro. A verdade, porém, é que, como decorre do que se disse, não pode atribuir-se eficácia retroactiva às normas resultantes de uma revisão constitucional
(revisão de 1997, incluída).
Convém recordar aqui o que sobre a questão da aplicação no tempo da Constituição se escreveu no acórdão n.º 319/89 (publicado no Diário da República, II série, de 28 de Junho de 1989). Disse-se aí: Ora, independentemente da questão geral de saber se, e em que circunstâncias ou no respeitante a que situações, é de reconhecer às normas constitucionais eficácia retroactiva, na falta de uma menção expressa a esse respeito, a verdade
é que não se vê como possa atribuir-se tal eficácia à Constituição portuguesa vigente no ponto aqui considerado: não fornece ela, na verdade, nenhuma indicação nesse sentido. Assim, necessário se torna concluir que a simples circunstância de perdurar ou subsistir na sua vigência o efeito da perda da nacionalidade portuguesa anteriormente operado por força do disposto no artigo
4º do Decreto-Lei n.º 308-A/75 não era suficiente para estabelecer uma conexão - uma conexão jurídico-constitucionalmente relevante - entre esta norma e essa Constituição. Ou seja: não era suficiente para legitimar uma apreciação da constitucionalidade da primeira à luz da segunda. E daqui se retira já uma dupla conclusão: por um lado, que seria de excluir, por material e processualmente inadmissível, uma tal apreciação da constitucionalidade, no tocante aos efeitos já produzidos pela norma em causa à data da entrada em vigor da Constituição de 1976 [ ...] ; por outro lado, que uma conexão relevante entre o artigo 4º em apreço e a mesma Constituição apenas se terá estabelecido se as situações a que aquelas ligavam o efeito da perda da nacionalidade ainda continuaram a poder ocorrer depois da entrada em vigor dessa lei fundamental.
A constitucionalidade do mencionado artigo 47º vai, assim, ser avaliada à luz das normas constitucionais a que o referido acórdão n.º 76/84 fez apelo (ou seja: às normas da versão original da Constituição), e não por referência às normas que, após a revisão de 1997, estruturam constitucionalmente o direito de propriedade.
5. A questão de constitucionalidade. Esta questão já foi decidida no citado acórdão n.º 76/84, publicado no Diário da República, II série, de 11 de Fevereiro de 1985. Aí se concluiu que a norma do artigo 47º da Lei n.º 67/78, de 16 de Outubro, não é inconstitucional. Não havendo motivos para concluir diferentemente, é esse juízo de não inconstitucionalidade que se reafirma. As razões de uma tal conclusão são, essencialmente, as expostas in extenso naquele aresto, para elas agora se remetendo; aqui, far-se-á dessas razões tão-só um breve bosquejo.
Pois bem: como se mostrou naquele aresto, a aquisição pelo Estado da nua titularidade das empresas ou estabelecimentos em autogestão, cujos proprietários os não reivindicaram, nem exigiram judicialmente a restituição da sua posse, no prazo de 120 dias a contar da entrada em vigor da dita Lei n.º 68/78, ou que, tendo-o feito, viram soçobrar as respectivas acções - e, consequentemente, a desapropriação dos particulares seus proprietários - constitui um caso de socialização, determinada pelo objectivo de proteger as situações de autogestão, ou seja, determinada por uma razão de interesse público, como exigia - e exige - a Constituição, que, como se acentuou no acórdão n.º 39/88 (publicado no Diário da República, I série, de 3 de Março de 1988), proíbe intervenções arbitrárias nos meios de produção. Na verdade, a protecção das situações de autogestão era um objectivo constitucionalmente fixado, pois, no n.º 2 do artigo 61º, prescrevia-se que
'serão apoiadas pelo Estado as experiências de autogestão'; e, no n.º 1 do artigo 90º, acrescentava-se que 'constituem a base do desenvolvimento da propriedade social, que tenderá a ser predominante, os bens e unidades de produção com posse útil e gestão dos colectivos de trabalhadores [ ...] '. Escreveu-se, a propósito, no dito aresto n.º 76/84: Durante 'o período de pendência', o proprietário manterá, por força da Lei n.º
68/78, a 'nua titularidade', enquanto os trabalhadores continuam com a 'posse
útil'. E impõe-se ao proprietário o ónus de intentar uma acção de reivindicação em certo prazo. Tudo se passa como se a lei determinasse directamente a desapropriação (socialização) de todas as empresas em autogestão, salvo daquelas que viessem a ser reivindicadas com êxito dentro de determinado prazo. E mais adiante: Temo-nos referido, em geral, à 'nacionalização' e à 'socialização'. Rigorosamente, o segundo conceito é porventura aquele que se integra na hipótese em apreço.
A norma sub iudicio não se reporta, pois, a um caso de expropriação: esta estava prevista na alínea a) do artigo 43º da mencionada lei como um outro modo de o Estado adquirir a nua titularidade de tais empresas ou estabelecimentos. Tão-pouco determinava ou previa qualquer nacionalização. De resto, para o efeito aqui considerado, era de todo irrelevante estar-se em presença de um caso de nacionalização ou, antes, de uma hipótese de socialização: na verdade, o artigo
82º, n.º 1, da Constituição referia-se a ambas as formas de intervenção do Estado nos meios de produção. Escreveu-se, a propósito, no referido acórdão n.º 76/84: Mais não será necessário acrescentar para se reconhecer que no caso se estará perante 'socialização', e não propriamente perante 'nacionalização'. Repare-se, todavia, que a diferença, sem ser puramente conceitual, não tem relevância para os efeitos que neste acórdão se tem em vista. E ainda: Ora, o artigo 82º da Constituição é claro ao admitir que a nacionalização e a socialização podem revestir vários meios e formas. Ponto é que seja a lei a determiná-la ou a prevê-la. A Constituição não impõe nem forma nem processo próprio e típico para a nacionalização de unidades e meios de produção: existirá nacionalização sempre que, por qualquer modo previsto na lei, uma unidade de produção seja transferida, por vontade unilateral do Estado, para o sector público. Tanto faz que isto seja feito ope legis, genericamente, ou caso a caso. Há apenas uma condição e uma consequência: que a nacionalização seja determinada por lei ou na base de uma lei e que ao proprietário (empresário) seja atribuída a competente indemnização.
Não versando a norma sub iudicio sobre um caso de expropriação, para avaliar a sua legitimidade constitucional, não pode convocar-se o artigo 62º da Constituição, que dispunha: 'a todos é garantido o direito de propriedade privada e a sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição'
(n.º 1); e 'fora dos casos previstos na Constituição, a expropriação por utilidade pública só pode ser efectuada mediante pagamento de justa indemnização' (Sobre a distinção entre nacionalização e expropriação, designadamente para efeitos de indemnização, cf. o citado acórdão n.º 39/88 e a doutrina aí referida).
A norma que, então, há que convocar é, como resulta do exposto, o artigo 82º, n.º 1, que preceituava como segue: A lei determinará os meios e as formas de intervenção e de nacionalização e socialização dos meios de produção, bem como os critérios de fixação das indemnizações.
Os meios e formas de nacionalizar ou de socializar os meios de produção podiam, pois, ser os mais variados, já que na matéria não vigorava qualquer princípio de tipicidade ou de taxatividade. Referindo-se, justamente, ao referido artigo 82º, escreveu CARLOS MOTA PINTO
(Direito Público da Economia, Coimbra, 1982, lições coligidas por Belmiro Gil, página 83): O seu sentido mais profundo é outro e consiste no facto de a Constituição não excluir à partida nenhuma forma de intervenção ou colectivização por parte dos poderes públicos relativamente aos meios de produção. Não existe, pois, um princípio de tipicidade (ou taxatividade) nesta matéria.
Para legitimar constitucionalmente a nacionalização ou a socialização de meios de produção, necessário era, no entanto, como resulta do transcrito artigo 82º, n.º 1 ('a lei determinará [ ...] os critérios de fixação de indemnizações'), que ao proprietário, que fosse desapropriado da sua empresa ou estabelecimento, por algum daqueles meios, se pagasse uma indemnização. Essa indemnização (isto é, a indemnização devida por nacionalização ou socialização, nos termos do artigo 82º, n.º 1, da Constituição) - sublinhou este Tribunal no referido acórdão n.º 39/88 e repetiu-o no acórdão n.º 452/95
(publicado no Diário da República, II série, de 21 de Novembro de 1995) - tinha que obedecer a um princípio de justiça - o que vale por dizer que tinha que cumprir as exigências mínimas de justiça que vão implicadas na ideia de Estado de direito. Ou seja: 'tinha que ser razoável ou, pelo menos, aceitável', e não
'meramente irrisória' ou 'simbólica'.
Ora, para o caso da desapropriação das empresas ou estabelecimentos, mediante socialização dos mesmos, nos termos da norma constante do artigo 47º da Lei n.º
67/78, aqui sub iudicio, a lei prevê o pagamento de uma indemnização. Como se viu atrás, a alínea b) do n.º 1 do artigo 31º da Lei n.º 68/78 dispõe, na verdade, que 'a nua titularidade confere ao seu titular' a faculdade 'de ser indemnizado nos termos gerais de direito se for privado da nua titularidade, salvo nos casos de autogestão justificada nos termos do artigo 2º'. Quer isto dizer que o proprietário, que foi desapropriado da nua titularidade da sua empresa ou estabelecimento tem, em princípio, direito a ser indemnizado,
'nos termos gerais de direito'. Este critério (indemnização a fixar 'nos termos gerais de direito') é aquele que o mencionado artigo 82º, n.º 1, in fine, impunha que o legislador definisse. Os proprietários, que foram desapropriados da nua titularidade das suas empresas ou estabelecimentos, só não têm direito a ser indemnizados 'nos termos gerais de direito', nos casos seguintes: (a). quando, no momento da constituição da autogestão, se verificavam os pressupostos da falência fraudulenta; (b). quando, por culpa do proprietário, ficou comprometida gravemente a viabilidade económica da empresa ou do estabelecimento; (c). quando o proprietário revelou manifesto desinteresse equivalente ao abandono [ n.º 3, alíneas a), b) e c), do artigo 2º]
. Trata-se de situações em que a autogestão era justificada. E, então, o não pagamento de indemnização podia abonar-se com o disposto no n.º 2 do citado artigo 87º da Constituição, que preceituava que, 'no caso de abandono injustificado, a expropriação não confere direito a indemnização'.
6. Conclusão: A norma constante do artigo 47º da Lei n.º 68/78, de 16 de Outubro, aqui sub iudicio, não é inconstitucional, desde que interpretada no sentido de que a desapropriação a favor do Estado da nua titularidade das empresas ou estabelecimentos em autogestão, cujos proprietários os não reivindicaram, nem exigiram judicialmente a restituição da sua posse, no prazo de 120 dias a contar da entrada em vigor da dita Lei n.º 68/78, ou que, tendo-o feito, viram soçobrar as respectivas acções, confere a esses proprietários o direito de serem indemnizados ' nos termos gerais de direito', salvo se a autogestão era justificada nos termos do artigo 2º da mesma lei.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade. Custas pelos recorrentes, com 15 unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 2 de Novembro de 1999 Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (com declaração de voto junta). Declaração de voto
1. Tive e mantenho dúvidas sobre a possibilidade de conhecimento do objecto do recurso, uma vez que a improcedência da acção proposta assentou, como se lê no acórdão recorrido, em dois fundamentos: a caducidade do direito de reivindicar
'o estabelecimento fabril (...) ou, ‘se se quiser’, por a autogestão ser justificada'. Assim sendo, ainda que o presente recurso fosse julgado favoravelmente, manter-se-ia a improcedência pelo segundo fundamento.
2. Todavia, e admitindo o conhecimento da inconstitucionalidade suscitada, voto a decisão mas afasto-me da fundamentação aprovada. Na acção que deu origem ao presente recurso, a questão da titularidade aparece como questão prévia ao conhecimento da questão principal, que é o pedido de indemnização formulado contra as companhias de seguros. Neste contexto, o problema central parece-me ser o da transferência da propriedade por efeito do decurso do prazo fixado na lei para instaurar a acção de reivindicação, e não tanto o da existência ou inexistência de indemnização como contrapartida da perda do direito. Acompanhando parcialmente a declaração de voto apensa ao acórdão nº 76/84 citado na decisão, entendo que o prazo de 120 dias para a propositura da acção é desproporcionadamente curto por confronto com o efeito preclusivo que tem o seu decurso, assim infringindo a tutela constitucional da propriedade. Todavia, porque no caso concreto não posso deixar de entender ter já decorrido seguramente o prazo razoável para a reivindicação à data da propositura da acção de indemnização, votei a decisão de não inconstitucionalidade. Luís Nunes de Almeida