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Processo n.º 631/99
2ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório
1. Em 26 de Março de 1999, A. L. apresentou, no Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, pedido de suspensão de eficácia do despacho do Vereador da Câmara Municipal de Póvoa de Varzim de 16 de Março de 1999, que determinou, ao abrigo do disposto no artigo 7º do Decreto-Lei n.º 92/95, a posse administrativa de um prédio naquela localidade por forma a proceder à demolição das obras nele realizadas e tidas por ilegais por aquela Câmara Municipal. Por decisão de 6 de Maio de 1999 o juiz daquele tribunal considerou preenchidas as alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 76º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, mas não a sua alínea c) – por ter entendido que o acto cuja eficácia se pretendia ver suspensa era um acto confirmativo de uma anterior decisão de idêntico conteúdo com data de 10 de Julho de 1998, e, portanto, insusceptível de lesar os direitos ou os interesses legalmente protegidos do requerente e, como tal, irrecorrível –, razão pela qual indeferiu o requerimento de suspensão de eficácia. Recorreu o requerente para o Tribunal Central Administrativo que, por Acórdão de
22 de Julho de 1999, negou provimento ao recurso, confirmando o indeferimento do pedido de suspensão de eficácia – embora por razões diversas das do Tribunal Administrativo do Círculo do Porto –, entendendo que o acto lesivo dos direitos e interesses do recorrente não era nem 'o acto recorrido, nem o acto confirmado de 10/7/98, mas sim o acto que ordenou a demolição da obra do recorrente' (e que datava de 10 de Fevereiro de 1998). Nesse recurso, o recorrente suscitou a inconstitucionalidade da norma do artigo 167º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, em conjugação com o disposto no artigo 109º do Código do procedimento Administrativo.
2. Após arguição de nulidade das duas subsequentes notificações, veio A. L. interpor recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, concluindo desta forma as alegações produzidas neste Tribunal:
'A – O exercício do ius aedificandi, pertencendo aos particulares, é condicionado pelos entes públicos, por forma a conformar tal exercício com as normas de ordenamento do território, as quais, contribuindo para um interesse fundamental do estado, impõem aos entes locais a responsabilidade de velar pelo seu respeito; B – O processo de licenciamento de obras particulares tem por finalidade assegurar a conformidade do exercício do direito com as normas vigentes. Da mesma forma, o pedido de legalização de obra executada sem licença tem igualmente por finalidade verificar que o exercício do direito se processou em respeito com as normas de ordenamento do território em vigor; C – No âmbito do reforço de competências e de reforço das garantias dos particulares, configurou-se o princípio do deferimento tácito para a falta de resposta dentro do prazo nos pedidos de licenciamento de obras particulares; D – Não obstante o princípio do deferimento tácito, a protecção das normas de ordenamento do território encontra-se salvaguardada pela imposição do regime de nulidade do deferimento contra legem; E – A tramitação do processo de licenciamento de obras particulares, e de legalização de obra executada sem licença obedece às mesmas exigências, nomeadamente, através da intervenção de técnico, a cujas declarações de conformidade se reconhece a idoneidade suficiente para dispensar de verificação e vistoria a construção; F – A imposição da regra do indeferimento tácito do pedido de legalização de obra construída sem licença, é um meio excessivo para se alcançar o respeito pelas normas legais e regulamentares em vigor, criando uma dicotomia intolerável no sistema, atribuindo um poder discricionário aos entes locais que se lhes não reconhece no processo de licenciamento prévio; G – A prefiguração de um juízo sancionatório, não é justificativo da dicotomia, dado que esta se alcança já por força da tributação com taxa agravada, aquando do licenciamento, o que constitui regime sancionatório suficiente; H – A norma do artigo 167º do RGEU em conjugação com a norma do artigo 109º do C.P.A ofende de forma manifesta o princípio da proporcionalidade, devendo por tal facto declarar-se a sua inconstitucionalidade;' O recorrido não apresentou alegações. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3. É a seguinte a redacção da norma impugnada do Regulamento Geral das Edificações Urbanas:
«Artigo 167º A demolição das obras referidas no artigo 165º, só poderá ser evitada desde que a câmara municipal ou o seu presidente, conforme os casos, reconheça que são susceptíveis de vir a satisfazer os requisitos legais e regulamentares de urbanização, de estética, de segurança e de salubridade.
§ 1º O uso da faculdade prevista neste artigo poderá tornar-se dependente de o proprietário assumir, em escritura, a obrigação de fazer executar os trabalhos que se reputem necessários, nos termos e condições que forem fixados, e de demolir ulteriormente a edificação, sem direito a ser indemnizado – promovendo a inscrição predial deste ónus –, sempre que as obras contrariem as disposições do plano ou anteplano de urbanização que vier a ser aprovado.
§ 2º A legalização das obras ficará dependente de autorização do Ministro das Obras Públicas, solicitada através da Direcção-Geral dos serviços de Urbanização, quando possa colidir com plano ou anteplano de urbanização já aprovado ou, na área do plano director da região de Lisboa, nos casos em que a licença estivesse condicionada àquela autorização.»
É a seguinte a redacção do artigo 109º do Código do Procedimento Administrativo:
«[Indeferimento tácito]
1. Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, a falta, no prazo fixado para a sua emissão, de decisão final sobre pretensão dirigida a órgão administrativo competente confere ao interessado, salvo disposição em contrário, a faculdade de presumir indeferida essa pretensão, para poder exercer o respectivo meio legal de impugnação.
2. O prazo a que se refere o número anterior é, salvo o disposto em lei especial, de 90 dias.
3. Os prazos referidos no número anterior contam-se, na falta de disposição especial: a. Da data da entrada do requerimento ou petição no serviço competente, quando a lei não imponha formalidades especiais para a fase preparatória da decisão; b. Do termo do prazo fixado na lei para a conclusão daquelas formalidades ou, na falta de fixação, do termo dos três meses seguintes à apresentação da pretensão; c. Da data do conhecimento da conclusão das mesmas formalidades, se essa for anterior ao termo do prazo aplicável de acordo com a alínea anterior.' Tendo em conta que este artigo do Código de Procedimento Administrativo confere uma possibilidade que não foi actuada no presente caso – presumir o indeferimento tácito para efeito de impugnação –, estabelecendo prazos para a exercer, conclui-se que não está em causa o seu conteúdo directamente
'preceptivo' para efeito de impugnação, mas antes o facto de se presumir o indeferimento – nas palavras do recorrente, 'a imposição da regra do indeferimento tácito do pedido de legalização de obra construída sem licença', que seria 'um meio excessivo para se alcançar o respeito pelas normas legais e regulamentares em vigor.' E o artigo 167º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas tipificaria uma situação em que, justamente, existiria indeferimento tácito, não obstante o disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo 108º do Código de Procedimento Administrativo, que considera sujeito a deferimento tácito o licenciamento de obras particulares, sendo essa disparidade que é tida por inconstitucional:
'Traduzindo o licenciamento a comprovação de que as regras de ordenamento do território foram respeitadas (…) não [se] aceita (…) que tal comprovação possa ser considerada de forma tácita quando a obra não se encontra levantada, e não possa ser tacitamente deferida se a obra se encontra executada.'
É, portanto, apenas isto que constitui o objecto do recurso, podendo desconsiderar-se no presente recurso as normas dos dois parágrafos do artigo
167º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas e dos n.ºs 2 e 3 do artigo
109º do Código de Procedimento Administrativo – e, até, o remanescente de cada um dos artigos em si mesmo considerados.
4. Delimitado o objecto do recurso, poderia pôr-se em dúvida que tal objecto fosse pertinente para o meio processual que originou o presente recurso de constitucionalidade, uma vez que tal meio processual era um pedido de suspensão de eficácia, indeferido na decisão recorrida por existirem fortes indícios de ilegalidade da interposição do recurso [alínea c) do n.º 1 do artigo 76º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos – Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho]. Ora, na medida em que tal questão de constitucionalidade se não repercutisse em tal juízo, de nada valeria resolvê-la, dada a função instrumental do recurso de constitucionalidade (cfr. v.g. Acórdãos n.ºs 169/92,
257/92 e 272/94 publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 18 de Setembro de 1992, de 18 de Junho de 1993 e de 7 de Junho de 1994). Acontece, porém, que a própria decisão recorrida se interrogou sobre a interferência do pedido de legalização da obra na situação definida ao recorrente pela ordem de demolição – tido como o acto que verdadeiramente lesou os seus direitos e interesses – e sobre o sentido do silêncio face a tal pedido, concluindo que 'parece que só pode ser de indeferimento (…)'. Admitiu, portanto, que a atribuição de um outro sentido a tal silêncio tivesse repercussão no pedido de suspensão de eficácia. Uma vez que o que constitui objecto deste recurso de constitucionalidade é saber se esse outro sentido é constitucionalmente imposto, conclui-se que a decisão que o Tribunal Constitucional vier a proferir pode vir a projectar-se utilmente sobre a decisão tomada pelo tribunal a quo, pelo menos a julgar pelo seu discurso argumentativo. Assim, e porque estão preenchidos os requisitos do recurso de constitucionalidade interposto, nada obsta ao seu conhecimento.
5. O que está em causa é, portanto, saber se 'a norma do Art. 167º do RGEU em conjugação com a norma do artigo 109º do C.P., ofende de forma manifesta o princípio da proporcionalidade, devendo por tal facto declarar-se a sua inconstitucionalidade,' como conclui o recorrente, porquanto, como o escreveu nas alegações de recurso para o Tribunal Central Administrativo, 'manifesto é pois que a autorização contida no licenciamento de obra que se encontra já executada, deve enquadrar-se no elenco dos actos em que o silêncio da administração vale como deferimento e não no elenco de actos em que o silêncio deve ser entendido como indeferimento.' Ora,
'O princípio do excesso [ou princípio da proporcionalidade] aplica-se a todas as espécies de actos dos poderes públicos. Vincula o legislador, a administração e a jurisdição. Observar-se-á apenas que o controlo judicial baseado no princípio da proporcionalidade não tem extensão e intensidade semelhantes consoante se trate de actos legislativos, de actos da administração ou de actos de jurisdição. Ao legislador (e, eventualmente, a certas entidades com competência regulamentar) é reconhecido um considerável espaço de conformação (liberdade de conformação) na ponderação dos bens quando edita uma nova regulação. Esta liberdade de conformação tem especial relevância ao discutir-se os requisitos da adequação dos meios e da proporcionalidade em sentido restrito. Isto justifica que perante o espaço de conformação do legislador, os tribunais se limitem a examinar se a regulação legislativa é manifestamente inadequada.' (assim, Gomes Canotilho Direito constitucional e teoria da constituição, Coimbra, 1998, p.
264), Ora, estando em causa a constitucionalidade de uma norma, é apenas a intervenção do legislador que tem de ser aferida – com os limites assinalados.
6. Delimitado o objecto do recurso e o alcance do controlo que incumbe a este Tribunal efectuar, logo se conclui que a invocação do princípio da proporcionalidade – com sede no n.º 2 do artigo 18º da Constituição e não, como invocado pelo recorrente, nos artigos 13º, n.º 2 e 226º (onde se estabelecem os princípios fundamentais de actuação da Administração Pública) – não é de molde a fundar um juízo de inconstitucionalidade da solução normativa adoptada pelo legislador em sede de licenciamento de obras particulares já executadas, mesmo se desconforme com a que foi adoptada em sede de licenciamento de obras particulares não executadas. Por um lado porque, como foi referido na decisão recorrida - o Acórdão de 22 de Julho de 1999 do Tribunal Central Administrativo - não se pode reputar tal diferença de regimes como manifestamente inadequada:
'Trata-se de duas realidades distintas. E, por isso, o legislador distinguiu-as, inclusive deu diferente relevo ao silêncio da administração num e noutro caso. O requerente do licenciamento pretende construir, mas precisa de licença, por isso, impõe-se que a administração actue de forma rápida e eficiente. E daí que ao silêncio da administração durante determinado lapso de tempo, o legislador fez presumir o deferimento tácito da pretensão (art. 61º do Decreto-Lei n.º
445/91 e art. 108º do C.P.A.). Pelo contrário, no caso de pedido de legalização de obra, o requerente já desrespeitou a lei, de forma ilegal e abusiva construiu sem obter o consentimento da administração. Dado este comportamento, o legislador não entendeu premiar o infractor. Pelo que, no silêncio da administração, presume-se o indeferimento da pretensão (art. 109º do C.P.A).'
(…)
'A demolição das obras construídas ilegalmente e, portanto, ilegais, ‘só poderá ser evitada desde’ que se reconheça que poderão vir a satisfazer os requisitos legais. Isto é, a demolição é o fim previsto na lei para as obras ilegais, a qual só excepcionalmente poderá ser evitada. E daí que o pedido de legalização dessas obras se presuma indeferido no caso de silêncio da administração.' Por outro lado, como se escreveu no Acórdão n.º 634/93 (publicado no Diário da República, II Série, de 31 de Março de 1994), invocando a doutrina:
'o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).' Ora, a medida restritiva atinge verdadeiramente o ius aedificandi, sendo discutido se este se integra no direito de propriedade ou radica antes no acto administrativo autorizativo (cfr. os Acórdãos n.ºs 329/99, 517/99 e 602/99, os dois primeiros publicados no Diário da República, II Série, de 20 de Julho de
1999 e 11 de Novembro de 1999 e o último ainda inédito; e Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 1993, p. 333, anotação VII ao artigo 62º; em sentidos opostos podem ver-se Alves Correia, O plano urbanístico e o princípio da igualdade, Coimbra, 1989, pp. 372-382 e Freitas do Amaral, 'Apreciação da dissertação de doutoramento do licenciado Fernando Alves Correia', Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXII, 1991, pp. 99-101; um inventário e apreciação das diferentes posições da doutrina portuguesa encontra-se em Mário Esteves de Oliveira, 'O direito de propriedade e o ius aedificandi no direito português', Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, n.º 3, 1995, pp. 187-198). Pode, assim, desde logo duvidar-se de que esteja em causa uma 'restrição' de direitos, liberdades e garantias e, consequentemente, o âmbito de aplicação do princípio consagrado no n.º 2 do artigo 18º da Constituição. No primeiro daqueles referidos Acórdãos escreveu-se:
'mesmo quando se entenda que o direito a construir (...) é uma dimensão do direito de propriedade, as proibições decorrentes dos planos urbanísticos (...) resultam da necessidade de resolver as situações de conflito entre o direito de propriedade e as exigências de ordenamento do território. E os conflitos de direitos ou bens jurídicos resolvem-se, harmonizando esses direitos ou bens jurídicos em toda em que tal seja possível ou, quando o não for, fazendo que uns prevaleçam sobre outros, que, desse modo, são em parte sacrificados. Significa isto que a especial situação da propriedade (...) importa uma vinculação também especial (uma vinculação situacional), que mais não é do que uma manifestação da hipoteca social que onera a propriedade privada do solo. E, por isso, essa proibição, sendo, como é, imposta pela própria natureza intrínseca ou pela situação da propriedade, não pode ser havida como inconstitucional.' Ora, tendo isto em conta, não pode considerar-se que a demolição de obras tidas como ilegais - por não terem sido autorizadas - ofenda qualquer dos três subprincípios do princípio da proporcionalidade mesmo, como se disse, 'quando se entenda que o direito a construir (...) é uma dimensão do direito de propriedade.'
7. Finalmente, a aferição da disparidade de consequências do silêncio das entidades competentes em caso de obras particulares a realizar e já realizadas à luz do princípio da igualdade, não altera as conclusões já obtidas, uma vez que tal princípio, distinguindo-se embora do da proporcionalidade, se resolve em dimensões (proibição do arbítrio, proibição de discriminação e obrigação de diferenciação) que também não são postas em causa, pelas razões já constantes da decisão recorrida, por tal diferenciação de regime. (cfr. Pareceres n.º 1/76 e
26/82 da Comissão Constitucional, Pareceres da Comissão Constitucional, volumes
1º e 20º, e Acórdãos n.ºs 44/84, 142/85 e 336/86, publicados no Diário da República, II Série, de 11 de Julho de 1984 e 7 de Setembro e I Série, de 24 de Dezembro de 1986, respectivamente). Não havendo razões, também, para formular um juízo de inconstitucionalidade com outros fundamentos (cfr. artigo 79º-C da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção da Lei n. 85/89, de 7 de Setembro), há que concluir pela improcedência do presente recurso. III Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos nega-se provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que à questão de constitucionalidade diz respeito e condenando-se o recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em
15 unidades de conta. Lisboa, 22 de Novembro de 2000 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma Luís Nunes de Almeida