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Proc. nº. 241/99 TC - 1ª Secção Rel.: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - B. D., com os sinais dos autos, deduziu embargos de terceiro contra C. H. Leasing (Portugal) – Locação Financeira Mobiliária, S. A., por apenso a acção executiva que esta intentara contra, entre outros, o marido da recorrente e onde fora penhorado um prédio, bem comum do casal, pedindo que fosse ordenado o levantamento da penhora e a restituição da posse deste à embargante.
Invocou como fundamentos do seu pedido: ser o prédio penhorado bem comum do casal; não ter prestado aval – ao contrário de seu marido – a favor de uma sociedade comercial; não ter autorizado seu marido a prestar qualquer garantia a favor da embargada; ser o aval prestado por seu marido um acto gratuito, de mero favor para a sociedade avalizada de que nem tivera conhecimento; ter a execução sido instaurada apenas contra seu marido.
Por sentença de 17 de Julho de 1997 do Tribunal Judicial da Comarca de Fafe, os embargos foram julgados improcedentes, com fundamento no disposto no artigo 1696º nº. 1 do Código Civil, na versão vigente na altura, por força do artigo 27º do DL nº. 329-A/95, de 12 de Dezembro, e, em consequência, foi ordenado o prosseguimento da execução.
Inconformada, a embargante apelou para o Tribunal da Relação do Porto invocando nas alegações a inconstitucionalidade do citado artigo 27º do DL nº. 329-A/95.
Por acórdão de 11.05.1998, a Relação do Porto, manteve a decisão recorrida, julgando improcedente o recurso (cfr. fls. 97 a 101).
Deste acórdão recorreu a embargante para o Supremo Tribunal de Justiça, mantendo a invocação da aludida inconstitucionalidade, mas aquele Tribunal negou provimento ao recurso.
De novo inconformada, a embargante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do artigo 70º, nº. 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional 'por entender que a interpretação dada ao disposto do art. 27º. do D.L. 329/95 e a consequente aplicação imediata, aos processos pendentes da alteração da redacção do nº. 1 do art. 1696 do Cód. Civil, viola entre outros os princípios constitucionais da Proporcionalidade, da Equidade, da Igualdade, da Protecção que o Estado deve à Família e da Afectação dos bens comuns do casal à satisfação das necessidades do próprio casal, contidos entre outros nºs. arts.
2, 3, 9º, 13º, 20º, 36º e 67º da Constituição ...'
Neste Tribunal, a embargante/recorrente apresentou alegações, tendo concluído da seguinte forma:
'1. A valoração e interpretação dada pelo Tribunal 'a quo' à norma do art. 27º do DL nº. 329-A/95, introduzida inesperadamente pelo DL 180/96, o qual foi publicado na sequência da Lei de autorização legislativa nº. 28/96 de 2 de Agosto, extravasa e vai contra o sentido de revisão do dito DL 329-A/95 disposto e apontado nessa lei de autorização. O que, nessa medida, faz padecer de inconstitucionalidade orgânica aquela norma do art. 27º introduzida no DL
329-A/95. Por outro lado,
2. E é também inconstitucional aquela norma do art. 27º do DL 329-A/95 na medida em que legislou em matéria de reserva relativa da Assembleia da República sem a necessária autorização expressa, enquanto veio diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial de um direito social, e enquanto atribuiu efeito retroactivo a uma lei restritiva de um direito social, com ofensa dos princípios do Estado de Direito Democrático e da confiança dos cidadãos face ao poder legislativo. Por outro lado,
3. A interpretação dada pelo Tribunal 'a quo' à norma do art. 27º do dito DL
329-A/95, na sequência da qual se veio aplicar a inesperada e surpreendente nova redacção do nº. 1 do art. 1696º do Cód. Civil ao caso em discussão nesta acção declarativa deixa totalmente desprotegido e prejudicado o direito de Posse e Propriedade da Recorrente sobre o seu imóvel penhorado em razão de dívidas de outrém.
4. E, por isso, como supra se demonstrou, viola frontalmente os princípios da segurança jurídica e da confiança do cidadão na estabilidade dos direitos adquiridos, decorrentes da ideia de Estado de direito democrático, consagrados no art. 2º da Constituição, quando conjugado com o disposto no art. 62º da nossa Lei Fundamental.
5. Da mesma forma aquela interpretação da citada norma do art. 27º do DL
329-A/95 e consequente aplicação imediata e com efeitos largamente retroactivos da nova e inesperada redacção do nº. 1 do art. 1696º do Código Civil, ao caso dos autos e na sua actual e terminal fase processual, na medida em que trata de forma igual, situações de facto que são substancialmente desiguais, viola princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade, tanto quanto o direito à propriedade privada da Recorrente.
6. O princípio da igualdade não funciona apenas na vertente formal e redutora da igualdade perante a lei, implica do mesmo passo a aplicação igual de direito igual, o que pressupõe averiguação e valoração casuísticas da 'diferença', de modo que recebem tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e diferenciado os que se achem em situações legitimadoras da diferenciação. Acresce que,
7. Os efeitos retroactivos decorrentes da aplicação da nova redacção agora dada ao nº. 1 do art. 1696º do Cód. Civil, à presente acção declaratória, em fase de produção de prova e julgamento, representam um sacrifício desmesurado e iníquo dos legítimos interesses da Recorrente na defesa do seu património, tal como, na defesa da afectação dos bens comuns do casal à satisfação das necessidades comuns desse mesmo casal, e ainda, na defesa da estabilidade económica da sociedade conjugal.
8. Daí que, também a interpretação dada pelo Tribunal 'a quo' à norma do art.
27º do citado DL 329-A/95 e consequente aplicação com efeitos retroactivos ao caso dos autos da nova redacção introduzida no nº. 1 do art. 1696º do Cód. Civil, viola ainda os princípios constitucionais da proporcionalidade, da estabilidade económica da sociedade conjugal e da protecção que o Estado deve à Família.
9. Salvo o devido e merecido respeito e mais douta opinião, a interpretação dada pelo Tribunal 'a quo' à norma do art. 27º do DL 329-A/95, introduzida neste Decreto-Lei, pelo DL 180/96, e consequente aplicação imediata e com efeitos retroactivos do disposto na nova redacção dada ao nº. 1 do art. 1696º do Cód. Civil à presente demanda, viola os princípios constitucionais contidos nos arts.
2º, 3º nº. 3, 9, 13º, 18º nºs. 2 e 3, 36º, 62º e 67º da Constituição, os quais devem ser objecto de aplicação directa, imediata e conjugadamente, tal como padece aquele douto Acórdão do vício cominado e sancionado no art. 668º nº. 1 al. d) do C.P.Civil e art. 205º nº. 1 da Constituição.'
Cumpre decidir.
2 - Antes do mais, importa delimitar o objecto do recurso, tendo em conta que a embargante/recorrente, no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, pretende que se declare a inconstitucionalidade das normas quer do art. 4º quer do art. 27º do DL. 329-A/95.
A admissibilidade do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo do artigo 70º, nº. 1, alínea b) da Lei nº. 28/82, de 15 de Novembro – espécie e via utilizada pela recorrente – está dependente da verificação, como pressuposto processual, de a questão de inconstitucionalidade ter sido suscitada durante o processo.
Ora, relativamente à norma do artigo 4º do Decreto-Lei nº. 329-A/95, de 12 de Dezembro, verifica-se que a recorrente nunca suscitou qualquer questão de constitucionalidade durante o processo, no sentido de permitir às instâncias de recurso pronúncia oportuna sobre tal questão.
A recorrente levantou pela primeira vez a questão de constitucionalidade da norma constante do artigo 4º do Decreto-Lei nº. 329-A/95, de 12 de Dezembro, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, procedimento que se não mostra adequado para preencher o aludido requisito de admissibilidade do recurso.
A questão de constitucionalidade que deve ser conhecida por este Tribunal fica, assim, limitada à norma do artigo 27º do Decreto-Lei nº. 329-A/95, de 12 de Dezembro que determinou a aplicação imediata, aos processos pendentes, do artigo
1696º, nº. 1 do Código Civil na redacção dada pelo mesmo Decreto-Lei, norma essa que violaria os princípios constitucionais da proporcionalidade, da equidade, da igualdade, da protecção que o Estado deve à família e da afectação dos bens comuns do casal à satisfação das necessidades do próprio casal, contidos entre outros nos artigos 2º, 3º, nº3, 9º, 13º, 18º nºs. 2 e 3, 20º, 36º e 67º da Constituição; e seria, ainda, organicamente inconstitucional por extravasar o
âmbito da Lei de Autorização nº. 28/96, de 2 de Agosto.
3 - Dispõe o artigo 27º do Decreto-Lei nº. 329-A/95, de 12 de Dezembro:
'É aplicável nas causas pendentes à data da entrada em vigor deste diploma a nova redacção introduzida no artigo 1696º do Código Civil.'
Por força do artigo 4º do mesmo Decreto-Lei, passou a ser esta a redacção do artigo 1696º, nº. 1 do Código Civil:
'1. Pelas dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges respondem os bens próprios do cônjuge devedor e, subsidiariamente, a sua meação nos bens comuns'.
Relativamente à redacção anterior, eliminou-se, assim, a parte final do preceito nos termos do qual, o cumprimento à custa da meação só podia ser judicialmente exigido após dissolvido, declarado nulo ou anulado o casamento, ou depois de decretada a separação judicial de pessoas bens ou a simples separação judicial de bens, funcionando, deste modo, uma moratória forçada contra o credor exequente.
Como se referiu no Acórdão nº. 559/98 deste Tribunal, in Diário da República, II Série, de 12.11, 'com a imposição desta moratória, pretendia o legislador defender o suporte económico fundamental da família que os bens comuns do casal constituem. Ou seja: queria garantir a estabilidade do património familiar'.
O regime de responsabilidade pelas dívidas de um dos cônjuges foi, portanto, parcialmente alterado pelo Decreto-Lei nº. 329–A/95, de 12 de Dezembro, mas tal regime (direito material ou substantivo) não foi atacado pela recorrente, pelo que –disse-se já - está fora do objecto do recurso a discussão sobre a conformidade constitucional da supressão da moratória forçada.
O Tribunal Constitucional foi já chamado a pronunciar-se sobre a questão da constitucionalidade da norma do artigo 27º do Decreto-Lei nº. 329-A/95, no acórdão nº. 559/98, in Diário da República, II Série, de 12.11 e, mais recentemente, no acórdão nº. 508/99, de 21.09 – ainda inédito.
Importa fazer uma breve referência a esses arestos (a recorrente chama à colação o Acórdão nº. 559/98) para marcar as diferenças e semelhanças com o caso dos autos, o que é tanto mais conveniente quanto neles se formularam juízos de constitucionalidade opostos, embora não contraditórios. No primeiro dos referidos arestos, o Tribunal decidiu 'Julgar inconstitucional – por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da Constituição da República – a norma que se extrai da conjugação do artigo 27º do Decreto-Lei nº. 329-A/95, de 12 de Dezembro (acrescentado pelo Decreto-Lei nº. 180/96, de 25 de Setembro) com o artigo 1696º, nº. 1, do Código Civil (na redacção introduzida por aquele Decreto-lei nº. 329-A/95), interpretada no sentido de que a penhora de bens comuns do casal, feita numa execução instaurada contra um só dos cônjuges, para cobrança de dívidas por que só ele era responsável, contra a qual o cônjuge do executado tinha deduzido embargos de terceiro, que a 1ª instância e a Relação julgaram procedentes, em virtude de a execução estar, na altura, sujeita a moratória, passou a ser válida, desde que o exequente, ao nomear tais bens à penhora, tivesse pedido a citação desse cônjuge para requerer a separação de bens'.
Diferentemente, no acórdão nº. 508/99, este Tribunal não julgou inconstitucional a norma constante do artigo 27º do Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro.
Fê-lo, contudo, ponderando o decidido no Acórdão nº. 559/98 para afastar a identidade de situações, pois, para o juízo de inconstitucionalidade formulado naquele aresto, fora de 'importância vital' o facto de a embargante não poder já ser citada para requerer a separação de bens, o que não sucedia na situação concreta em apreço, sendo ainda certo que no mesmo aresto se conheceu também da constitucionalidade do regime substantivo estabelecido com a nova redacção do artigo 1696º nº. 1 do Código Civil.
Ora, o caso em análise assemelha-se, em termos de questão de constitucionalidade suscitada, ao do acórdão nº. 508/99, de 21.09: apenas a da conformidade constitucional do artigo 27º do DL nº. 329-A/95.
Outra circunstância aproximaria o caso dos autos do que foi julgado no mesmo Acórdão: não ter ocorrido qualquer pronúncia sobre o mérito dos embargos de terceiro, à luz do regime anterior à vigência da nova redacção dada ao artigo
1696º nº. 1 do Código Civil.
Na verdade, no caso do Acórdão nº. 559/98, a decisão de improcedência dos embargos por aplicação imediata daquele artigo (nova redacção), proferida no STJ, em contrário do que fora julgado em 1ª instância e na Relação, não deixava de ser antecedida de um juízo de concordância com a procedência dos embargos à luz do regime anterior.
E esta circunstância não é também alheia ao juízo de inconstitucionalidade, no referido Acórdão, sobre o artigo 27º do DL nº. 329-A/95 em conjugação com o artigo 1696º nº. 1 do Código Civil, que se diz ter sido interpretado 'em termos de convalidar uma penhora – a penhora de bens comuns – que, no momento em que foi feita a lei proibia (...)'.
Numa primeira aparência, nada disto acontece no caso dos autos, pois – repete-se
– não há na sentença de 1ª instância, confirmada pelos acórdãos da Relação e do STJ, qualquer juízo sobre a legalidade da penhora à luz do regime anterior, nem quaisquer considerações neste mesmo sentido.
De qualquer forma e numa leitura mais aprofundada daquela sentença parece resultar que, para a decisão tomada, sempre seria irrelevante saber se a penhora era, ou não, legal, face ao direito anterior, bastando que o exequente tivesse pedido a citação do cônjuge do executado para requerer a separação de bens.
E é este facto que acaba, no essencial e neste ponto concreto, por aproximar o caso decidido no Acórdão nº. 559/98.
A norma do artigo 27º do DL nº. 329-A/95 não deixou aqui de ser interpretada no sentido de que a aplicação imediata do regime se impunha qualquer que fosse o juízo sobre a (i)legalidade da penhora à luz do regime anterior.
4.1. – Começa a recorrente por suscitar a inconstitucionalidade (orgânica) da norma em causa por, neste ponto, o DL nº. 180/96 ter extravasado do âmbito da autorização legislativa concedida ao Governo pela Lei nº. 29/96.
A recorrente não indica, porém, mesmo aceitando que a norma do artigo 27º do DL nº. 329-A/95 se não comporta nos limites definidos pela lei de autorização, qual a norma constitucional que atribui competência reservada à Assembleia da República para legislar sobre a aplicação imediata aos processos pendentes do artigo 1696º nº. 1 do Código Civil.
Na verdade, no âmbito de um diploma autorizado, o facto de uma sua qualquer disposição ser estranha ao que a lei de autorização dispõe, não implica, por si só, uma violação das regras constitucionais de repartição de competências dos
órgãos de soberania.
Nada obsta a que, no diploma autorizado, o Governo legisle sobre outras matérias relacionadas ou conexas com as que foram objecto de autorização legislativa, desde que aquelas se não insiram na esfera de competência da Assembleia da República.
A questão que se coloca será, pois, a de saber se produzir uma norma como a do artigo 27º do DL nº. 329-A/95, na redacção introduzida pelo DL nº. 180/96, se integra na competência reservada da Assembleia da República.
Ora, para além da recorrente não indicar qual a alínea do nº. 1 do artigo 168º da CRP (revisão de 89) que consagra, no caso, essa competência, não se vê no elenco das matérias ali referidas qualquer uma que suporte a mesma competência.
Poderá inferir-se – até pelo apoio que procura no Acórdão do STJ de 5/2/98, documentado a fls. 145 e segs. – que a recorrente fundamenta a alegação na al. b) do nº. 1 do artigo 168º da CRP com referência ao artigo 67º nºs. 1 e 2 alínea a).
Mas sem razão.
Disse-se a propósito no Acórdão nº. 508/99 (inédito) sobre a equiparação do direito social estabelecido naquelas normas aos 'direitos, liberdades e garantias' previstas no artigo 17º da CRP que está ínsita em tal alegação:
'Essa equiparação não pode, todavia, ser feita; como este Tribunal já teve ocasião de pronunciar a respeito de um direito, no que aqui releva semelhante
(Acórdão nº. 131/92, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 21º, pág. 505 e segs.), 'o 'direito à habitação', ou seja, o direito a ter uma morada condigna, como direito fundamental de natureza social, situado no Capítulo II
(direitos e deveres sociais) do Título III (direitos e deveres económicos, sociais e culturais) da Constituição, é um direito a prestações. Ele implica determinadas acções ou prestações do Estado, as quais (...) são indicadas nos nºs. 2 a 4 do artigo 65º da Constituição (cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, p. 680-682). Está-se perante um direito cujo conteúdo não pode ser determinado ao nível das opções constitucionais, antes pressupõe uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, e cuja efectividade está dependente da chamada 'reserva do possível' (Vorbehalt des Möglichen), em termos políticos, económicos e sociais
[cfr. J.J. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, Coimbra Editora, 1982, p. 365, e Tomemos a Sério os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, Separata do Número Especial do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – 'Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia' – 1984, Coimbra, 1989, p. 26; J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976
(Reimpressão), Coimbra, Almedina, 1987, p. 199 ss., 343 ss.] O direito à habitação, como direito social que é, quer seja entendido como um direito a uma prestação não vinculada, recondutível a uma mera pretensão jurídica (cfr. J.C. Vieira de Andrade, ob. cit. p. 205, 209) ou, antes, como um autêntico direito subjectivo inerente ao espaço existencial do cidadão (cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p. 680), não confere a este um direito imediato a uma prestação efectiva, já que não é directamente aplicável , nem exequível por si mesmo. O direito à habitação tem, assim, o Estado – e, igualmente, as regiões autónomas e os municípios – com único sujeito passivo – e nunca, ao menos em princípio, os proprietários de habitações ou os senhorios. Além disso, ele só surge depois de uma interpositio do legislador, destinada a concretizar o seu conteúdo, o que significa que o cidadão só poderá exigir o seu cumprimento, nas condições e nos termos definidos pela lei (...). Ora, é perfeitamente legítimo, sob o ponto de vista constitucional, que, na hipótese de colisão entre aqueles dois direitos à habitação – um (o do senhorio) alicerçado no direito fundamental de propriedade privada, com assento na Constituição, e outro (o do arrendatário) baseado no contrato -, o legislador dê primazia ao do senhorio.'
Estas mesmas considerações, retomadas, para o direito à habitação, pelo Acórdão nº. 151/92, publicado igualmente em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol.
21º, pág. 647 e segs., são, sem necessidade de maiores desenvolvimentos, transponíveis para o direito tutelado pelo nº. 1 e pelo nº. 2, a) do artigo 67º da Constituição. Cabe ao legislador harmonizar, por um lado, o direito à independência económica das famílias e, por outro, o interesse dos credores na cobrança efectiva dos seus créditos.
Porque se sufraga e mantém esta tese, não será, por tal via, que pode defender-se a inconstitucionalidade orgânica do artigo 27º do DL nº. 329-A/95.
4.2. - E, também, tal como se decidiu ainda no Acórdão nº. 508/89, pela impossibilidade de se equiparar o mesmo direito aos 'direitos, liberdades e garantias' e sem necessidade de outras considerações a norma do artigo 27º não viola o disposto no artigo 18º nº. 2 e 3 da CRP.
4.3. - Fundada no que considera serem os efeitos retroactivos da aplicação imediata da nova redacção do artigo 1696º nº. 1 do Código Civil, sustenta a recorrente a violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade.
Sobre a alegada violação do princípio da igualdade escreveu-se no Acórdão nº.
559/98 em termos que aqui se acolhem inteiramente:
'A norma sub iudicio não viola o princípio da igualdade: desde logo, porque, ao aplicar-se a todas as execuções pendentes que se encontrem na mesma fase processual, dá tratamento igual ao que é essencialmente igual.
É certo que, nessas execuções, o cônjuge do executado é desfavorecido relativamente àqueles que viram idênticas execuções, eventualmente instauradas na mesma altura, mas que findaram antes, ser suspensas, por terem beneficiado da moratória que se achava consagrada no artigo 1696º, nº. 1, do Código Civil. Isso, porém, resulta do facto de, neste último caso, a execução se ter processado, toda ela, no domínio de um regime jurídico que, entretanto, foi substituído por um outro que desfavorece o cônjuge do executado. Por isso, o princípio da igualdade seria violado, se ele houvesse de operar diacronicamente. Este Tribunal tem, no entanto, dito que o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, não opera diacronicamente, mas tão-só sincronicamente, uma vez que – sublinhou-o no acórdão nº. 352/91 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 19º, páginas 519 e seguintes) – 'o legislador não está, em regra, obrigado a manter as soluções jurídicas que alguma vez adoptou. Notas típicas da função legislativa são, justamente, entre outras, a liberdade constitutiva e a auto-revisibilidade. Por isso, salvo nos casos em que o legislador tenha que deixar intocados direitos entretanto adquiridos, não está ele obrigado a manter as soluções consagradas na lei a cuja revisão procede'. Quando se revê uma lei, em regra, é porque se pretende alterar o regime jurídico até então vigente.'
4.4. – Alega a recorrente que a aplicação da nova redacção dada pelo artigo
1696º nº. 1 do Código Civil na fase em que o processo se encontrava, deixando
'totalmente desprotegido e prejudicado o direito de posse e propriedade do recorrente sobre o seu imóvel penhorado' viola os princípios da segurança jurídica e da confiança do cidadão na estabilidade dos direitos adquiridos.
Ora, admitindo, na tese mais favorável à recorrente, que a norma em causa é retroactiva, vejamos se ela viola aqueles princípios.
Sigamos, também aqui, o que se escreveu no Acórdão nº. 559/98.
'(...) Tratando-se de um domínio em que a retroactividade da lei não está constitucionalmente vedada (ela é apenas proibida no domínio penal, e, ainda assim se a retroactividade não for in melius; no domínio fiscal e nas leis restritivas de direitos, liberdades e garantias), quer a lei seja retroactiva, quer seja retrospectiva, ela só é inconstitucional, se violar princípios constitucionais autónomos. E isso é o que sucede, quando a lei afecta, de forma
'inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa' direitos ou expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos. Num tal caso, com efeito, a lei viola aquele mínimo de certeza e de segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito. A este impõe-se, na verdade, que organize a 'protecção da confiança na previsibilidade do direito, como forma de orientação de vida' (cf. o acórdão nº. 330/90, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 17º, páginas 277 e seguintes). Por conseguinte, apenas uma retroactividade intolerável, que afecte, de forma inadmissível e arbitrária, os direitos ou as expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos, viola o princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da Constituição da República (cf., entre outros, os acórdãos nºs. 11/83 e 287/90, publicados nos Acórdãos citados, volumes 1º, páginas 11 e seguintes, e 17º, páginas 159 e seguintes; e o acórdão nº. 486/96, publicado no Diário da República, II série, de 17 de Outubro de
1997).'
A pergunta que agora se justifica é, tal como a que formula o Acórdão nº. 559/98 no trecho seguinte ao que se transcreveu, a de saber se a norma do artigo 27º afectou de forma intolerável, inadmissível ou particularmente onerosa o direito da recorrente.
Para responder à questão importa definir qual era este direito no domínio da lei anterior, definição que se traduz em saber de que meios dispunha o cônjuge do executado para defender a posse de bens comuns nomeados à penhora e efectivamente penhorados nos termos do artigo 825º nº. 2 do CPC.
Não havendo lugar à moratória forçada, podia o credor exequente nomear à penhora bens comuns desde que pedida a citação do cônjuge do executado para requerer a separação de bens; o cônjuge deveria então requerer a separação ou juntar certidão comprovativa da pendência de outro processo em que a separação já tivesse sido requerida; se o fizesse, a execução ficava suspensa até à partilha e, não cabendo ao executado os bens penhorados, poderiam ser nomeados outros que lhe tivessem cabido.
Era este o regime previsto no artigo 825º nºs. 2, 3, 4 do CPC, para os casos – repete-se – em que, de acordo com a lei substantiva, não havia lugar à moratória.
Esta ocorria nos termos do artigo 1696º nº. 1 do Código Civil no caso de dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges (cfr. artigo 1692º do mesmo Código) em que, respondendo, subsidiariamente, os bens comuns, o cumprimento só era exigível depois de dissolvido, declarado nulo ou anulado o casamento, ou depois de decretada a separação judicial de pessoas e bens ou a simples separação judicial de bens.
Isto significa que o cônjuge do executado que entendesse (a) não ser da sua responsabilidade a dívida que dera causa à execução em que tivessem sido penhorados bens comuns e (b) haver lugar à moratória (designadamente por a dívida não ser substancialmente comercial) podia (devia) deduzir, ainda que citado nos termos do artigo 825º nº. 2 do CPC, embargos de terceiro.
Controvertendo-se na doutrina e na jurisprudência o meio próprio para se discutir e provar a natureza comercial das dívidas (e logo da sua comunicabilidade), era jurisprudência corrente do STJ admitir-se os embargos de terceiro pelo cônjuge do executado mesmo que tivesse sido requerida a sua citação nos termos do artigo 825º nº. 2 do CPC (cfr. Acs. do STJ de 29/11/89,
9/4/92 e 27/1/93 in Procs. Nºs. 77605, 81439 e 82719, respectivamente, in Bases de dados informáticos do STJ).
Se é certo que, utilizando os embargos de terceiro, o cônjuge do executado corria o risco de, em caso de improcedência e não sendo caso de moratória, fica impedido de requerer a separação de bens (cfr. Lopes Cardoso 'Manual da Acção Executiva', 3ª edição, p. 358), não pode recusar-se que o embargante tinha o direito, ou a legítima expectativa, de ver declarada, v.g. a não comercialidade da dívida contraída pelo executado e, logo, a falta do pressuposto do direito de penhorar bens comuns nos termos do artigo 825º nº. 2 do Cód. Civil (não ser caso de moratória).
Se assim acontecesse, a penhora haveria de ser levantada podendo, no entanto, o exequente requerer a nomeação à penhora do direito à meação do executado nos termos do artigo 825º nº. 1 então com sujeição à moratória prevista no artigo
1696º nº. 1 do CC.
Ora, com a aplicação da lei nova com supostos efeitos retroactivos e nos termos em que ocorreu (com a penhora efectuada no domínio da lei anterior), impossibilitada a recorrente de defender a posse do bem comum (no limite com sujeição à moratória e relativa ao direito à meação do executado cuja penhora viesse, posteriormente, a ser requerida pelo exequente), os direitos da recorrente seriam intoleravelmente afectados e, assim, ofendido o princípio da confiança ínsito na ideia de Estado de Direito consagrado no artigo 2º da CRP, se não houvesse já qualquer meio de defesa daqueles bens, ainda que - com a eliminação da moratória – necessariamente menos forte.
É, aliás, essa ausência de meios de defesa – no caso a perda de oportunidade para requerer a separação de bens nos termos do artigo 825º nº. 2 (nova redacção) do CPC – que ditou o julgamento de inconstitucionalidade por ofensa daquele princípio, no citado Acórdão nº. 559/98.
A lógica de argumentação é idêntica no Acórdão nº. 508/99; só que o julgamento de não inconstitucionalidade foi determinado pelo reconhecimento de que, no caso, não houvera ainda lugar à citação do cônjuge do executado nos termos do artigo 825º nº. 2 do CPC, estando ainda em tempo, como meio de defesa dos bens, o requerimento de separação de bens.
Ora, no caso em apreço, e sem embargo de se reconhecer que a citação da recorrente há muito se efectuou, o Tribunal entende que da sentença de 1ª instância, confirmada pelos Acórdãos da Relação e do STJ, resulta que o artigo
27º do DL nº. 329-A/95 foi aplicado numa dimensão que pressupõe – aliás expressamente – uma (nova) citação do cônjuge do executado, estando este, então, ainda em tempo para se defender da penhora.
Escreveu-se na referida sentença:
'De qualquer forma quando for citado o cônjuge do executado, ora embargante, no momento e com as garantias a que se refere o artigo 864º do CPC, poderá ele, no prazo de 15 (quinze) dias, requerer a separação de bens ou juntar aos autos certidão comprovativa da pendência de processo de separação de bens já instaurado, sob pena de a execução prosseguir no bem penhorado' (sublinhado nosso)
Está assim, neste específico contexto, inequivocamente salvaguardado o direito da recorrente em termos tais que a suposta retroactividade que teria implicado a aplicação imediata do artigo 27º do DL nº. 329-A/95 não afecta, de forma inadmissível e arbitrária, os direitos ou expectativas legitimamente fundadas da mesma recorrente.
Não foram assim violados os princípios da confiança e da segurança jurídica.
4.5. – Disse-se já que, no caso presente, não pode estar em causa a constitucionalidade do artigo 4º do DL nº. 329-A/95 que, dando nova redacção ao artigo 1696º nº. 1 do Código Civil, eliminou a moratória forçada.
Ora, a alegação do recorrente sobre a violação dos princípios constitucionais da
'protecção que o Estado deve à Família e da afectação dos bens comuns à satisfação das necessidades do próprio casal', ou decorre da eliminação da moratória e, pelas razões apontadas, dela se não pode conhecer, ou, aceitando a eliminação da moratória, tem como pressuposto a impossibilidade de a recorrente defender a sua posse por já não poder requerer a separação de bens.
Na verdade, se subsiste este meio de defesa, possibilitando à requerente que, na partilha, lhe seja adjudicado o bem comum, é manifesto que a violação daqueles mesmos princípios se não verifica.
No caso, os termos em que foi aplicado o artigo 27º do DL nº. 329-A/95 e como se disse em 4.4. – pressupondo precisamente a subsistência daquele meio – retiram, pois, qualquer apoio à mesma alegação de inconstitucionalidade.
Não se mostram, assim, violados aqueles princípios.
5 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa, 12 de Janeiro de 2000 Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida