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Proc. nº 396/99
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. O Ministério Público deduziu acusação contra R. C., imputando-lhe a prática, enquanto Ministro da Educação, de um crime de peculato, previsto e punível pelo artigo 20º, nº 1, da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, e de um crime de violação de normas de execução orçamental, previsto e punível pelo artigo 14º da citada Lei.
O arguido R. C. requereu a abertura de instrução.
Nas conclusões apresentadas pelo advogado do arguido no debate instrutório, pode ler-se, sob o nº 22 (fls. 38 dos presentes autos):
'Uma interpretação do artigo 20º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, que considerasse como nele incluídos os actos administrativos atribuídos ao arguido, ou seja, os despachos que atribuíram a funcionários dependentes do Ministério da Educação compensações monetárias pelo exercício efectivo de funções superiores
às dos cargos por que eram remunerados – despachos que se limitaram a aderir a propostas dos serviços competentes – tornaria aquele preceito manifestamente inconstitucional, por violação do princípio da tipicidade, decorrente do princípio da legalidade, exigências do Estado de Direito e, designadamente, por violação dos artigos 2º, 3º, nº 2, 9º, b) e ainda por violação do disposto nos artigos 185º, 194º, nº 2 e 202º, c), d) e e), todos da CRP'.
Na decisão instrutória, de 15 de Janeiro de 1999 (fls. 45 a 87 destes autos), o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa declarou extinto, por prescrição, o procedimento criminal quanto ao crime de violação de normas de execução orçamental, previsto e punível pelo artigo 14º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, e pronunciou o arguido pela prática, como autor material, de um crime de peculato, na forma continuada, previsto e punível pelo artigo 20º, nº 1, da referida Lei nº 34/87, e pelos artigos 30º, nº 2, e 78º, nº 5, do Código Penal de 1982 (a que correspondem actualmente os artigos 30º, nº 2, e 79º, nº 5, do Código Penal revisto).
2. R. C. arguiu a nulidade da decisão instrutória (requerimento de 27 de Janeiro de 1999, fls. 89 a 147), fundamentando-se na disposição do artigo 379º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal, 'aplicável à decisão instrutória ex vi artº 4º CPP – sendo este preceito rigorosamente idêntico ao homólogo preceito da alínea d) do artº 668º, nº 1 CPC'.
O arguido invocou que o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa – como anteriormente o Ministério Público – não teve presente, quando lhe competia apreciar, 'o regime legal decorrente do [...] artº 36º, nº 1 do Decreto-Lei nº
22257, de 25 de Fevereiro de 1933', 'questão expressa e enfaticamente suscitada no decurso da instrução' (fls. 97). De tal disposição legal resultaria, no entender do arguido, que, 'face à própria descrição que o tribunal de instrução faz dos factos, jamais o ex- Ministro da Educação, R. C., poderia ter sido pronunciado, como nem deveria ter sido sequer objecto de acusação pelo Ministério Público'.
Invocou igualmente que a decisão instrutória omitiu a apreciação da especial situação de transição da administração pública desportiva, cujo quadro considera definido por diversos diplomas, de entre os quais enumera: o Decreto-Lei nº 3/87, de 3 de Janeiro (Lei orgânica do Ministério da Educação), a Lei nº 1/90, de 13 de Janeiro (Lei de bases do sistema educativo), o Decreto-Lei nº 215/97, de 18 de Agosto (Regime de instalação da Administração Pública).
Sustentou ainda o arguido que o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa conheceu de questões de que não podia ter tomado conhecimento, maxime declarando a ilegalidade de actos administrativos (cinco despachos proferidos pelo ex-Ministro da Educação, R. C.), para, a partir da ilicitude administrativa, concluir pela ilicitude criminal.
Em dado passo do seu requerimento, afirmou (fls. 145 e 146):
'Ao ajuizar – mal – como ajuizou, a Merª. Juíza do tribunal de instrução do fez
[...] bem mais do que uma simples interpretação errada do citado Regulamento
[...] invadiu a esfera privativa própria da Administração Pública e do Governo, violando o princípio constitucional da separação de poderes. Não pode o tribunal fazer um entendimento que tornaria inconstitucionais, quanto ao alegado «crime» [...] o artº. 20º, nº 1, da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, e do artº. 1º, nº 1, alínea a), do CPP. Ou um entendimento que tornaria inconstitucionais, quanto à instrução criminal, aos «indícios» e à decisão instrutória', os artº. 9º, nº 1, artº. 308º, nº 1, e artº. 283º, nº 2 (este ex vi artº. 308º, nº 2), todos do CPP.'.
Na perspectiva do documento então apresentado,
'[...] relevar como pressupostos preconceitos (errados e infundados) da Merª. Juíza de instrução, entrando mesmo pela invasão da esfera própria alheia no quadro da separação de poderes, que é o regime constitucional e princípio fundamental do Estado de Direito democrático, acarretaria a inconstitucionalidade de todos aqueles preceitos por violação directa no disposto nos artº. 2º, art. 9º, alínea b), artº. 108º, artº. 110º, artº. 111º, nº 1, artº. 182º, artº. 199º, alínea d) e artº. 201º, nº 2, alínea a) da CRP.'
3. A Juíza do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, por despacho de
10 de Fevereiro de 1999 (fls. 151 e seguinte), indeferiu as invocadas nulidades,
'por falta de fundamento'.
4. R. C. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional (requerimento de 4 de Março de 1999, fls. 157 e seguinte), ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, para apreciação da inconstitucionalidade da norma do artigo 20º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, na interpretação que lhe foi dada na decisão de pronúncia, e que explicitou do seguinte modo:
'[...] a decisão de pronúncia, ora recorrida, dá ao artigo 20º da Lei nº 34/87 uma interpretação segundo a qual quaisquer actos administrativos de membros do Governo que envolvam disposição de valores do Estado, desde que considerados ilegais, e mesmo que tais actos se limitem a aderir a propostas dos serviços competentes, representam apropriação ilícita para os efeitos do citado preceito. Com tal interpretação, o citado preceito viola os princípios da tipicidade e da proporcionalidade, decorrentes do princípio da legalidade, exigências do Estado de Direito, e ofende, designadamente, os artigos 2º, 3º, nº 2, 9º, b) e ainda os artigos 182º (anterior 185º), 191º, nº 2 (anterior 194º, nº 2) e 199º, alíneas c), d) e e) (anterior 202º, c), d) e e), todos da C.R.P.'
O recurso não foi admitido (despacho de 12 de Abril de 1999, fls.
163, 164), com o seguinte fundamento:
'Foi proferido, em 15 de Janeiro de 1999, despacho de pronúncia contra o arguido R. C., conforme fls. 11.018 a 11.060, despacho esse que foi nesse mesmo dia notificado ao arguido e seu mandatário constituído, conforme fls. 11.061. Nesta conformidade, e atendendo ao teor do art. 75º, nº 1 da Lei nº 28/82 de 15 de Novembro, com as alterações introduzidas pela Lei nº 143/85 de 26 de Novembro, pela Lei nº 85/89 de 7 de Setembro, pela Lei nº 88/95 de 1 de Setembro, e pela Lei nº 13-A/98 de 26 de Fevereiro, o prazo de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional é de 10 dias, não se verificando a situação prevista no nº 2 do citado artigo, visto que, até à data, não foi interposto qualquer recurso do referido despacho de pronúncia. Ora, o recurso do despacho de pronúncia para o Tribunal Constitucional apenas foi interposto em 4 de Março de 1999, conforme fls. 11.135 e 11.136, ou seja manifestamente fora de prazo. Nesta conformidade, e ao abrigo do art. 76º, nº 2, da Lei nº 28/82 de 15 de Novembro, na citada redacção, por intempestividade, indefere-se o presente Recurso para o Tribunal Constitucional.'
5. R. C. reclamou do despacho que não admitiu o recurso, nos termos do artigo 76º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional (requerimento de 26 de Abril de 1999, fls. 1 e seguintes dos presentes autos).
O reclamante fundamentou a sua reclamação nas disposições dos nºs 2 e 3 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, defendendo que a lei pretende que previamente ao recurso para o Tribunal Constitucional sejam esgotados quaisquer recursos ou reclamações admissíveis contra a decisão que tenha aplicado norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Invocou ainda o regime constante dos artigos 677º e 686º do Código de Processo Civil, segundo o qual só depois de decidida a questão da nulidade suscitada cabe interpor recurso da decisão nos casos em que a nulidade não pode suscitar-se no recurso, como sucede no presente caso.
A Juíza do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa sustentou assim o seu despacho de não admissão do recurso (fls. 167):
'De acordo com o despacho de fls. 162 e 163 dos autos [trata-se do despacho constante de fls. 163 e 164] e do qual foi apresentada a presente reclamação, cumpre-nos esclarecer que se nos afigura não ser de aplicar ao requerimento apresentado pelo arguido a invocar eventuais nulidades e posterior despacho que indeferiu tais nulidades, o disposto no nº 2 do art. 75º da Lei nº 28/82 de 15 de Novembro, com as alterações introduzidas pela Lei nº 143/85 de 26 de Novembro, pela Lei nº 85/89 de 7 de Setembro, pela Lei nº 88/95 de 1 de Setembro e pela Lei nº 13-A/98 de 26 de Fevereiro, uma vez que o despacho de pronúncia, quando pronuncia pelos mesmos factos que constam da acusação, como era o caso, é insusceptível de recurso e, dessa maneira, deveria ter sido logo objecto de recurso para o Tribunal Constitucional (Art. 310º, nº 1 do Cód. Proc. Penal e art. 70º, nº 2 da citada Lei nº 28/82 de 15 de Novembro, devidamente actualizada). Além disso, na eventualidade de não se conformar com o despacho que indeferiu essas invocadas nulidades, caberia sempre ao arguido interpor recurso, só que desse despacho que indeferiu essas nulidades e nunca do despacho de pronúncia. Aliás, a invocação de uma inconstitucionalidade é matéria distinta da invocação de eventuais nulidades, razão pela qual os tribunais que as decidem são diversos.'
6. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer, pronunciando-se no sentido do indeferimento da presente reclamação.
Embora reconhecendo que a interposição do recurso foi tempestiva, o Senhor Procurador-Geral Adjunto entende que a decisão recorrida não aplicou a norma impugnada, com o sentido inconstitucional indicado pelo ora reclamante, faltando portanto um dos pressupostos processuais típicos do recurso que se pretende interpor.
7. Nos termos do artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, foi notificado ao reclamante o parecer em que a relatora propunha que o Tribunal Constitucional indeferisse a reclamação, pelas seguintes razões:
'O fundamento invocado para a rejeição do recurso para o Tribunal Constitucional foi a intempestividade na interposição do recurso. O tribunal a quo entendeu que o prazo de dez dias para interposição do recurso de constitucionalidade deveria contar-se a partir da data em que foi notificada ao arguido a decisão instrutória e não a partir da data em que lhe foi notificada a decisão que indeferiu a reclamação por nulidades da mesma decisão instrutória. Considerou o tribunal não ser de aplicar ao caso o artigo 75º, nº
2, da Lei do Tribunal Constitucional, dado que o despacho de pronúncia, quando pronuncia pelos mesmos factos que constam da acusação, como no caso dos autos, é insusceptível de recurso ordinário, razão por que deveria ter sido logo objecto de recurso para o Tribunal Constitucional. Tal como sublinha o Ministério Público no seu parecer, a disciplina estabelecida pelo Código de Processo Civil em matéria de recursos, designadamente a regra constante do artigo 686º que regula a interposição de recursos no caso de ser requerida a «rectificação, aclaração ou reforma» da decisão recorrida – disciplina essa aplicável subsidiariamente ao processo constitucional –, tem de ser adaptada à especificidade dos recursos de constitucionalidade e ao carácter circunscrito dos poderes de cognição do Tribunal Constitucional, limitados à apreciação da questão de inconstitucionalidade normativa suscitada. Esse regime porém não contempla directamente os casos de arguição de nulidade, pois, no sistema do Código de Processo Civil, as nulidades só podem ser invocadas no tribunal a quo se a decisão recorrida não admitir recurso ordinário; no caso de a decisão recorrida admitir recurso ordinário, o recurso pode ter como fundamento qualquer dessas nulidades (artigo 668º, nº 3). Tendo em conta a natureza do recurso de constitucionalidade e o carácter circunscrito dos poderes de cognição do Tribunal Constitucional, não pode o recurso perante este Tribunal ter como fundamento as nulidades da decisão recorrida, nos termos da segunda parte do nº 3 do artigo 668º do Código de Processo Civil. Importa assim adaptar a norma do artigo 686º do Código de Processo Civil – sobre a interposição do recurso quando haja rectificação, aclaração ou reforma da sentença – às características próprias do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, interpretando-a no sentido de abranger igualmente na sua previsão a arguição de nulidade da decisão de que se pretende interpor recurso de constitucionalidade. Tal interpretação por analogia tem como consequência que a arguição de nulidades de uma decisão opera também a prorrogação do prazo de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional. No caso dos autos, independentemente da questão de saber se o incidente suscitado pelo arguido perante o tribunal a quo configura uma autêntica arguição de nulidades do despacho de pronúncia, certo é que o Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa apreciou tal arguição, indeferindo as invocadas nulidades
«por falta de fundamento». Nestas circunstâncias, aplicando ao caso, por analogia, o regime fixado no artigo 686º do Código de Processo Civil, o prazo para interposição do recurso de constitucionalidade apenas se inicia com a notificação do despacho que indeferiu as nulidades suscitadas, por falta de fundamento. Assim sendo, conclui-se ter sido tempestiva a interposição do recurso para o Tribunal Constitucional pelo ora reclamante. Não procede portanto a razão invocada pelo Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa para a rejeição do recurso de constitucionalidade interposto por R. C.. Todavia, há que averiguar se estão verificados os pressupostos processuais do recurso interposto, já que, ao decidir a reclamação, a decisão do Tribunal Constitucional faz caso julgado quanto à admissibilidade do recurso, nos termos do artigo 77º, nº 4, da Lei nº 28/82. Sendo o presente recurso fundado na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, constituem seus pressupostos:
– que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma (ou de uma determinada interpretação da norma) que pretende ver apreciada por este Tribunal;
– que essa norma (ou a norma com essa interpretação) tenha sido aplicada, como ratio decidendi, na decisão recorrida, não obstante a acusação de inconstitucionalidade. Tal como delimitado pelo ora reclamante no requerimento de interposição do recurso, o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade teria como objecto a norma do artigo 20º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, na interpretação
«segundo a qual quaisquer actos administrativos de membros do Governo que envolvam disposição de valores do Estado, desde que considerados ilegais, e mesmo que tais actos se limitem a aderir a propostas dos serviços competentes, representam apropriação ilícita para os efeitos do dito preceito». Essa interpretação violaria os princípios da tipicidade e da proporcionalidade e ainda os artigos 182º, 191º, nº 2, e 199º, alíneas c), d) e e) da Constituição. Ora, importa começar por reconhecer que só no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional surge equacionada deste modo a questão de inconstitucionalidade. Com efeito, perante as peças processuais que compõem os presentes autos de reclamação, verifica-se que «durante o processo» o reclamante não suscitou propriamente a inconstitucionalidade de uma norma com uma determinada interpretação, antes imputou o vício de inconstitucionalidade à decisão judicial. Expressou-se assim o ora reclamante nas conclusões apresentadas no debate instrutório (fls. 38 destes autos, sob o nº 22):
«Uma interpretação do artigo 20º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, que considerasse como nele incluídos os actos administrativos atribuídos ao arguido, ou seja, os despachos que atribuíram a funcionários dependentes do Ministério da Educação compensações monetárias pelo exercício efectivo de funções superiores
às dos cargos por que eram remunerados [...] tornaria aquele preceito manifestamente inconstitucional, por violação do princípio da tipicidade, decorrente do princípio da legalidade, exigências do Estado de Direito [...].» Mais tarde, no requerimento através do qual arguiu a nulidade da decisão instrutória, afirmou (fls. 145 e 146):
«Ao ajuizar – mal – como ajuizou, a Merª. Juíza do tribunal de instrução do fez
[...] bem mais do que uma simples interpretação errada do citado Regulamento
[...] invadiu a esfera privativa própria da Administração Pública e do Governo, violando o princípio constitucional da separação de poderes [...]
[...] relevar como pressupostos preconceitos (errados e infundados) da Merª. Juíza de instrução, entrando mesmo pela invasão da esfera própria alheia no quadro da separação de poderes, que é o regime constitucional e princípio fundamental do Estado de Direito democrático, acarretaria a inconstitucionalidade de todos aqueles preceitos [...].» Tal significa, nas circunstâncias do caso, que o ora reclamante impugna a aplicação ao caso da norma do artigo 20º, nº 1, da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, que define os elementos do tipo do crime de peculato e estabelece a respectiva punição. O que o ora reclamante verdadeiramente questiona é o processo interpretativo que permitiu ao tribunal recorrido abranger no conceito de apropriação ilícita os actos que são atribuídos ao arguido. Tal processo interpretativo efectuado pelo tribunal a quo, por não ter respeitado – segundo a concepção do reclamante – os limites da interpretação da lei penal decorrentes do princípio da legalidade, implicaria a inconstitucionalidade da própria norma penal incriminatória, quando objecto de tal interpretação, por ofensa do referido princípio constitucional. Considerando ter havido um erro de julgamento, o ora reclamante invocou afinal a inconstitucionalidade da decisão judicial que considerou subsumível a conduta do arguido ao tipo de crime previsto e punido por determinada norma jurídica, e não a inconstitucionalidade da norma jurídica em que tal decisão se fundamentou. Por outras palavras, o que vem impugnado pelo ora reclamante não é a norma, em si mesma considerada, mas antes a decisão judicial que a aplicou, por via de um processo interpretativo que ele considera constitucionalmente proibido. Ora, o Tribunal Constitucional tem entendido, embora nem sempre por unanimidade, que, nas hipóteses como a dos autos, em que se questionam certas interpretações normativas por ofensa do princípio da tipicidade ou da legalidade penal, não estão em causa verdadeiras questões de inconstitucionalidade normativa mas antes questões de inconstitucionalidade da própria decisão recorrida ou do acto de julgamento (neste sentido, cfr.: acórdão nº 353/86, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8º vol., p. 571 ss; acórdão nº 634/94, Acórdãos ..., 29º vol., p. 243 ss; acórdão nº 221/95, Diário da República, II Série, de 27 de Junho de
1995, p. 7088 ss; acórdão nº 756/95, Acórdãos ..., 32º vol., p. 775 ss; acórdão nº 682/95, inédito; acórdão nº 154/98, inédito; e, mais recentemente, acórdão nº
674/99, inédito, onde pode encontrar-se uma análise da jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre esta matéria).
É que tal questão – por não respeitar a uma inconstitucionalidade normativa, mas antes a uma inconstitucionalidade da própria decisão judicial – excede os poderes de cognição do Tribunal Constitucional, tendo em conta que o nosso sistema não admite o denominado recurso de amparo, maxime na modalidade de amparo em relação a decisões jurisdicionais directamente violadoras da Constituição. De todo o modo, mesmo que se entendesse que este Tribunal ainda seria competente para conhecer das questões de inconstitucionalidade resultantes da circunstância de ter sido utilizado um processo de interpretação constitucionalmente proibido
(por via da integração analógica ou de uma operação equivalente), sempre se deverá considerar excluída da competência do Tribunal Constitucional a apreciação de interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade. Como o Tribunal Constitucional tem afirmado repetidamente, o controlo de constitucionalidade atribuído a este Tribunal só pode ter por objecto normas jurídicas e não também actos jurídicos de outra natureza, como as decisões judiciais. Disse este Tribunal, por exemplo, no citado acórdão nº 353/86:
«Ao sistema de fiscalização da constitucionalidade instituído pela nossa lei fundamental estão, assim, apenas sujeitos os actos do poder normativo (lato sensu), ou seja, aqueles que contêm uma «regra de conduta» ou um «critério de decisão» para os particulares, para a Administração e para os tribunais. Escapam a esse controle de constitucionalidade, por isso, as decisões judiciais, os actos da Administração sem carácter normativo (actos administrativos propriamente ditos) e os «actos de governo» em sentido estrito ou «actos políticos». Em boa verdade, aí já não se estará perante «actos normativos», sim em presença de actos de aplicação, execução ou simples utilização de normas – seja de normas infraconstitucionais, seja mesmo de normas constitucionais [...]. Assim, pois, sendo a competência deste Tribunal restrita ao julgamento de questões de inconstitucionalidade de normas jurídicas (cf. art. 280º, nº 6, da Constituição), não pode ele censurar uma decisão judicial que, por eventual erro de julgamento, haja violado directamente uma norma ou princípio constitucional.'
No caso dos autos, em que nem sequer vem invocado qualquer processo de integração analógica ou operação equivalente, mas uma mera interpretação considerada «errada» pelo ora reclamante, tem necessariamente de se concluir pela inexistência de uma questão de inconstitucionalidade normativa de que o Tribunal deva conhecer. Só no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, o ora reclamante se reportou à inconstitucionalidade de uma norma, numa determinada dimensão interpretativa, que pretendia submeter ao julgamento deste Tribunal. Mas esse não é já o momento adequado para considerar suscitada «durante o processo» uma questão de inconstitucionalidade normativa, como resulta da jurisprudência constante do Tribunal Constitucional (neste sentido, veja-se, por
último, o acórdão nº 405/99, proferido no processo nº 11/99, ainda inédito). Na verdade, subjacente à exigência legal de que a inconstitucionalidade seja suscitada «durante o processo» está a ideia de que, antes de o Tribunal Constitucional se pronunciar em recurso (isto é, para reexame) de uma questão de constitucionalidade, é necessário que essa questão tenha sido apresentada ao tribunal a quo para este sobre ela previamente formular um juízo que o Tribunal Constitucional possa sindicar. A invocação da questão de constitucionalidade tem por isso de ser feita de modo claro, em termos de o tribunal ficar a saber que tem essa questão para decidir. No caso dos autos, não tendo sido suscitada pelo ora reclamante, de modo processualmente adequado, uma questão de inconstitucionalidade normativa, conclui-se que não se encontram verificados os pressupostos processuais de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Assim, embora por fundamento diferente do despacho reclamado, entende-se que a presente reclamação deve ser indeferida.
8. Respondeu o reclamante, através de requerimento em que, sustentando fundamentalmente que o recurso deve ser recebido, formulou as seguintes conclusões:
'1º– No momento do debate instrutório, o recorrente arguiu a inconstitucionalidade da norma em abstracto, «numa determinada dimensão interpretativa», pois não existia ainda qualquer decisão judicial que a adoptasse – nesse momento, apenas a acusação o reflectia.
2º– No momento do recurso, o recorrente já se reporta à inconstitucionalidade da norma, «numa determinada dimensão interpretativa», traduzida concretamente numa decisão judicial, pois, no entretanto, o despacho de pronúncia adoptara a interpretação e aplicara a norma assim interpretada.
[...]
3º– As questões suscitadas no incidente – entretanto decorrido – de arguição de nulidade, nada têm que ver com a específica arguição da inconstitucionalidade do artº 20º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, «sob uma determinada dimensão interpretativa», que foram suscitadas logo no momento do debate instrutório e que são retomadas em recurso, pelo presente recurso tempestivo para o tribunal adequado. Os termos dos diferentes actos no processo são claros nesse sentido.
4º– Salvo o devido respeito, não está correcta a seguinte apreciação – que é de importância crucial para a decisão de admitir o recurso – feita no seguinte trecho do parecer da Emª. Relatora: «... perante as peças processuais que compõem os presentes autos de reclamação, verifica-se que «durante o processo» o reclamante não suscitou propriamente a inconstitucionalidade de uma norma com uma determinada interpretação, antes imputou o vício de inconstitucionalidade à decisão judicial». Já se viu que não foi assim, quanto à arguição efectuada logo no debate instrutório e ora retomada no recurso. Nem de outro modo poderia ter sido, de onde alguma confusão pudesse eventualmente resultar, pois, nesse momento, não havia sequer ainda qualquer decisão judicial.
5º– E, também salvo o devido respeito também, não corresponde aos factos do processo a outra seguinte apreciação correlativa – também de importância crucial para a decisão de admitir o recurso – que é feita no seguinte trecho do parecer da Exmª. Relatora: «... o que vem impugnado pelo ora reclamante não é a norma, em si mesma considerada, mas antes a decisão judicial que a aplicou, por via de um processo interpretativo que ele considera constitucionalmente proibido». Não. O que o recorrente ora impugna, clara e directamente, é a inconstitucionalidade de uma dada norma «sob uma determinada dimensão interpretativa» – o artº 20º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho – nos mesmos termos e fundamentos com que logo a suscitou, clara e directamente, aquando do debate instrutório.'
II
8. A resposta do reclamante não abalou a exposição-parecer da relatora.
O recurso de constitucionalidade fundado na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional só pode ter por objecto a apreciação da norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada pelos recorrentes durante o processo e que tenha sido aplicada na decisão recorrida.
Nos autos a que se refere a presente reclamação, o ora reclamante não suscitou, de modo processualmente adequado, a questão da inconstitucionalidade da norma que pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional.
Considerando ter havido um erro de julgamento, o que o ora reclamante impugnou foi a aplicação ao caso do artigo 20º, nº 1, da Lei nº
34/87, de 16 de Julho – a norma que define os elementos do tipo do crime de peculato e estabelece a respectiva punição. Ao referir-se, durante o processo, a uma eventual violação da Constituição, o ora reclamante invocou afinal a inconstitucionalidade da decisão judicial que considerou subsumível a conduta do arguido ao tipo de crime previsto e punido por aquela norma, e não a inconstitucionalidade da norma jurídica em que a decisão se fundamentou.
Como se afirmou na exposição-parecer da relatora 'no caso dos autos, em que nem sequer vem invocado qualquer processo de integração analógica ou operação equivalente, mas uma mera interpretação considerada «errada» pelo ora reclamante, tem necessariamente de se concluir pela inexistência de uma questão de inconstitucionalidade normativa de que o Tribunal deva conhecer'.
Sendo a competência do Tribunal Constitucional restrita ao julgamento de questões de inconstitucionalidade normativa, não pode este Tribunal censurar uma decisão judicial que, por eventual erro de julgamento, haja violado directamente uma norma ou princípio constitucional.
Verdadeira questão de constitucionalidade só a suscitou o reclamante no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional quando invocou a violação do princípio da proporcionalidade por parte da norma do artigo 20º, nº 1, da Lei nº 34/87, de 16 de Julho. Mas esse não é já o momento adequado para considerar suscitada durante o processo uma questão de inconstitucionalidade normativa.
Conclui-se assim não estarem verificados os pressupostos processuais do tipo de recurso interposto.
III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta. Lisboa, 10 de Fevereiro de 2000 Maria Helena Brito Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida (com a declaração de que o facto de ter relatado o Acórdão nº 285/99 não interfere essa posição tomada neste aresto, pois se trata de caso radicalmente diverso). Luís Nunes de Almeida