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Processo nº 311/00
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A..., com os sinais identificadores dos autos, veio junto do Tribunal Constitucional, 'nos termos do artigo 76º, nº 4 da Lei nº 82/92, de 15 do 11, com a redacção em vigor, deduzir a presente RECLAMAÇÃO', relativamente ao despacho do Relator do processo no Supremo Tribunal de Justiça (3ª Secção), de 1 de Março de 2000, que não admitiu o recurso de constitucionalidade por ele interposto, na base da seguinte consideração essencial: 'Parece-nos claramente demonstrado que o acórdão recorrido não fez aplicação das normas cuja inconstitucionalidade se visa com o presente recurso, acontecendo até que dessa não aplicação extraiu efeitos na diminuição da pena aplicada ao recorrente, pelo que se mostra, a nosso ver, manifestamente infundada a sua interposição'.
2. No requerimento de reclamação invocou o recorrente o seguinte, que, por comodidade se transcreve:
'1. Considera o douto despacho proferido que o acórdão recorrido não fez aplicação da norma legal cuja inconstitucionalidade material foi suscitada, concluindo, por esta forma, pela rejeição do recurso.
2. A norma em causa eram os artigos 88º parágrafo primeiro, parte final, do Código Penal de 1886 e 48º, nº 4 do Código Penal de 1982 na parte em que definiam o modo de contar o termo inicial do período de suspensão da pena.
3. Ora, o que foi decidido pelo acórdão em causa foi considerar que:
1. «a questão de saber se se aplica, no tocante à contagem do termo a quo do período de suspensão, o Código de 1886 ou o de 1982, está decidida no acórdão proferido na comarca de Santarém, que transitou em julgado, o qual aplicou o Código Penal de 1982».
2. mas, o Tribunal Judicial de Santarém pode ainda, sem sede de cúmulo jurídico, ser abstractamente chamado a relevar a questão da suspensão da pena ou da sua eventual extinção.
3. O STJ ao «não ter aplicado» a norma jurídica em causa «extraiu efeitos na diminuição da pena aplicada ao recorrente».
4. Nestes termos, o acórdão do STJ expressamente relevou e por isso aplicou – ainda que por uma forma transversa e inconstitucional – as normas jurídicas em causa (i) considerando que as mesmas haviam sido aplicadas pelo Tribunal Judicial de Santarém em termos que haveriam já ali passado em julgado mas que – em expressão contraditória – poderiam ser chamadas à colação em sede de cúmulo jurídico (ii) aplicação essa cujos termos o STJ não contrariou (iii) antes inclusivamente extraindo efeitos da sua suposta «não aplicação» - afinal aplicação – quanto à medida da pena em causa.
5. Ora tal entendimento está em contraste com aquele que é defendido pelo ora recorrente; isto é (i) que os preceitos legais em causa são aplicáveis directamente ao caso mas apenas numa sua interpretação e forma de aplicar, aquela que considerar já decorrido o período de suspensão da pena decretada pelo Tribunal Judicial de Santarém, com os concomitantes efeitos a nível da graduação da pena nestes autos (ii) e que a decisão a este propósito proferida pelo Tribunal Judicial de Santarém não faz caso julgado tanto que a questão pode ser represtinada em sede de cúmulo jurídico.
6. Tanto legitima a tese de recorrente de que, afinal, o STJ ponderou a questão da aplicabilidade ao caso das normas jurídicas cuja inconstitucionalidade foi suscitada em sede de recurso e que as aplicou, extraindo daí efeitos concretos, ainda que por uma interpretação das mesmas que – por mais benigna que seja – se não pode acompanhar'.
3. Remetido todo o processo a este Tribunal, sem que se tenha respeitado no Supremo Tribunal o quo o disposto no artigo 688º, nºs 3 e 4 do Código de Processo Civil, conjugado com o artigo 405º, do Código de Processo Penal, pronunciou-se o Ministério Público, no seu Parecer, que é 'improcedente a reclamação deduzida, já que não constituiu ‘ratio decidendi’ do acórdão proferido pelo STJ a aplicação das normas a que o recorrente reportou o objecto do recurso de fiscalização concreta que interpôs'. E argumentou deste modo:
'Considerou, na verdade, o Supremo que ‘a questão de saber se se aplica, no tocante à contagem do termo ‘a quo’ do período de suspensão, o Código de 1886 ou o de 1982, está decidida no acórdão proferido na comarca de Santarém, que transitou em julgado, o qual aplicou o Código Penal de 1982’ (fls 489): ou seja, entendeu o Supremo no Acórdão recorrido, que estava precludida a apreciação nos autos, do mérito da questão de aplicação no tempo do regime penal em causa por força das regras do caso julgado penal – sendo esta a ‘ratio decidendi’ adoptada em tal aresto. Deste modo, não tendo o acórdão impugnado feito efectiva aplicação das normas que integram o objecto do recurso de constitucionalidade interposto pelo reclamante, é evidente a falta de um essencial pressuposto, nenhuma censura merecendo a douta decisão que liminarmente o rejeitou'.
4. Vistos os autos, cumpre decidir: Do despacho reclamado colhe-se o seguinte: o por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de Fevereiro de 2000, e em parcial provimento do recurso então interposto pelo arguido e ora reclamante, foi ele 'condenado em 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, pelos crimes de falsificação de documento, pp. pelo artº 228º, nº 1, al. a), do C. Penal de 1982 e de abuso de confiança, qualificado, pp. pelo artº 300º, nºs 1 e 2 al. a), do mesmo diploma legal'. o Desse acórdão o arguido interpôs 'recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 82/92, de
15 de Novembro, pretendendo ver declarada a inconstitucionalidade dos artigos
88, § 1º, parte final, do C Penal de 1886 e 48º, nº 4, do CPenal de 1982, quando interpretados e aplicados, como o foram nos autos, em termos de possibilitarem que, a um crime a cuja punição se aplique o regime penal decretado pelo primeiro diploma, se aplique a regra de contagem do termo inicial do período de suspensão da execução da pena em termos que levem a situá-lo na data do trânsito em julgado da decisão que tiver decretado a suspensão, no que se viola o artigo
29º, nºs 1, 3 e 4, da CRP'. o Como 'resulta do disposto no citado artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 82/92, de 15 de Novembro, com as alterações introduzidas pelas Leis nºs
85/89, de 7 de Setembro e 13-A/98, de 26 de Fevereiro, para que o recurso seja admissível é necessário que o Tribunal aplique a norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada oportunamente. O que sucede e se pode constatar da leitura do acórdão deste Supremo Tribunal, ora recorrido, é que não foram aplicadas as normas cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada.' E a leitura do acórdão – depois de feita a definição da questão a resolver nestes termos: saber se 'se fez errada interpretação da lei ao valorar para efeito de fixação da medida da pena uma outra sanção que ficara suspensa, aplicando o CPenal de 1982 e não o de 1886, interpretação esta de carácter retroactivo, que seria inconstitucional porque mais desfavorável ao arguido' – é a seguinte:
'O que está em causa é saber como tratar a condenação proferida no Proc. n.º
1905/91 (do TJ de Santarém) - em 2 anos de prisão, suspensa por um ano -, nomeadamente se seria aplicável o regime do art°. 88°.§ 1°, do C.Penal de 1886 ou o do art°. 48°, nº 4 do C. Penal de 1982, para efeitos de determinação do regime mais favorável. Entende o recorrente que é aplicável o do CPenal de 1886, o que significaria que o período da suspensão se contava da data do acórdão - 5/12/1991 (por factos ocorridos em Fevereiro de 1980) .- em que aquela fora proferida, sem que tivesse de se aguardar o trânsito em julgado. O regime do Código de 1982 seria mais severo, na medida em que impunha o trânsito em julgado da decisão, o que alongava o período da suspensão e da concomitante possibilidade de durante ele serem cometidos outros crimes determinantes da revogação da suspensão. Como o crime em que foi condenado nestes autos ocorreu em data incerta compreendida entre 23 de Fevereiro e 10 de Março de 1993, o período de suspensão de um ano já decorrera quando foi praticado o segundo crime - na posição do recorrente. O vício de raciocínio é este: parte o recorrente do princípio de que se deve aplicar o C Penal de 1886, mas o que é certo é que a decisão de 5.12.1991 aplicou o C Penal de 1982. E só porque assim aconteceu é que foi aplicado o período mínimo de suspensão de um ano (num máximo de cinco) pois que no C Penal de 1886 o mínimo era de dois anos (máximo também de cinco) - citado § 1º do artigo 88°. E, como bem anotam os Ex.mos Representantes do Ministério Público, tal decisão transitou em julgado, ainda que apenas agora, em 18.02.99. Acrescente-se, sem que esta questão tenha sido suscitada. Tê-lo-á sido recentemente, no aludido processo da comarca de Santarém, ao solicitar-se a declaração de caducidade da suspensão, sem que, no entanto, se saiba o estado de apreciação do recurso interposto (v. fls. 432). De qualquer modo, o que não se pode é pretender fazer uma operação de 'fishing', em dois regimes, com vista a isolar as normas que se considerem mais favoráveis, o que já era rejeitado pela jurisprudência predominante anterior à redacção actual do artigo 2° , nº 4, do C Penal. O regime aplicável, porque mais favorável em concreto, deve ser considerado em bloco, no seu conjunto. Aliás, provavelmente o regime do C Penal de 1886 nem sequer era o mais favorável. De um lado porque, como acabamos de ver, o período mínimo de suspensão da pena era mais elevado que o actual, logo, como os presentes autos demonstram, mais favorável neste aspecto ao arguido; por outro lado, porque nem sequer é segura a interpretação defendida pelo recorrente, no sentido de que o período de suspensão se contava da data da sentença, mesmo quando tivesse havido recurso. Na hipótese de recurso, não se vê como tal período pudesse desde logo contar, uma vez que a decisão não se tornara definitiva. Diferente poderia ser o caso no que respeita ao período de tempo de que o arguido dispunha para recorrer (prazo) e que não usou porque não recorreu. Nesta óptica e neste ponto concreto, o Código Penal de 1982, quer na sua versão originária, quer na versão revista pelo Decreto-Lei n.o 45/95, de 15 de Março, não teriam ido além de uma clarificação. Entendemos, pois, que a questão de saber se se aplica, no tocante à contagem do termo a quo do período de suspensão, o Código de 1886 ou o de 1982, está decidida no acórdão proferido na comarca de Santarém, que transitou em julgado, o qual aplicou o Código Penal de 1982.
3.1. Diz-se no acórdão recorrido que não se procedeu logo ao cúmulo de penas por falta de elementos sobre a decisão a proferir, na comarca de Santarém, quanto à solicitada declaração de caducidade. Podem colocar-se três hipóteses: i) o Tribunal Judicial de Santarém, no processo mencionado, considera extinta a pena aplicada em 5.12.1991, sendo evidente que não poderia ser tomada em consideração nestes autos ou ii) revoga a suspensão; ou iii) deixa decorrer o período de um ano, a contar de 18.02.99. Mas ainda que venha a ser declarada a revogação da suspensão da pena, nas hipóteses i) e iii), mostra-se a pena aí aplicada totalmente abrangida pelas sucessivas leis de perdão, como resulta expressamente da decisão de 5.012.91, in fine, em aplicação das medidas de clemência respectivas até então publicadas. Aspecto que o acórdão recorrido também invoca para não proceder já ao cúmulo jurídico. De qualquer modo, no tocante a estes autos, e pelo que se deixa dito, a decisão na modalidade de suspensão da pena ainda subsistente (quer venha a ser extinta por caducidade, quer por perdão, quer revogada), não pode ser atendida para efeito de graduação da medida da pena a aplicar . E nem neste processo se poderia tomar uma decisão cuja sede própria é naquele outro. Consequentemente, por razões diferentes das invocadas pelo recorrente, concede-se provimento à primeira questão levantada, não se devendo conferir relevo, neste momento, à conduta do recorrente que determinou a condenação pelos factos a que se alude no nº 21 da matéria dada como provada' Para se concluir ainda, no tocante à questão da medida da pena, que 'não há que ter em conta a condenação ocorrida em 1991, até porque, de momento, se ignora se vai ou não subsistir', o que implica 'alguma diminuição da pena aplicada pelo Colectivo' ('Na verdade, aquela pena, que se baixará para três anos e seis meses, pelos motivos já referidos de não se tomar em conta a sanção aplicada em
5.12.91, que continua a ignorar-se se caducou ou não, atende à gravidade de um comportamento especialmente censurável numa profissão em que a deontologia é particularmente relevante. O ora recorrente, de acordo com a matéria dada como provada, usou a sua profissão, com violação dos deveres que lhe impõe [(artigo
71º, nº 2, alínea a)] para se apropriar das quantias que lhe haviam sido confiadas para fins bens determinados, através de uma realidade material (que a amnistia não consegue apagar) ardilosa, reveladora de uma insensibilidade aos valores jurídicos que, em regra, têm subjacentes indefectíveis valores éticos. As formalidades de que a lei rodeia a emissão de certos documentos foram usados no sentido contrário: não o de obrigar à reflexão prévia de certos actos negociais importantes, mas para ocultar o desígnio criminoso' – acrescenta-se no acórdão).
5. Das peças propositadamente transcritas resulta que, talqualmente se entendeu no despacho reclamado, não houve aplicação no acórdão recorrido para este Tribunal Constitucional das normas ou do seu sentido interpretativo do Código Penal (de 1886 e de 1982), erigidas pelo recorrente como objecto do recurso de constitucionalidade (as normas 'cuja inconstitucionalidade se pretende ver declarada', como ele se expressa). Com efeito, como se destaca no despacho reclamado, o acórdão entendeu estar decidida na decisão da 1ª instância, transitada em julgado, e aplicando o Código Penal de 1982, 'a questão de saber se se aplica, no tocante à contagem do termo a quo do período de suspensão, o Código de 1886 ou o de 1982'. Por outro lado, no mesmo acórdão também ficou dito que 'a decisão na modalidade de suspensão da pena ainda subsistente (quer venha a ser extinta por caducidade, quer por perdão, quer revogada), não pode ser atendida para efeito de graduação da medida da pena a aplicar' ('E nem neste processo se poderia tomar uma decisão cuja sede própria é naquele outro' – acrescenta-se ainda). Tanto basta para concluir, como conclui o Ministério Público, que 'estava precludida a apreciação, nos autos, do mérito da questão de aplicação no tempo do regime Penal em causa', não se verificando a efectiva aplicação no acórdão recorrido das normas questionadas. Nem se diga, como quer o reclamante, que 'o Tribunal Judicial de Santarém pode ainda, sem sede de cúmulo jurídico, ser abstractamente chamado a relevar a questão da suspensão da pena ou da sua eventual extinção'. É óbvio que tal consideração, a proceder, nada tem a ver com a decisão recorrida. Com o que não merece censura o despacho reclamado.
6. Termos em que, DECIDINDO, indefere-se a reclamação e condena-se o reclamante nas custas, com a taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta. Lisboa, 27 de Setembro de 2000 Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa