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Processo n.º 815/2011
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A., no âmbito do processo de execução fiscal que correu termos no serviço de finanças de Vila Nova de Gaia, apresentou uma proposta de aquisição de um imóvel penhorado para efeitos de execução, pelo valor de € 55 000,00 e, tendo obtido a adjudicação, formulou um pedido de dispensa do depósito do preço do bem vendido até que seja proferida decisão no processo de verificação e graduação de créditos, no qual reclamou um crédito no valor de € 83 453,64 sobre a executada, garantido por direito de retenção, já reconhecido judicialmente sobre esse bem.
Tendo sido indeferido o pedido, por despacho do chefe do serviço de finanças de 5 de janeiro de 2009, a interessada deduziu reclamação judicial perante o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que foi julgada improcedente com o fundamento que a situação estava expressamente regulada pela alínea h) do art. 256.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), motivo por que não havia lugar à aplicação subsidiária do disposto no n.º 2 do art. 887.º do Código de Processo Civil (CPC), que permitia a referida dispensa do depósito do bem vendido.
A reclamante interpôs então recurso para o Supremo Tribunal Administrativo em que, além do mais, questionou a constitucionalidade da alínea h) do artigo 256.º do CPPT, por violação do princípio da igualdade, em duas diferentes vertentes: na medida em que adota para os adquirentes particulares solução diferente da consagrada na alínea i) do mesmo artigo quando o adquirente seja o Estado, um instituto público ou a Segurança Social; e no ponto em que consagra para a execução fiscal um regime diverso do que foi adotado pelo CPC para a execução comum.
Por acórdão de 28 de setembro de 2011, o Supremo Tribunal Administrativo julgou improcedente o recurso, dizendo, em resumo, que a previsão, no artigo 256.º do CPPT, de regimes jurídicos diversos para os adquirentes, consoante sejam particulares (alínea h)) ou entidades públicas (alínea i)), está plenamente justificada pela diferente natureza dos credores, que implica diferente nível de risco financeiro e, consequentemente, diferente risco na cobrança do preço da aquisição; e que a diversidade de soluções jurídicas consagradas na execução fiscal e na execução comum, no que respeita à dispensa do depósito do preço, encontra justificação, quer na necessidade de que o pagamento das dívidas em cobrança na execução fiscal fique mais eficazmente assegurado (evitando a eventualidade de, após a graduação de créditos, vir a ter que notificar o adquirente para depositar parte do preço que deixou de depositar ou, inclusive, de ter que o executar por esse montante), quer na celeridade requerida pela execução fiscal (evitando os atrasos que nela introduziria necessariamente a constituição de hipoteca ou a prestação de caução, previstas para a execução comum).
Desta decisão vem a recorrente interpôr recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade da norma do artigo 256.° do Código de Procedimento e Processo Tributário, no ponto em que prevê regimes diferentes para os diversos adquirentes relativamente à venda de bens penhorados no âmbito do processo de execução fiscal e também entre os adquirentes particulares no processo de execução fiscal e no processo de execução comum.
Tendo o processo prosseguido, a recorrente apresentou alegações, em que formula as seguintes conclusões:
1. A recorrente é titular do direito de retenção conforme consta da sentença de condenação junta com a reclamação de créditos.
2. A recorrente habita a fração desde agosto de 1995, porém, apesar de ter pago, praticamente a totalidade do preço, nunca a aqui executada/proprietária celebrou a escritura definitiva de compra e venda.
3. A credora/proponente é uma pessoa já de alguma idade e apresentou proposta de aquisição, porém como sabia, antecipadamente que não tinha possibilidade de proceder ao depósito do preço no prazo legal requereu a dispensa do mesmo caso a sua proposta fosse aceite, dispensa essa que seria concedida até ser proferida sentença de verificação e graduação de créditos, altura em que o serviço de Finanças competente se encontraria em condições de, com total exatidão, proceder aos pagamentos do produto da venda.
4. Dispõe o art. 256° al. g) que “O adquirente, ainda que demonstre a sua qualidade de credor, nunca será dispensado do depósito do preço”; por outro lado, dispõe a al. h) do mesmo normativo legal que “O Estado, os institutos públicos e as instituições de segurança social não estão sujeitos à obrigação do depósito do preço, enquanto tal não for necessário para pagamento de credores mais graduados no processo de reclamação de créditos”.
5. Dispõe o art. 887° n°2 do C.P.C. que “Não estando ainda graduados os créditos, o exequente não é obrigado a depositar mais que a parte excedente à quantia exequenda, e o credor só é obrigado a depositar o excedente ao montante do crédito que tenha reclamado sobre os bens adquiridos”.
6. A obrigação de depósito do preço por parte do credor reclamante nos presentes autos, antes de proferida a sentença de graduação de créditos, configura um tratamento desigual, que trará prejuízos irrecuperáveis à credora reclamante.
7. A credora procedia ao depósito do preço de 55.000 €, recorrendo a crédito bancário.
8. Tal obrigação de depósito do preço constitui uma grave violação do princípio da igualdade de tratamento entre o Estado e o credor particular, desigualdade essa que apenas se verifica nas execuções fiscais, uma vez que caso a presente venda se tivesse realizado num tribunal comum, tal obrigação não existiria.
9. Em respeito do princípio da igualdade, e não se descortinando uma razão pertinente para que tal princípio não seja aqui respeitado e de forma a fazer-se inteira justiça ou, pelo menos, não se permitir a concretização de uma injustiça, com prejuízos irreparáveis, económicos e morais, deve ser concedida a isenção do depósito do preço à Credora reclamante até ser proferida a douta sentença de verificação e graduação de créditos.
10.Refere o Douto Acórdão, como argumento para afastar a aplicação das regras do C.P.C à venda em execução fiscal, o facto de a execução fiscal se caracterizar pela sua celeridade.
11.Ora, salvo o devido respeito que muito é, entendemos que o facto da execução fiscal se caracterizar pela celeridade não justifica a imposição de depósito do preço aos credores com garantia real, uma vez que tal depósito não poderá ser utilizado enquanto não for proferida a Douta sentença de verificação e Graduação de créditos.
12.Ou seja, de que vale o depósito do preço para a Fazenda, uma vez que, existindo créditos reclamados e sendo necessário proceder à sua verificação e graduação, não podem ser efetuados quaisquer pagamentos, seja de impostos devidos ao Estado, seja dos créditos reclamados.
13.Está-se a impor uma obrigação extremamente penosa, especialmente no caso de um credor particular munido de garantia real, o qual é necessariamente distinto de um proponente que não seja credor e que apenas vai à venda para adquirir um imóvel, enquanto no caso do credor vai à venda para defender o seu crédito e não ver o imóvel ser vendido por valores irrisórios, o que muitas vezes sucede.
14.Na verdade, o que pretende a recorrente/proponente é que a dispensa do depósito do preço seja concedida até à sentença de verificação e graduação de créditos.
15.A alegada celeridade da execução fiscal infelizmente não existe, note-se que no presente caso a venda realizou-se em dezembro de 2008, e após mais de 3 anos decorridos sobre a mesma ainda não foi sequer proferida sentença de verificação e graduação de créditos.
16.Justificar-se-á em nome de uma celeridade que não existe, este tratamento desigual, que impõe ao credor garantido, neste caso um particular, tal esforço económico quase impossível.
17.Esforço esse que apenas permite ao Estado arrecadar uma receita virtual, uma vez que estes credores garantidos apenas serão “ultrapassados” na graduação de créditos pelo IMI ou IMT, impostos esse bem inferiores ao preço dos imóveis, pelo que o Estado terá de devolver sempre mais de 90% do valor depositado, que entretanto esteve “nas suas mãos” vários anos, sem qualquer justificação.
18.Relativamente ao fundamento de “assegurar uma cobrança mais eficaz das dívidas do estado”, não sufragamos igualmente tal argumento, desde logo, porque 90% ou mais dos credores garantidos que adquirem imóveis em execuções fiscais, são bancos ou outro tipo de instituições financeiras, sendo o risco de “falta” de cobrança em caso de necessidade de depósito da totalidade do preço, nulo ou inexistente.
19.0 Douto Acórdão entende não existir qualquer violação do princípio da igualdade, referindo diversa jurisprudência, porém, se atentarmos na jurisprudência invocada, o credor trata-se de uma instituição bancária, e não de um particular.
20.Ora, existe uma grande diferença entre uma instituição bancária e um particular, desde logo na capacidade económica e na facilidade de disponibilização de dinheiro.
21. Sendo certo que o princípio da igualdade tem de ser analisado caso a caso, pelo facto de na Douta Jurisprudência invocada ter-se considerado não existir violação do mesmo na obrigação do depósito do preço no processo fiscal, tal não pode significar que, no caso em concreto, não se julgue de forma diferente.
22.E, salvo melhor opinião, outro deveria ter sido o entendimento do Douto Acórdão, devendo ter julgado procedente o recurso interposto.
23.Deverá assim ser declarado inconstitucional, por violação do artigo 13º da Lei Fundamental, a alínea h) do artigo 256° do CPPT.
Não houve contra-alegações.
Cabe apreciar e decidir.
II - Fundamentação
2. A recorrente vem arguir a inconstitucionalidade da norma do artigo 256º, alínea h), do Código de Processo e de Procedimento Tributário (CPPT), alegando que essa disposição, ao vedar ao adquirente do imóvel penhorado a dispensa do depósito do preço, ainda que demonstre a sua qualidade de credor, configura uma violação da igualdade de tratamento entre os adquirentes particulares em relação ao Estado, aos institutos públicos e às instituições de segurança social, que se encontram dispensadas de efetuar esse depósito (alínea i)).
Acrescenta que essa situação de desigualdade apenas se verifica nas execuções fiscais, uma vez que as vendas que se realizem num processo executivo que corra termos no tribunal comum, ainda que não estejam graduados os créditos, o credor só é obrigado a depositar o excedente ao montante do crédito que tenha reclamado sobre os bens adquiridos, à luz do que dispõe o artigo 887°, n° 2, do Código de Processo Civil (CPC).
Para tanto, considera que são inoperantes as razões justificativas do tratamento desigual que foram invocadas pelo tribunal recorrrido, porquanto: a) o facto da execução fiscal se caracterizar pela celeridade não justifica a imposição de depósito do preço aos credores com garantia real, uma vez que tal depósito não poderá ser utilizado enquanto não for proferida a sentença de verificação e graduação de créditos; b) no caso, a alegada celeridade da execução fiscal não se verifica, visto que a venda se realizou em dezembro de 2008 e mais de 3 anos decorridos ainda não foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos; c) o argumento de que se pretende «assegurar uma cobrança mais eficaz das dívidas do Estado» também não releva, desde logo, porque 90% ou mais dos credores garantidos que adquirem imóveis em execuções fiscais, são bancos ou outro tipo de instituições financeiras, sendo inexistente o risco de falta de cobrança.
A questão de constitucionalidade que vem colocada é, pois, a se saber se a norma do artigo 256º, alínea h), do CPPT, analisada em confronto com a da subsequente alínea i), e também com a do artigo 887°, n° 2, do CPC, é suscetível de violar o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição.
As normas do CPPT em causa, reportando-se às formalidades de venda dos bens penhorados no âmbito do processo de execução fiscal, dispõem o seguinte:
h) O adquirente, ainda que demonstre a sua qualidade de credor, nunca será dispensado do depósito do preço;
i) O Estado, os institutos públicos e as instituições de segurança social não estão sujeitos à obrigação do depósito do preço, enquanto tal não for necessário para pagamento dos credores mais graduados no processo de reclamação de créditos.
Por seu turno, o artigo 887º do CPC, que, no âmbito do processo de execução comum, regula a «dispensa de depósito aos credores», na parte que mais interessa considerar, apresenta a seguinte redação:
1 - O exequente que adquira bens pela execução é dispensado de depositar a parte do preço que não seja necessária para pagar a credores graduados antes dele e não exceda a importância que tem direito a receber; igual dispensa é concedida ao credor com garantia sobre os bens que adquirir.
2 - Não estando ainda graduados os créditos, o exequente não é obrigado a depositar mais que a parte excedente à quantia exequenda e o credor só é obrigado a depositar o excedente ao montante do crédito que tenha reclamado sobre os bens adquiridos».
Vê-se assim que, no âmbito da execução fiscal, em relação aos adquirentes particulares, a lei não opera a compensação entre a dívida do preço do bem adquirido e o crédito exequendo e exige o depósito do preço ainda que essa importância não seja necessária para pagar a credores graduados antes deles, e mesmo que o depósito não exceda o montante que esses adquirentes têm direito a receber, por efeito dos créditos que tenham reclamado no âmbito da execução. Em contrapartida, por força do estatuído na alínea i), as entidades públicas só ficam sujeitas a essa obrigação quando o depósito do preço seja necessário para o pagamento dos credores mais graduados, o que significa que, em todas as outras circunstâncias, a norma, contrariamente ao que prevê a precedente alínea g), admite a compensação da dívida pela aquisição dos bens penhorados com o crédito que essas entidades tenham reclamado no processo de execução fiscal.
Também no que se refere à execução comum, regulada pelo artigo 887º do CPC, o exequente ou o credor com garantia sobre o bem comprado é dispensado de depositar a parte do preço que não seja necessária para pagar a credores graduados antes (por exemplo, as dívidas ao Estado ou custas processuais) e não exceda a importância que tem direito a receber (cfr. José Lebre de Freitas/Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, vol 3º, Coimbra Editora, 2003, pág. 569).
3. Como o Tribunal tem dito em jurisprudência constante (a título de exemplo, o acórdão n.º 232/2003), o princípio da igualdade abrange fundamentalmente três dimensões ou vertentes: a proibição do arbítrio, a proibição de discriminação e a obrigação de diferenciação, significando a primeira, a imposição da igualdade de tratamento para situações iguais e a interdição de tratamento igual para situações manifestamente desiguais (tratar igual o que é igual; tratar diferentemente o que é diferente); a segunda, a ilegitimidade de qualquer diferenciação de tratamento baseada em critérios subjetivos (v.g., ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social); e a última surge como forma de compensar as desigualdades de oportunidades.
A diferença de regimes processuais relativamente às formalidades de venda de bens penhorados, que aqui está particularmente em foco, não é algo que possa relevar do domínio da discriminação negativa ou positiva, a que corresponde a segunda e a terceira dimensões do princípio da igualdade acima referidas (que têm especialmente assento no n.º 2 do artigo 13.º da Constituição), pelo que só cabe no caso averiguar se o legislador terá aqui instituído uma distinção que seja arbitrária, isto é, que não possa ser fundamentada à luz de um critério inteligível ou racionalmente apreensível, congruente com valores constitucionalmente relevantes.
Por outro lado, conforme tem sido também frequentemente afirmado, não cabe ao Tribunal Constitucional substituir-se ao legislador na avaliação da razoabilidade das medidas legislativas, formulando sobre elas um juízo positivo, e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a solução razoável, justa e oportuna. O controlo do Tribunal é antes de caráter negativo, cumprindo-lhe tão-somente verificar se a solução legislativa se apresenta em absoluto intolerável ou inadmissível, de uma perspetiva jurídico-constitucional, por para ela se não encontrar qualquer fundamento razoável e em concreto compreensível (cfr., entre outros, o acórdão n.º 166/10).
Analisando este específico aspeto, na perspetiva de uma possível violação do princípio da igualdade, relativamente às normas das alíneas h) e i) do artigo 256º do CPPT, o acórdão recorrido exarou o seguinte:
Desde logo ressalta que a lei não estabelece qualquer distinção entre os adquirentes particulares, mas tão-só entre estes e os adquirentes que tenham natureza pública. Mas, é fácil perceber a razão desse distinto tratamento jurídico: é que, em abstrato, é objetivamente diverso o risco financeiro e, consequentemente, o risco de incobrabilidade relativamente a dívidas de particulares e de entidades públicas. Dito de outro modo, será mais difícil que um adquirente que seja uma entidade pública deixe de pagar o preço por que adquiriu um bem em execução fiscal do que um adquirente particular.
Assim, e porque antes de proferida a decisão que verifique e gradue os créditos reclamados com o exequendo para serem pagos pelo produto da venda não é possível saber se e em que medida o adquirente que seja credor com garantia sobre o bem vendido terá que efetuar o pagamento do preço, a lei entendeu nunca dispensar o adquirente, ainda que seja credor, do depósito da totalidade do preço.
O diferente tratamento jurídico dado aos adquirentes particulares em relação aos adquirentes que sejam entidades públicas encontra assim justificação razoável e materialmente fundada, o que arreda a invocada infração do princípio da igualdade.
Por sua vez, no tocante à distinção estabelecida, relativamente à mesma matéria, entre o processo de execução fiscal (alínea h) do artigo 256.º do CPPT) e o processo de execução comum (artigo 887.º do CPC), o mesmo aresto considera que essa diferença de regimes «encontra justificação na diferença de natureza das dívidas em cobrança numa e noutra execução, explicitando essa ideia do seguinte modo:
Na verdade, a execução fiscal, que tem como finalidade essencial a cobrança das dívidas tributárias, só pode ser usada para cobrar as dívidas enunciadas no art. 148.º do CPPT. Assim, o processo de execução fiscal está «estruturado em termos mais simples do que o processo de execução comum, com o objetivo de conseguir uma maior celeridade na cobrança dos créditos, recomendada pelas finalidades de interesse público das receitas que através dele são cobradas (-).
Concluiu, assim, que a previsão de diversos regimes jurídicos para os adquirentes, consoante sejam particulares ou entidades públicas (no artigo 256.º do CPPT), é justificada pela diferente natureza dos credores, e a diversidade de soluções jurídicas consagradas na execução fiscal e na execução comum, em relação aos adquirentes particulares (como resulta dos artigos 256º, alínea h), do CPPT e 887.º do CPC), é justificada quer pela celeridade requerida pela execução fiscal, quer pela necessidade de assegurar o eficaz pagamento das dívidas nessa forma de processo.
Esta argumentação mantém plena validade e constitui em si fundamento bastante para que o legislador tenha estabelecido uma diferenciação de regimes quanto à dispensa do depósito do preço, consoante o adquirente seja um particular ou uma entidade pública, e tenha também previsto para o processo de execução fiscal um regime distinto do que vigora em geral no processo de execução comum.
Pode dizer-se que valem aqui, em tese geral, as mesmas considerações que, quanto à não violação do princípio da igualdade, o Tribunal Constitucional fez, relativamente à diferença de regimes entre as execuções fiscais e as execuções cíveis no tocante à impenhorabilidade dos bens do executado que fossem já anteriormente objeto de penhora pelas repartições de finanças, a que se referia o artigo 300.º do Código de Processo Tributário (acórdão n.º 516/94), bem como quanto à distinção estabelecida, no artigo 12º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 67/97, de 3 de abril, entre credores privados e credores que sejam pessoas coletivas públicas, no que se refere à suscetibilidade de apreensão judicial ou oneração de participações sociais pertencentes a uma entidade desportiva (acórdão n.º 620/04).
No caso vertente, para aferir da violação do parâmetro de constitucionalidade, não têm relevo, como bem se compreende, quaisquer considerações atinentes às vicissitudes processuais da execução em que foi efetuada a venda e exigido o depósito do preço. A solução legislativa do artigo 256º, alínea h), do CPPT foi adotada no pressuposto da normal operacionalidade do sistema. A alegada circunstância de o processo de execução fiscal em causa não ter cumprido as exigências de celeridade, por terem decorrido vários anos entre a venda do bem, com a obrigatoriedade do depósito do preço, e a verificação e graduação dos créditos, com o consequente prejuízo para o adquirente, que teve entretanto de suportar os encargos correspondentes ao desembolso dessa importância, é questão que apenas pode ser resolvida através do instituto da responsabilidade civil, justificando porventura um pedido de indemnização, por parte do lesado, por violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável. Essa ocorrência, acidental e circunscrita a esse concreto processo, não desvirtua a finalidade que se pretendeu atingir através da diferenciação de regimes entre o processo de execução fiscal e o processo de execução comum, nem afasta a legitimidade do legislador para adotar esse critério normativo.
Por outro lado, não cabe ao intérprete aferir da bondade da medida legislativa ou do grau de eficácia que ela poderá possuir em vista à obtenção da finalidade que justifica a desigualdade de tratamento. O juiz constitucional apenas deve invalidar as diferenciações arbitrárias, aquelas para as quais o legislador não pode apresentar qualquer fundamentação ou, pelo menos, qualquer fundamentação compatível com os critérios constitucionais e onde haja um mínimo de coerência entre os objetivos prosseguidos e os resultados previsíveis ou verificados. Neste contexto, é irrelevante o argumento da inexistência de um risco de cobrabilidade da dívida exequenda, com base na mera verificação factual - que, aliás, carecia de ser demonstrada -, de que grande parte dos adquirentes de bens penhorados em execução fiscal são instituições bancárias ou financeiras relativamente às quais se não coloca o perigo de falta de cobrança e a consequente necessidade de prévio depósito do valor dos bens. O que interessa reter é que o critério legislativo em que se baseia a diferenciação assenta num motivo razoável e intelegível, que se torna aplicável a todos os adquirentes particulares (para salvaguardar as eventuais dificuldades que ulteriormente se colocassem na cobrança do preço da venda), independentemente da sua capacidade económica ou credibilidade financeira.
Certo é que, em termos legislativos, poderia ponderar-se a possibilidade – como também é alegado – da dispensa do depósito do preço, mesmo em processo de execução fiscal, em relação aos adquirentes com créditos reclamados que sejam iguais ou superiores ao valor da venda (como parece ser o caso da aqui recorrente). Mas mesmo nessa situação específica, antes da verificação e graduação dos créditos não é possível saber qual é posição do adquirente, nem em que medida é que o seu crédito poderá ser satisfeito à custa do valor da venda dos bens, o que sempre reconduz a opção normativa ao mero plano da política legislativa, que apenas poderia ser objeto de censura constitucional caso essa solução revestisse um caráter de arbitrariedade.
A recorrente alega que o crédito que pretende fazer valer na execução fiscal se encontra garantido por direito de retenção, já reconhecido em sentença, o que levará a que seja graduado com preferência aos demais, com exceção de dívidas fiscais que eventualmente existam, o que igualmente conduz a que o valor do preço do imóvel adquirido, caso seja previamente depositado, por efeito da disposição legal, mais tarde deverá ser praticamente devolvido ao adquirente na íntegra.
Importa, no entanto, notar que a pretensão de isenção do depósito do preço, com base nos contornos particulares do caso concreto, assenta num mero juízo de prognose quanto aos termos em que irá ser efetuada a verificação e graduação de créditos e quanto à suficiência do crédito de que a recorrente é titular para satisfação conjunta do preço de aquisição do imóvel e das dívidas fiscais por que responde.
De todo o modo, a eventual devolução de parte ou da totalidade do valor do preço, no termo do processo, quando não tenha sido dispensado o depósito, é uma decorrência da particularidade do caso e da específica posição processual do credor, e não coloca a interessada em situação discriminatória em relação à categoria de adquirentes particulares em processo de execução fiscal.
Sendo de concluir que a norma do artigo 256.º, alínea h), do CPPT não contém uma diferenciação arbitrária no confronto com as disposições aplicáveis às entidades públicas (artigo 256.º, alínea i), do CPPT) e aos adquirentes particulares em processo de execução cível (artigo 887.º do CPC), não pode considerar-se verificada a alegada violação do princípio da igualdade.
III – Decisão
Termos em que se decide negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta.
Lisboa, 23 de maio de 2012.- Carlos Fernandes Cadilha – Ana Guerra Martins – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral – Gil Galvão.