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Proc. nº 206/99 Acórdão nº 637/99
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. G., Juiz-Conselheiro, interpôs, em 15 de Setembro de 1989, junto do Supremo Tribunal Administrativo, recurso contencioso do despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, proferido em 30 de Junho do mesmo ano, “que lhe negou provimento a um recurso hierárquico necessário, em matéria de pedido de isenção temporária de contribuição predial”.
Alegou que, tendo requerido oportunamente a isenção de contribuição predial respeitante à fracção autónoma designada pelas letras “AA” de um prédio sito em Quinta da Panasqueira, freguesia de Armação de Pera, identificado nos autos, o pedido foi indeferido por despacho do Chefe da Repartição de Finanças de Silves, despacho esse que foi sucessivamente mantido por decisões do Director de Finanças do Distrito de Faro, do Director-Geral das Contribuições e Impostos e, por fim, pelo despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, de que então era interposto recurso contencioso.
Na perspectiva do recorrente, o despacho impugnado incorria em erro de direito, com violação do artigo 4º do Decreto-Lei nº 316/86, de 25 de Setembro, conjugado com os artigos 1º e 3º do mesmo diploma quando se reportam ao artigo 12º do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola, por não ter aplicado ao caso do recorrente o mencionado artigo 4º do Decreto-Lei nº 316/86 – disposição que permitiu o arquivamento dos processos pendentes de resolução, instaurados nos temos da legislação revogada pelo mesmo diploma. O recorrente limitou o objecto do recurso contencioso à apreciação desta questão.
Na sua resposta, a autoridade recorrida – o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais – sustentou que devia ser negado provimento ao recurso, porquanto o pedido de isenção temporária de contribuição predial foi apresentado em 10 de Fevereiro de 1986, nos termos do nº 7 do artigo 12º do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola (com a redacção vigente ao tempo da aquisição), tendo sido indeferido por não estarem preenchidos os requisitos exigidos pela lei para o reconhecimento da isenção, uma vez que o contribuinte mantinha a sua residência permanente em Lisboa e não na fracção autónoma a que se referia o pedido de isenção.
Alegou ainda a autoridade recorrida que o artigo 4º, nº 1, do Decreto-Lei nº 316/86, pretendendo embora “simplificar as formalidades a que se encontravam sujeitos os processos administrativos instaurados em face dos pedidos de isenção de contribuição predial feitos ao abrigo da legislação que vigorava anteriormente”, não deve prejudicar a “justeza da concessão do benefício fiscal”, assim se justificando a ressalva contida na parte final do preceito. Tendo corrido em data anterior à entrada em vigor do Decreto-Lei nº
316/86 os trâmites legais do processo administrativo onde foi proferido o despacho impugnado, está tal processo “fora do alcance” desse diploma.
2. No acórdão de 6 de Novembro de 1996 (fls. 52 e seguintes), o Supremo Tribunal Administrativo (Secção do Contencioso Tributário) afirmou:
“[...] como claramente resulta do referido art. 4º do Dec.lei
316/86 não é verdade que este diploma se aplica a todos os processos pendentes, já que a parte final do nº 1 do mesmo art. condiciona a sua aplicação à verificação dos pressupostos da concessão da isenção à luz da legislação anterior, agora eliminada ou revogada.
O que é corroborado pelo parágrafo único do mesmo normativo que preceitua: «verificando-se a situação prevista na parte final do nº 1 deste artigo, o chefe da Repartição de Finanças proferirá despacho fundamentado de indeferimento, que será notificado aos interessados».
Foi o que aconteceu e veio a ser confirmado pela autoridade máxima da hierarquia.”
O tribunal considerou ainda que as alterações introduzidas pelos artigos 1º e 3º do Decreto-Lei nº 316/86 no Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola em nada interferem com a pretensão do recorrente.
Invocando a regra de não retroactividade das normas que fixam isenções fiscais –que são também normas de incidência, na medida em que delimitam negativamente o respectivo âmbito (real ou pessoal) –, o Supremo Tribunal Administrativo concluiu que o despacho recorrido não violou o artigo 4º do Decreto-Lei nº 316/86, de 25 de Setembro, conjugado com os artigos 1º e 3º do mesmo diploma quando se reportam ao artigo 12º do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola e que, por isso, o recorrente não benefia da concessão oficiosa da isenção temporária da contribuição predial, à luz da disposição invocada. Consequentemente, negou provimento ao recurso, mantendo o despacho recorrido.
3. Não se conformando com a decisão, G. interpôs recurso para o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo. Nas suas alegações, invocou a inconstitucionalidade da interpretação dada ao artigo 4º do Decreto-Lei nº 316/86, de 25 de Setembro, que, permitindo um tratamento discriminatório do recorrente, viola o artigo 13º da Constituição.
Por acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, proferido em 16 de Novembro de 1998 (fls. 113 e seguintes), foi negado provimento ao recurso.
O Supremo Tribunal Administrativo fundou-se na interpretação do nº 1 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 316/86, de 25 de Setembro, adoptada no parecer que o representante do Ministério Público junto do Supremo Tribunal Administrativo emitiu no processo e que assim sintetisou:
“– se não existissem, no processo, elementos de prova de situação em que não fosse possível o deferimento, os processos eram imediatamente «arquivados sem mais formalidades» considerando-se sem qualquer outra diligência «verificadas as condições necessárias à sua concessão»;
– se existissem já no processo elementos que comprovassem a inexistência de situação em que era possível a concessão de isenção, então podia ser logo proferida decisão final sobre a pretensão do contribuinte, no sentido do indeferimento, o que também possibilitava a decisão imediata do processo sem realização de qualquer nova diligência de averiguação.”
O tribunal decidiu então que a situação do recorrente se encontra abrangida pela ressalva contida na parte final do nº 1 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 316/86, por existirem “suficientes elementos de prova” no processo de que a declaração do contribuinte não correspondia à verdade, ou seja, “de que o declarante e requerente não tinha, no prédio, a sua residência permanente”. Por esse aspecto não ter sido jurisdicionalmente atacado, o tribunal considerou estar perante “caso decidido ou resolvido”.
Quanto à questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente, o Supremo Tribunal Administrativo não tomou dela conhecimento, por entender que se tratava de “questão nova”, sobre a qual não se tinha pronunciado a decisão recorrida.
4. Deste acórdão veio G. interpor recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, para apreciação da inconstitucionalidade da interpretação dada à norma do artigo
4º do Decreto-Lei nº 316/86, de 25 de Setembro, em confronto com o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 133.
5. Nas alegações de recurso para o Tribunal Constitucional, o recorrente formulou as seguintes conclusões:
“a) No acórdão recorrido interpretou-se e aplicou-se aquele artigo 4º do Decreto-Lei nº 316/86, no sentido de que só podiam beneficiar da isenção da contribuição predial os contribuintes que tinham direito à isenção pedida nos termos da legislação anterior (o Código citado [o Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola], na redacção do Decreto-Lei nº 260-B/81, de 2 de Setembro), entretanto revogada, mantendo-se, designadamente, a exigência da residência permanente do requerente ou do seu agregado familiar, a apurar através de informações dos serviços fiscais.
b) Quando a interpretação e aplicação correctas daquele artigo
4º deveria passar pelo entendimento de que deveriam ser arquivados «os processos pendentes da resolução, instaurados nos termos da legislação ora eliminada ou revogada», sem mais formalidades, com o averbamento da isenção pedida, desde que tal pedido se reportasse – e era o caso do recorrente – 'a prédios destinados a habitação ou residência permanente do proprietário', inscritos nas matrizes, à semelhança do que aconteceu a muitos processos pendentes, nas muitas repartições de finanças.
c) Com aquela interpretação e aplicação do artigo 4º do Decreto-Lei nº 316/86, feitas no acórdão recorrido, sai violado o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição, por se chegar a uma situação de discriminação para o recorrente, na medida em que se gera uma diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, posto o caso do recorrente em confronto com os casos em que, em processos similares, o resultado acabava por passar pela existência ou não de «elementos de prova» quanto à condicionante da residência permanente (existindo num processo esses elementos, não era concedida a isenção; mas se eles não existissem noutro processo, era oficiosamente averbada a isenção e arquivado o processo).”
Por sua vez, a autoridade recorrida – o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais – concluiu assim as suas alegações:
“1. O indeferimento da pretensão do recorrente deveu-se apenas à verificação pela Administração Fiscal do não preenchimento de uma condição essencial e necessária para a concessão da isenção – a não afectação de imóvel para habitação permanente.
2. A Administração Fiscal ao indeferir a referida pretensão agiu de forma objectiva e não de forma discriminatória e/ou arbitrária.
3. O princípio da igualdade não impede que situações diferentes sejam tratadas de forma diferente.
4. Foi o que aconteceu, pois no caso do recorrente (como, aliás, noutros), existiam elementos que contrariavam a declaração apresentada, enquanto nas situações que foram objecto de deferimento tais informações não constavam do processo, pelo que nada obstava à concessão da isenção.
5. A recolha das informações em causa foi feita segundo os procedimentos legais e não de forma discriminatória ou arbitrária.
6. Assim, não pode ser invocada a violação do princípio da igualdade, já que não existem quaisquer situações discriminatórias ou arbitrárias na interpretação e aplicação do referido artigo 4º do DL 316/86.”
II
6. O recorrente submete à apreciação do Tribunal Constitucional a norma do artigo 4º do Decreto-Lei nº 316/86, de 25 de Setembro.
É o seguinte o teor da norma impugnada:
“1. Os processos pendentes da resolução, instaurados nos termos da legislação ora eliminada ou revogada, desde que declarados pelo requerente como respeitantes a prédios urbanos destinados a habitação ou residência permanente dos proprietários, conforme os casos, e após documentados de harmonia com a legislação aplicável, designadamente, sendo caso disso, com a licença de habitação ou documento comprovativo da data da conclusão do prédio e fim a que se destina, quando aquela licença não seja exigível pelos serviços da câmara municipal, serão arquivados, sem mais formalidades, logo que os prédios estejam inscritos nas matrizes, averbando-se, nestas e nos verbetes de lançamento, as isenções a que tinham direito nos termos daquela legislação, considerando-se verificadas as condições necessárias à sua concessão, salvo de existirem suficientes elementos de prova em contrário que obstem ao seu deferimento.
2. Se, durante o período de isenção, for dada ao prédio ou fracção autónoma beneficiados destino diferente do da habitação ou deixarem de verificar-se as condições para a sua concessão, aplicar-se-á o disposto no artigo 24º e seus parágrafos do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola, com a nova redacção dada pelo artigo 1º do presente diploma.
3. Relativamente às isenções averbadas nos termos do nº 1 deste artigo, tendo em atenção a legislação que lhes é aplicável, proceder-se-á igualmente de harmonia com o disposto no artigo 25º do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola, com a nova redacção dada pelo artigo 1º do presente diploma.
§ único. Verificando-se a situação prevista na parte final do nº
1 deste artigo, o chefe da repartição de finanças proferirá despacho fundamentado de indeferimento, que será notificado aos interessados.”
Na perspectiva do recorrente, tal norma seria inconstitucional, quando interpretada no sentido de que “só podem beneficiar da isenção da contribuição predial os contribuintes que tinham direito à isenção pedida nos termos da legislação anterior [...], entretanto revogada, mantendo-se, designadamente, a exigência da residência permanente do requerente ou do seu agregado familiar, a apurar através de informações dos serviços fiscais”.
Com tal interpretação, segundo a óptica do recorrente, seria violado o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição, “por se chegar a uma situação de discriminação para o recorrente, na medida em que se gera uma diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, posto o caso do recorrente em confronto com os casos em que, em processos similares, o resultado acabava por passar pela existência ou não de «elementos de prova» quanto à condicionante da residência permanente (existindo num processo esses elementos, não era concedida a isenção; mas se eles não existissem noutro processo, era oficiosamente averbada a isenção e arquivado o processo).”
7. A questão de inconstitucionalidade submetida à apreciação do Tribunal Constitucional foi suscitada pelo recorrente de modo processualmente adequado.
Na verdade, embora o Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo tenha entendido não dever pronunciar-se sobre tal questão, por a considerar uma “questão nova”, que não havia sido colocada perante o tribunal recorrido, certo é que a questão de inconstitucionalidade foi suscitada “durante o processo”, no sentido funcional que a jurisprudência constitucional tem atribuído a esta exigência.
A inconstitucionalidade é questão de conhecimento oficioso por qualquer tribunal – Constituição da República, artigo 204º –, pelo que os interessados podem invocá-la em qualquer via de recurso ordinário que a decisão admita. Como se observou no acórdão nº 173/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 12º vol., p. 549 ss), “se suscitada pela primeira vez em alegações de recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça, não há que considerá-la, pois, uma «questão nova», que ao Supremo seja vedado apreciar: há, sim, que conhecer dela”. Este entendimento foi reiterado pelo Tribunal Constitucional em decisões posteriores (cfr., por exemplo, acórdão nº 41/92, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol., p. 751 ss). A mesma solução deve adoptar-se nos casos em que a questão de inconstitucionalidade apenas seja suscitada nas alegações de recurso para o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo, como aconteceu no presente processo.
Por outro lado, a circunstância de o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo não se ter pronunciado explicitamente quanto à questão de inconstitucionalidade não obsta à verificação do outro pressuposto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – a aplicação, na decisão recorrida, da norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada no processo. No caso dos autos, é indubitável que o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 16 de Novembro de 1998, aqui sob recurso, se fundou na norma do artigo 4º do Decreto-Lei nº 316/86, interpretada no sentido referido pelo recorrente e por ele reputado de inconstitucional.
8. O diploma em que se insere a norma impugnada – o Decreto-Lei nº
316/86, de 25 de Setembro – veio alterar o Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola, modificando muitos dos seus preceitos, designadamente em matéria de isenção da contribuição predial.
No preâmbulo do referido Decreto-Lei, depois de se aludir à importância que os benefícios fiscais têm representado “para a dinamização do sector da construção civil e do mercado imobiliário”, afirma-se:
“Actualmente, o Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola estabelece um regime de isenção que se pode considerar satisfatório relativamente a prédios adquiridos para residência permanente, com ou sem recurso ao crédito, mas tal regime não se estende aos restantes prédios urbanos construídos de novo, ampliados ou melhorados, na parte destinada à habitação, já que os limites máximos do rendimento colectável a que aproveitaria a isenção resultam de uma tabela aprovada pela Portaria nº 20 956, de 10 de Dezembro de 1964, não tendo sofrido qualquer actualização posterior.
Por outro lado, a sucessão de vários regimes especiais de isenção, com especificidades jurídicas próprias, e o elevado número de processos administrativos pendentes (um por cada prédio) têm originado um significativo congestionamento dos serviços fiscais a que urge pôr cobro.
Interessa, pois, estabelecer para o futuro um só regime de isenção para todos os prédios destinados à habitação, qualquer que seja o regime em que presentemente se encontrem, salvaguardando apenas o que foi instituído pela Lei nº 46/85, de 20 de Setembro [regime tributário especial aplicável a rendimentos provenientes de arrendamentos de fogos sujeitos à mesma lei].
[...].”
O Decreto-Lei nº 316/86 veio assim introduzir incentivos fiscais
à construção de habitações e ampliar o alcance de alguns outros já existentes. Teve também em vista simplificar os procedimentos e descongestionar os serviços fiscais.
Tendo como objectivo estabelecer para o futuro um regime único de isenção para todos os prédios destinados à habitação, o diploma manteve todavia algumas diferenças entre as regras que regem a concessão da isenção relativamente aos rendimentos de prédios urbanos adquiridos a título oneroso,
“na parte destinada a residência permanente dos seus proprietários” (artigo 22º do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola, com a nova redacção dada pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 316/86) e relativamente aos rendimentos dos prédios urbanos construídos de novo, ampliados ou melhorados,
“na parte destinada à habitação” (artigos 17º e 21º do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola, com a redacção dada pelo referido diploma).
Com efeito, e desde logo, a concessão oficiosa da isenção não se aplica aos prédios urbanos adquiridos “para residência permanente dos seus proprietários”, pelo que os interessados devem promover junto das repartições de finanças as diligências necessárias para poderem usufruir desse benefício. Assim, o § 5º do artigo 23º do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola (com a nova redacção dada pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº
316/86), determina, quanto aos casos de prédios urbanos adquiridos para residência permanente dos seus proprietários, que os contribuintes devem
“requerer a isenção”, no prazo de 90 dias a contar da aquisição, juntando o respectivo documento comprovativo. Quanto aos casos de prédios urbanos construídos de novo, ampliados ou melhorados, na parte destinada à habitação, o corpo do artigo 23º e o § 3º do mesmo preceito exigem que os contribuintes procedam à “declaração” da situação verificada, no prazo de 90 dias a contar da sua ocorrência, juntando, designadamente, a respectiva licença de habitação ou o documento comprovativo da data da conclusão das obras e o documento, passado pela câmara municipal, comprovativo de se destinar a habitação a parte do prédio em causa (no caso de a licença de habitação não ser exigível).
Diferenças existem também quanto ao momento a partir do qual se conta a isenção (respectivamente, artigos 22º e 20º do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola, com a nova redacção dada pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 316/86) e em matéria de caducidade da isenção
(respectivamente, § 2º e corpo do artigo 24º do mesmo Código, com a nova redacção).
9. A norma questionada no presente processo – o artigo 4º do Decreto-Lei nº 316/86 – é uma disposição de carácter transitório.
Dentro do objectivo de simplificação e descongestionamento afirmado no preâmbulo do Decreto-Lei nº 316/86 – e tendo em conta que o novo regime de isenções por ele instituído apenas se aplica “aos prédios relativamente aos quais a data do respectivo início [...] ocorra após a entrada em vigor do presente diploma” (artigo 5º, nº 1) –, o artigo 4º veio dispor para os processos pendentes, instaurados nos termos da legislação então revogada, de modo a dar como concluídos alguns desses processos, através da concessão da isenção.
A disposição em causa permitiu o arquivamento dos processos pendentes de resolução, e a correspondente concessão da isenção requerida, uma vez preenchidos certos requisitos:
– desde que os rendimentos tivessem sido declarados pelo requerente como respeitantes, conforme os casos, a prédios urbanos destinados a habitação ou a prédios urbanos destinados a residência permanente dos seus proprietários;
– desde que os pedidos estivessem documentados de harmonia com a legislação aplicável, designadamente, com a licença de habitação ou com documento comprovativo da data da conclusão do prédio e do fim a que o mesmo se destina, no caso de aquela licença não ser exigível pelos serviços da câmara municipal;
– logo que os prédios estivessem inscritos na respectiva matriz.
Verificadas tais condições, os processos seriam arquivados, sem mais formalidades, averbando-se na matriz as isenções a que os requerentes tinham direito nos termos da legislação revogada.
A solução que decorre desta norma implica uma presunção de conformidade à legislação anterior, como demonstra a expressão utilizada na parte final do preceito: “considerando-se verificadas as condições necessárias à sua concessão [da isenção]”.
Trata-se todavia de presunção iuris tantum, já que é ressalvada a possibilidade de “existirem suficientes elementos de prova em contrário que obstem ao seu deferimento”.
Isto é, para além dos requisitos positivos de aplicação da norma, estabelece-se ainda uma condição negativa – não existirem no processo suficientes elementos de prova em contrário que obstem ao deferimento da isenção.
10. Ora é precisamente este segmento final do nº 1 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 316/86 que está na origem da questão de constitucionalidade suscitada pelo recorrente.
Na sua perspectiva, esta parte da norma conduz a uma “situação de discriminação para o recorrente”, “gera uma diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, posto o caso do recorrente em confronto com os casos em que, em processos similares, o resultado acabava por passar pela existência ou não de «elementos de prova» quanto à condicionante da residência permanente”, saindo assim violado o princípio da igualdade consagrado no artigo
13º da Constituição.
11. Segundo a jurisprudência uniforme e constante do Tribunal Constitucional, o princípio da igualdade reconduz-se a uma proibição de arbítrio, sendo inadmissíveis quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios objectivos constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente diferentes.
A caracterização de uma medida legislativa como inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, depende, em última análise, da ausência de fundamento material suficiente, isto é, da falta de razoabilidade e da falta de coerência com o sistema jurídico.
Em contrapartida, as medidas de diferenciação hão-de ser materialmente fundadas, “sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da solidariedade” (acórdão do Tribunal Constitucional nº 750/95, Diário da República, II Série, nº 99, de 27 de Abril de 1996, p. 5677 ss).
12. À luz destas considerações, a solução consagrada pela norma questionada no presente recurso não se apresenta de todo injustificada nem desrazoável.
Como regra, a norma do artigo 4º do Decreto-Lei nº 316/86 admite o arquivamento, sem mais formalidades, dos processos pendentes, e a correspondente concessão da isenção requerida, pois assenta numa presunção de conformidade dos pedidos à legislação anterior. Tal presunção é ilidida quando existirem no processo suficientes elementos de prova em contrário que obstem ao deferimento da isenção.
Os elementos de prova em contrário susceptíveis de obstar ao deferimento da isenção serão, fundamentalmente, os elementos de que resulte, conforme os casos, que o prédio urbano declarado como destinado à habitação não tem efectivamente esse destino ou que o prédio urbano declarado como tendo sido adquirido para residência permanente do seu proprietário não é efectivamente destinado a residência permanente do seu proprietário ou do seu agregado familiar.
É o que decorre do próprio fundamento da concessão da isenção de contribuição predial: o destino do prédio para habitação, quanto aos prédios urbanos declarados como destinados à habitação; o destino do prédio para residência permanente do seu proprietário, quanto aos prédios urbanos declarados como tendo sido adquiridos para residência permanente dos seus proprietários.
Não se opõe a esta conclusão a circunstância de o Decreto-Lei nº
316/86 vir instituir para o futuro um regime único de isenção para todos os prédios destinados à habitação. Na verdade, como antes se sublinhou, o diploma mantém diferenças entre as regras aplicáveis à concessão da isenção quanto aos rendimentos de prédios adquiridos a título oneroso, “na parte destinada a residência permanente dos seus proprietários” e quanto aos rendimentos dos prédios urbanos construídos de novo, ampliados ou melhorados, “na parte destinada à habitação”. Diferenças subsistem igualmente em matéria de caducidade da isenção, designadamente com fundamento na não utilização dos prédios, conforme os casos, para a habitação ou para a residência permanente do seu proprietário ou do seu agregado familiar (respectivamente, § 2º e corpo do artigo 24º do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola, com a nova redacção dada pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 316/86). Não
é portanto irrelevante a consideração do destino efectivo do prédio para habitação ou de um destino diferente desse ou a consideração da existência no prédio de residência permanente do seu proprietário ou da falta dela, para efeitos de aplicação dos regimes legais de isenção de contribuição predial. Como poderá não ser irrelevante a consideração de um destino diferente da habitação ou a consideração da falta de residência permanente do proprietário, para efeitos de aplicação do regime transitório constante do artigo 4º do Decreto-Lei nº 316/86.
Ao contrário do que sustenta o recorrente, não são iguais – não se impondo portanto constitucionalmente que sejam tratadas de modo igual – as situações dos requerentes em cujo processo de pedido de isenção existem elementos de prova que obstem ao deferimento do pedido e as situações dos requerentes em cujo processo de pedido de isenção não existem tais elementos de prova. No primeiro caso, encontra-se ilidida, em face dos elementos constantes do processo, a presunção de conformidade à legislação anterior, e a isenção não pode ser concedida; no segundo caso, perante a presunção de conformidade à legislação anterior, pode ser concedida a isenção, o que justifica o arquivamento do processo e o averbamento da isenção.
No caso dos autos, tanto o acórdão da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo (de 6 de Novembro de 1996), como o acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do mesmo Supremo Tribunal Administrativo (de 16 de Novembro de 1998), consideraram existir no processo elementos suficientes de prova para concluir que a isenção não podia ser concedida – pois que o declarante e requerente não tinha, no prédio, a sua residência permanente. E, tendo em conta que esse aspecto não foi jurisdicionalmente atacado, o acórdão recorrido considerou estar perante “caso decidido ou resolvido”.
A apreciação dessa prova está porém obviamente fora do controlo e do âmbito de competência do Tribunal Constitucional.
13. Não resultando da parte final do nº 1 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 316/86, de 25 de Setembro, qualquer diferença de tratamento que possa considerar-se arbitrária ou injustificada, conclui-se não existir violação do princípio da igualdade.
III
14. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 4º do Decreto-Lei nº 316/86, de 25 de Setembro;
b) consequentemente, negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 23 de Novembro de 1999 Maria Helena Brito Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida